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12 de abril de 2004
IAIÁ VIOLÊNCIA
A privatização da violência está nas raízes da formação do Brasil. O senhor de engenho era obrigado, por lei, a ter determinada quantidade de pólvora e armas, tudo armazenado num depósito com dimensões definidas no papel. A violência, que deveria ser monopólio legal do Estado, formou-se então a partir da única reforma agrária do Brasil, as capitanias hereditárias – conforme sacada de Millor Fernandes. Senhora de muitos caprichos, ela migrou para todos os setores sociais e hoje inferniza o País, especialmente no Rio, onde fica claro que a ausência de Estado nas favelas deu lugar à bandidagem armada. Mas essa situação não é exclusiva do Rio, está explícita em todos os momentos da nossa vida.
GESTOS SENHORIAIS – Como a violência não é exclusiva do Estado, todos se acham no direito de exercê-la. Nesta terra de escravos, todo mundo é senhor. Vejam no trânsito, quando alguém “permite”, com sacudidinhas de mão e braço, que você pode passar, ou que você deve parar. Ligar a lanterna tem o mesmo peso do farol (ou sinaleira, como dizemos em Uruguaiana). O sujeito liga o pisca-pisca e entra, já que sua vontade é a lei. Nas entrevistas da televisão, é comum a expressão “tá!?”, professoral, sinal de que a pessoa não está apenas emitindo uma opinião, está ditando uma ordem. O sucateamento dos direitos trabalhistas também trouxe uma grande distorção. De um lado, o jugo escravo nas empresas, que terceirizaram tudo, ou então a situação de inadimplência empresarial que não consegue honrar tanta burocracia. De outro, como as leis continuam em vigor, no papel, existe muita chantagem por parte de funcionários, que por qualquer coisa processam os patrões. Ou seja, sem um Estado organizado, a violência corre solta por todos os lados. Mas vamos a mais gestos: o dedinho levantado, o nariz empinado, o tom deliberativo, a reação oposta a qualquer manifestação do Outro, quando qualquer frase reativa começa invariavelmente com um “não” etc. Escutar é submissão, dizer é mando (por isso todos falam ao mesmo tempo, ninguém se submete à fala alheia). Iaiá Violência amplia assim seu império. Ela torna-se insuportável quando anda armada. O braço para fora da “viatura” significa que o representante da lei extrapola o espaço que lhe foi confiado. O tiroteio pelo ponto de drogas é a prova que não há repressão eficiente ao tráfico, que corre solto. O desastre chamado Garotinho, que fez um interrogatório fajuto em frente às câmaras para incriminar um suspeito (negro!) é típico deste país sem um dono, o Estado, mas de muitos donos, os senhores de corte e cutelo, que assumem cargos públicos apenas paras aumentar seu poder de fogo.
MONOPÓLIO - A violência é o braço armado da indiferença. Como não se presta atenção em ninguém, só quando for colocado como vítima, o tiroteio atinge a todos, crianças, velhos, mulheres grávidas, a população “inerme” (desarmada, como dizem os livros antigos de memórias dos militares). A paz fica então sendo a verdadeira revolução. A paz só se consegue com o monopólio do exercício legal da violência por parte das instituições nacionais. É comum chamarem as Forças Armadas para dar conta do recado, principalmente quando o Exterior está de olho em nós, como aconteceu na Eco-92. Mas as Forças Armadas, garantia constitucional do território, não podem envolver-se na guerra civil de rua. Essa posição vem do tempo da perseguição a escravos fugidos, quando a polícia não conseguia dar conta do recado e quiseram, em vão, chamar o Exército. O que precisamos é de uma polícia competente e livre da corrupção, bem amparada pelo poder executivo. Equipamentos de última geração (tecnologia, principalmente o da identificação de criminosos), uma corregedoria de primeira, salários decentes. É um escândalo que a Polícia Federal esteja em greve. Não pela greve em si, mas pela situação que empurrou os policiais a essa decisão. A polícia não pode, por falta de remuneração adequada, fazer “bico”, ou seja, não pode participar da privatização da violência. Não é admissível que policiais vendam seus serviços a particulares. Não se pode permitir que flanelinas tomem posse o espaço público. Não se pode permitir que traficantes mandem no comércio.
LÁ COMO CÁ - O governo Lula, de tantas promessas, estatela-se no chão da mediocridade. Nada fez, nada faz, nada fará? Enquanto isso, a direita faz campanha contra a justiça, pregando a matança. No cinema americano, a mesma coisa: de um lado, a incompetência da polícia em resolver a parada, que fica a cargo dos heróis solitários; de outro, os filmecos de tribunal, que tentam provar que a justiça funciona. Como pode funcionar se o Estado imperial invade um país sem licença da ONU? Se os estrangeiros são tratados como terroristas? Se foram suspensos os direitos da cidadania em plena era Bush? A violência de lá tem outras raízes e outra natureza, mas identifica-se com violência colonial de cá. No fim, tudo vira a mesma coisa.
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