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13 de abril de 2004

TOM HANKS E O MITO FUNDADOR



“Náufrago”, filme de Robert Zemeckis, com Tom Hanks no papel principal, revisita o texto fundador da literatura de língua inglesa, “A vida e as estranhas e supreendentes aventuras de Robison Crusoe”. Publicado por Daniel Dafoe em 1719, o livro teve ainda duas continuações e é baseado nas experiências de Alexander Selkirk, que em 1704 fugiu e foi parar numa ilha deserta, de onde foi resgatado cinco anos depois. O filme adapta a história para a realidade americana: acaso e decisão nas mãos de um herói solitário, que para sobreviver e libertar-se assumiu integralmente a missão a que estava destinado.

TEMPO E ESPAÇO – O filme é perfeito em todos os sentidos. Afastado da civilização, o cidadão tenta reproduzir na solidão o mundo a qual pertence. E qual é esse mundo? O tempo loteado, a rota definida. Funcionário da Fedex (esse é talvez o mais longo e completo merchandising da história do cinema), ele é um desbravador de mercados e faz treinamento aos berros - na Rússia, claro, onde aparece o retrato de Lenin sendo retirado, uma coisa que os americanos adoram mostrar para provar que são os grandes vencedores da guerra fria, ilusão que resultou no atoleiro do Iraque. Sua mensagem aos pobres russos é simples: somos servos do tempo, precisamos aproveitar esse jugo para faturar, vencer. A servidão revela-se numa situação limite: em plena ceia de Natal, ele é obrigado a tomar um avião para fazer uma entrega. O acaso intervém para desviá-lo da rota, que é o espaço definido para a missão ser cumprida. Quando é jogado fora desses dois vetores, ele precisa agarrar-se às oportunidades oferecidas pelo acaso para poder aproveitar o tempo que dispõe – não só os minutos que escorrem, mas a mudança das estações – e livrar-se do confinamento do espaço, a ilha deserta onde se encontra. Quase se enforca antes de chegar à conclusão de que precisa intervir, construir uma balsa, e assim romper a armadilha onde foi apanhado. Conta para isso com a ajuda do parceiro imaginário – representado por uma bola de vôlei – o que é básico em qualquer filme americano. A parceria masculina é a civilização americana. A mulher, presença imaginária e desejada, não participa da trama, serve apenas como objetivo, inspiração. O que conta é a amizade entre iguais, e quando não existe mais ninguém ao redor, o americano precisa inventar alguém para compor a sua história. É dramática a perda desse companheiro – a bola é carregada para alto mar – e significa o fim da esperança. O acaso intervém para que o herói possa voltar. Mas esse acaso foi inventado por ele, que se colocou na rota dos navios depois de enfrentar o oceano com meia dúzia de paus amarrados.

TENSÃO DRAMÁTICA – O drama aguarda a volta do herói. A mulher dos seus sonhos, a qual abandonou numa noite de Natal para entregar uma encomenda, desviou-se da rota do amor e fundou uma família. Esse é mais um mérito do filme, que não se entrega ao lugar comum e encaminha o personagem para sua libertação depois de mais um rito de passagem, quando enfrenta ressentimento e dor por ter embarcado naquela noite. O resultado é que ele consegue enfim a liberdade, pois pode agora escolher o próprio caminho e dispõe de todo o tempo do mundo. Não é outro o significado daquele sorriso final de Tom Hanks, o rei da empatia no cinema, o ator que tem em todo mundo um vasto clube informal de admiradores, que sabem de cór cada cena que ele fez e gostam tanto dos filmes considerados “menores”, quanto as grandes realizações, como este inesquecível “Náufrago”. O filme foi um presente da TV Globo (Tela quente, segunda-feira, 12/04/04), essa unha-de-fome inominável, que senta em cima de tudo para vender seu peixe a conta-gotas (a começar pela escassez da informação prazerosa, o replay do gol focado apenas na conclusão e jamais na jogada inteira, tudo para economizar espaço para os comerciais). Mas Deus é maior e quem, como eu, perdeu a oportunidade de ver Tom Hanks na tela grande pagando mico na ilha deserta, pôde aproveitar a chance.

AMÉRICA VIVE - O americano não habituado à civilização praieira precisa aprender o que sabemos desde antes de nascer, abrir um côco. E quase morre para acender uma fogueira, coisa absolutamente fácil para nós, que contamos com um litro de álcool e dúzias de papel para fazer pegar qualquer carvãozinho. Como são diferentes de nós! E, nas mãos de seus grandes artistas, como conseguem ser universais! Tão universais que chegamos quase a nos identificar plenamente com eles, como se isso fosse possível. O importante é que aquela América que amamos – e que foi temporariamente derrotada nesta fase tenebrosa dos Bushs – mantém-se firme, apesar de tudo. É uma contradição, pois o filme paga pau para o país imperial que coloca as patas no ex-mundo comunista. Isso é um detalhe, que revela apenas o quanto os americanos estão presos em suas armadilhas. Mas a arte que eles conseguem produzir, apesar dessa prisão, é admirável. Não abrem mão de seu perfil, mas colocam à prova tudo o que são de verdade para entender melhor a humanidade a qual pertencem. Isso é o que vale. No fundo, entregar aquele pacote indevassável no mais ermo dos lugares significa libertar-se do jugo da missão traçada pelo império. É o indivíduo que sai ganhando. Ele submete-se para libertar-se. Ele adquire consciência quando descobre os mecanismos da sua prisão. Ele sai pela porta da frente. Ninguém mais poderá detê-lo.

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