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26 de setembro de 2023

O FRUTO PROIBIDO

Nei Duclós 


Sombras transitam pelo piso

Sem a presença normal de um corpo fisico

São sinais enviados por espiritos

De mundos onde vive um dos meus filhos


Se é que existe como dizem os escritos

Esse lugar de provação e sacrificio

Que a morte coleciona à revelia 

É certo que nos cerca onde existimos

Na véspera de partir, nosso destino


Faço orações entre meus pedidos

Para que haja paz lá onde habitam

As almas libertas de suas cruzes

Mas ainda ao redor da vida antiga 


Varro o chão coberto dessas pistas 

Espalho as cinzas que aqui se depositam

Sentimentos e memórias esquecidas 

Mas em vão, elas voltam noite e dia


Não há como escapar desse mistério 

Nem vamos decifrar o ocorrido 

Na árvore da ciência o fruto proibido

Não temos acesso nem razão e nem motivo


Nei Duclós

PALCO

 Nei Duclós 


Com cada amor fui um personagem

Estudante, migrante, desocupado

Mas em nenhum fui eu de fato

Porque fugi para um lugar seguro: minha identidade 

A que guardo a sete chaves

Que joguei no mar mais fundo


Foi assim que escapei do compromisso

Não me formei a tempo na mocidade

Permaneci onde devia ter partido

Trabalhei com fama de vagabundo


Foi o coração que gerou esse rodízio

Cinzelei o rosto no detalhe das conquistas

Sem levantar suspeitas adaptei-me

Conforme a paixão ditava as cartas


Desapeguei na hora certa

Não amo mais, desci do palco

Tirei a fantasia de palhaço  


Nei Duclós

24 de setembro de 2023

ARGONAUTAS

 Nei Duclós 


Distâncias estelares foram feitas de propósito

Para que habitantes de corpos celestes não se invadam

E permaneçam em suas órbitas conhecidas e próximas.


Para cruzar trilhões de espaços no cosmo

Seria preciso muitas vidas

Mesmo que existam rotas paralelas, cordas virtuais ou túneis quânticos 


Mas uma geração topou o desafio

E planejou a viagem impossível e infinita para  chegar aos remotos mundos habitáveis


Nenhum tripulante da origem aportou em qualquer destino planejado

Só na milésima descendência conseguiram descer em segurança


Descobriram então que estavam exatamente no mesmo ponto de partida


Nei Duclós

DISCURSO

 Nei Duclós 


De que adianta ter lido se não lembro mais?

Passei a vida perdido no que ficou para trás 

Livros, artigos, assuntos gerais

Fiquei de castigo entre estantes lotadas

Páginas inúteis prontas para o lixo


Foi tudo um exercício da mente vazia

Que se ocupa à toa com os prazeres da escrita

Nada ficará no rastro do ofício

Caronte desembarca chegamos ao destino 

O tempo não fala , bizarro paraninfo

Esqueceu o discurso nas dobras de uma nuvem


Nei Duclós

MOTORES

 Nei Duclós 


Clássicos foram escritos quando o mundo era moço

Fábulas humanas em presença de monstros

Deuses que dividiam mulheres

Portos de ciclopes


Hoje, milhares de anos depois, somos velhos habitantes

De uma Terra exausta de histórias 


Por isso nos dedicamos a reler os pergaminhos

Em busca do clima recém saído do Paraíso


Nem se compara nossa literatura

Urbana vetusta bruta

Com as viagens em mares ignotos

Ilhas de misteriosos povos


Sabemos lidar com motores 

Que engasgam na primeira curva


Nei Duclós

18 de setembro de 2023

FOT0S ANTIGAS

 Nei Duclós 


Ninguém sorri nas fotos antigas 

As imagens reais, que ninguém manipula

Não havia motivos

Vida dura demais

Sem nada para distrair 


Por isso parece que estão nos advertindo

Que aqui não é um passeio

E coisas graves estão por acontecer


São pessoas cobertas de fuligem 

Nas indústrias nascentes

Ou de terra nos campos de colheita

São famílias de população imensa

Homens taciturnos, mulheres imóveis, crianças tristes


Ou talvez sejam posturas e rostos de assombro

Diante da Fotografia

Arte misteriosa

Que os deixariam congelados

Em suas biografias 


Falo de fotos realmente antigas

Fotos sem moldura, como casas destruidas pela guerra


Nei Duclós

17 de setembro de 2023

LAVOURA

 Nei Duclós 


Acordamos cedo na roça do poema

Sitiantes da palavra à margem do latifúndio 

Lavradores de grãos de ancestral linhagem

Colhedores dos frutos de pequena monta

Morangos e amoras de ductil manejo


Suamos antes do sol e sua faina

Sob o testemunho de friorentas estrelas

O horizonte muge de excessivas tetas

O resto do mundo dorme desprezando

esporos

Enquanto continuamos no chão bruto deste ofício


Os anjos entendem 

E providenciam nosso lanche


Nei Duclós

CONFESSO

 Nei Duclós 


Eu não tenho conteúdo 

Sou apenas continente

Não tenho nada por dentro

Nem por fora, só em frente

Meus contornos são o mar

E rios de água corrente


Não me venham com política 

Esse comércio de gente

Nem com a fé que já não tenho

Essas almas sem sossego

Não me enquadrem em suas leis 

E seus planos de carreira 

Nem digam que sou autêntico 

De conflito permanente

Nem que sou flor que se cheire

Fiel homem confidente 


Em tudo sou desconfiança 

Não permito que me atentem

Com projetos ou dinheiro 

Consultor de empreendimento

Sou um tigre em mato adentro

Rosno na sala, imprudente

Invado o quintal e de quebra

Mordo o joelho dos gigantes


Nei Duclós

DESCOBERTA

 Nei Duclós 


O Brasil não existia

Era uma praia distante

Antes de ser consagrada

À Cruz diante da indiada

Vieram leis dos capitães

E navios presos na barra

O comércio junto às armas

Os padres e a mulherada

Com os bandidos de arrasto

Antes mesmo das Histórias

E as mentiras datadas

Antes do samba e a piada

E dos batuques escravos

Palácios de pau a pique

Plantações de cana brava 


O mundo recém criado

Por deuses presos nas fraldas

Não era o Brasil por certo

Que Caminha registrava

Ou Cabral com sua pressa

De sair da terra errada

Nem sequer havia a ideia 

De bandeiras desfraldadas

Em lutas da

Independência 

País com seus dois Reinados

O ideal republicano

Parlamento versus farda


Era uma ilha perdida

Pela cegueira dos mapas

Gritos de terra à vista

Monte acima das águas

Que permaneceu oculta

Pelo destino traçado 


Hoje ninguém mais enxerga

Seu real significado

Será uma nação bizarra?

Indío vestindo casaca?

Ou será só o meu sonho

Acordando de repente

Com o barulho de balas?


Nei Duclós

15 de setembro de 2023

CIRCO

 Nei Duclós 


Nenhum namoro te tira do conforto

Não abres mão das rotinas do corpo

Academias encontros eventos

Almoço executivo faustos jantares

Happy hour no belo apartamento


Seria muito desplante meu te convidar para um drink

Em barzinho da moda e depois uns amassos

É pequena a visão do meu horizonte 

Mas basta me chamar e eu saio correndo

Interrompo a reunião, bato a mão na mesa


Depois me dizem que eu dei espetáculo

Fomentado por ela, palhaça de circo

Sou o playground de sua indiferença 


Não fosse o amor que sinto de misteriosa fonte

Eu já teria parado de pensar em ti

Por cinco minutos


Nei Duclós

13 de setembro de 2023

ESGRIMA

 Nei Duclós 


Você esqueceu que estávamos quites

Cada um para um lado foi o que me disse

Mas deste uma volta rasgando o escrito 

Ao contrário de mim o amor não desiste


E agora o que faço com esse abuso explícito 

Já não tenho o que tive no tempo contigo

Desprovido de sonho só restou o castigo

Que é esquecer de viver e ainda ser vivo


Desperta o desejo esse lance de esgrima 

Em que finjo fugir do meu compromisso

De acatar o destino que é a dor do carinho

A dança que o mundo impede e permite


Para a flor que jogamos longe na onda

Guardo a lembrança de um doce convívio 

Mas tem a cicatriz impondo seu ritmo

Enquanto tentamos resgatar o perdido


Nei Duclós

VESTÍGIOS

 Nei Duclós 


Descubro versos ocultos

Na barra do teu vestido

Vestígios de inúmeros poemas 

Que te dedico da noite até o dia


Se fizessem parte do que eu finalizo

Mudariam o rumo da minha poesia


Não que sejam  lampejos de epifania

Mas por pertencerem a espécies extintas 

E ganham um ar de algo nunca dito

Só encontrado em oração ou profecia

Em rolos de papiro nos jarros das grutas 


São os versos que não  chegam ao teu ouvido

Por descuido ou talvez excesso de amor distraído 


Nei Duclós

12 de setembro de 2023

SEM FACÇÃO

 Nei Duclós 


Do Mal quero distância e do Bem sou complicado 

Não sou de nenhum lado e do Centro sem amigos

Não procuro uma bandeira, o ideal foi para o espaço 

Lutar por liberdade igualmente eu não faço

Nem assino manifesto para justificar o voto 


Não procuro o que não acho

Não sou omisso nem falso 


Sou o que não é 

Vivo sem paixão 

Não conte comigo

Faça inverno ou verão


Nei Duclós

TENTAÇÃO

 Nei Duclós 


Fico muito estranho quando me aproximo

É um arrancar de peças de seda e de linho 

O algodão manchado na altura do vinho

A respiração molhada enquanto capricho 

Tentação colhida em situação limite 


Não importa quem somos no amasso dos gritos

Se um dia perdemos o que nos complica

Esse vínculo, raiz por termos nascido


O que vale é teu corpo vibrando comigo

No encontro fortuito em lugar do castigo

De sermos distantes, amantes em círculo 


O passo tremido ao tropeçar no abismo

E cair para sempre no fundo infinito


Nei Duclós

8 de setembro de 2023

SOCORRO

 Nei Duclós 


Não há lugar seguro sobre a Terra

Há apenas dilúvio, incêndio, cataclisma

O rio inunda a rua

Um dragão invade a sala

A montanha despenca no abismo


Telhados não servem de refúgio 

Todos os navios se desviam

De nenhum porto te acenam

Corpos descem o morro


Um monstro despertou o vento

O tempo te jogou fora

Não tente fugir para Marte

Não peça mais socorro 

Você agora faz parte

da equipe de salvamento 


Não se preocupe, me disseram

Espere Deus voltar de viagem 


Nei Duclós

6 de setembro de 2023

 CONFLITOS 


Discordo, mas ninguém precisa saber

Poupo a amizade do amargo dizer 

Tudo é superado pelo bem querer


O mar é suficiente com sua carga de conflitos

Ondas gigantescas

Seres de outros ritmos

Discos voadores que pousam no luar

Por que forçar a barra em brigas de bar?


Conte aquela história da ilha deserta

Bravos em naufrágio, sereias que te levam

Acordas de ressaca mas cheio de garra

Lá vem os camaradas gritando à vista, terra!


Nei Duclós

4 de setembro de 2023

TÚNICA

 Nei Duclós 


Os pássaros piam pontos luminosos na  costura da manhã 

Túnica úmida que veste o final  da estação 


Desperta, primavera

meu antigo coração 

Irmão do sol, gigante, que bebe a última gota de orvalho

que a noite produziu na escuridão 


Nei Duclós

1 de setembro de 2023

DESPERDÍCIO

 Nei Duclós 


Saiste das redes sociais e eu nem tinha notado

Não foi por falta de sinais mas por força do hábito

Que me trava quando costumam me avisar


Vi o caminhão de mudança, tuas queixas 

Mas não liguei o recado aos fatos


Não é indiferença 

Simplesmente estou lotado

Me ocupo demais em ser tão solitário

Não vejo solução e o trem passa

Te levando para longe, flor que o amor não colhe


Nei Duclós