Páginas

30 de janeiro de 2019

PURO VIDRO

Nei Duclós


Toco em você
É puro vidro
Fugiste e deixaste tua imagem
A pele é uma ilusão
E o amor um rastro de fuligem

Toco o bordão
O encontro não passa de bobagem
Diga, coração
Quando voltarás
para o corpo que abandonaste?



TEUS TESOUROS

Nei Duclós


Não distribua teus tesouros
Guarde-os em lugar seguro e inacessível
Fora de ti não fazem sentido
Só em tua alma emocionam

Se alguém por acaso desconfia
Sorria como se fosses generoso
Mas teu ninho precisa de consolo
E de paz, como no céu as nuvens.



O ARQUITETO

Nei Duclós


Mal o sol nasce o poema é sentinela
Guarda os ombros do dia com granito
Nada pode expulsar o corpo no exercício
Dele depende a lua no brutal rodízio

Mal rompe o dia e já estás entregue
Corpo amanhecido junto com o remorso
Pois vais fugir, pomba de conflitos

Eu te espero com as lanças em repouso
E o olho rutilo de gana e sacrifício
Para onde fores estarei contigo
Sou o arquiteto de um levante avulso



28 de janeiro de 2019

CANDELARIA: CUBA FRENTE E VERSO


Nei Duclós


O casal idoso que passa fome entre inúmeras dificuldades básicas, tendo ao fundo as arengas de Fidel sore o socialismo, é uma denúncia sobre o engessamento do regime comunista ou uma denúncia sobre as principais vítimas do boicote internacional liderado pelos Estados Unidos? O filme Candelária (2017, Netflix), de Jhonny Hendrix, que fez o roteiro junto com Maria Camila Arias, é o retrato terminal de um país onde tudo leva à morte: a doença, a miséria, a opressão, a idade, as casas caindo aos pedaços e o ambiente geral de decadência e ruína. Vejam o que o embargo faz, diz Fidel. Veja o que o socialismo faz, diz a história. É frente e verso de uma mesma realidade, intermediada pelo cinema.

Pois é de cinema que se trata, como sempre. O casal consegue uma câmara de vídeo e filma suas intimidades, redescobrindo a sensualidade e o humor, o que é aproveitado pelo vendedor de vídeos pornográficos, que começa a suborná-las para fazer mais filmagens. A pobreza leva o casal a uma redescoberta para o amargo sabor da perda da dignidade. Assim é o cinema: ele pode transcender como arruinar.

Nesse clima, criar é um crime. Não se pode empreender, tentar uns trocados fora dos esquemas oficiais, criar uns pintinhos só pela alegria de vê-los em casa. No fim tudo é reduzido a uma situação de morte do país, dos habitantes, do cenário. Fica o choro e a “nostalgia”, a saudade, pois os idosos são anteriores ao comunismo. Não que sintam saudade da ditadura antiga, mas não suportam a ditadura interminável de onde só há uma saída: a morte, ou a fuga pelo mar, o que pode significar também morte certa.



SONHO A DISTÂNCIA

Nei Duclós


Imagino que sou outro
De completo corpo
Te resgato entre os escombros
Respiração boca a boca

Em vez de torcer, aciono
Te arranco da lama
Carrego contigo também o cachorro

Tenho pressa, ainda demora o socorro
Não basta a água que te alcanço
É necessário meu uniforme de couro

Tenho nova pele, garras de lobo
Grito para que me ouças
Meus passos antecedem o helicóptero

Imagino que sou quem cava a terra
Em busca de um som, de um esforço
E não o que a distância se cansa
Por não evitar o terror

Sou o que chama e o que salva
O que não consegue no choro
O que sonha quando diz:
agora eu morro


27 de janeiro de 2019

MATÉRIA

Nei Duclós

Não te conheço, essa é a vantagem
Não devasso teu aceno de viagem
Permaneço num ponto sem histórias
Em que podemos nos ver, cara a cara

Nada sabes de minha trajetória
Não sou meu entorno, lixo da memória
Sou eu e minha carcaça, força predatória
Gana que encontra tua espessa doçura

Beleza, vilania da aparência
No fundo revela a pura essência
Atrais com teu mel o bruto caule
Formamos uma árvore, matéria de uma flor


24 de janeiro de 2019

HOUSTON

Nei Duclós


Eu sabia que eras Lua cheia
Mas não o lado oculto apenas
Que esconde ruínas de mundos perdidos
E serve de estação para naves invisíveis

Calculei que eu poderia pousar impune
Depois de uma viagem sem subterfúgios
Fincar minha bandeira trêmula
Tirar fotos pulando em tua areia

Mas me serviu de aviso
A mensagem era de lugar proibido
Por ser misterioso, enigma feminino
E que eu voltasse para a solidão de Houston

Hoje vejo como devassam teu esconderijo
Tu, que me negaste arrimo
Ignoro de propósito teu pedido de socorro
Temos um problema, dizes
Sim, o meu é o amor não correspondido




22 de janeiro de 2019

POEMA TORTO

Nei Duclós


Momento em que escutas o violino
Tocado por tuas mãos em repouso
E vislumbras sílabas de um poema torto
Quebra de vidros em teu virtuosismo

Desmaias, este é o sublime
Instante em que me aproximo
Beijo tua boca sem que consintas
Pois não me viste

Mas quando me enxergas
Traduzes amor com tua clorofila



ÁGUA DE VELUDO


Nei Duclós


Suave és meu sonho quando posso ver-te
Até o limite que serve de moldura
a porção de seio entreaberta e viva
cerras os olhos para teu mergulho

Parece que sorris, generosa planta
Mas é o prazer do desejo que me atiras
Sabes que não tenho poder de mando
Te exibes, beleza que é um martirio

Escorregue até meu territorio
Que mantenho intacto para tua vinda
Água de veludo, corpo de perfume
Nome que imploro na ponta da língua





TUDO PRONTO


Nei Duclós

O mundo jamais poderia ser meu
Tudo estava pronto quando cheguei
A arte, a técnica, as invenções
E o teu olhar
Onde me perdi
sem obter retorno



MUSA DE BARRO

Nei Duclós



Defeitos não te definem
Assim como as qualidades
Corres por fora
Musa de barro

Sopras a alma imortal
Bruta beldade
Forma que Deus, desesperado
Jogou fora
Para qie não se repita
A desumana presença
De uma espuma
A que se acha dentro de uma agenda
E é apenas voo
Onde repousa o movimento

Nada te inclui, sarça ardente



AINDA VERDE

Nei Duclós


Esqueci o que há pouco fiz
Apaguei a porção de tempo ainda verde
Abandonei na estrada dos gestos
Um dia lembrarei

Quando a lua te trouxer de volta
Numa viagem de trem
A memória é um capricho
Do amor que amadurece ao relento
O poema jogado no lixo
Dirá o quanto me calei




16 de janeiro de 2019

LEVEI O QUE PARECIA JUSTO


Nei Duclós 

Levei o que parecia justo
O beijo perdido e o coração enxuto
Deixei para que jogasses fora
O poema que fiz para tua glória
Fiquei na estação seguinte depois da despedida
O amor é uma ferrovia que escapa dos trilhos



DESPEDIDA NO CAIS


Nei Duclós


É inútil dividir o desconforto
Mais vale te encontrar no cais do porto
Desativado para despedidas
Transformado em memórias de viagens
Em que acenamos de filmes antigos

Vais partir. Levas o amor na bagagem
Que jogas do convés, Mata Hari


PONTARIA

Nei Duclós


As balas perdidas
são encontradas
no corpo dos inocentes
que não dispararam
diante dos disparos

Foram colocadas lá de propósito
pela pontaria que os culpados ocultam



ALÉM DO QUERER

Nei Duclós


Querer só você cai no vazio
se eu não incluir o que te forma
Teus amores, as criaturas
O lugar onde moras e tuas ruas

Querer só você é o meu desejo
E não os dons que te dão vida
Como se viver viesse sozinha
E o sonho confinado num embrulho

Sem teu entorno a paixão se cansa
Precisa assumir tuas conquistas
Passear em teu jardim, te fazer visita
Quando mais precisares sem ser minha
Assistir, no sentido de entender
Que a beleza existe à revelia
Do olhar egoista, da alma mesquinha

Só assim haverá prazer
O que perdura
E te deixa louca de loucura
 

12 de janeiro de 2019

JUSTO


Nei Duclós

Levei o que parecia justo
O beijo perdido e o coração enxuto
Deixei para que jogasses fora
O poema que fiz para tua glória
Fiquei na estação seguinte depois da despedida
O amor é uma ferrovia que escapa dos trilhos



ÚNICA

Nei Duclós


As palavras não tem dono
São como cães em viaduto
Fios de pipas que se soltam
Peixes que se debatem
Nas praias inacessiveis
Nuvens brancas transitórias
Navios fantasmas sem rumo

Palavras são provisórias
Dormem às vezes em teu pátio
Depois vão para o deserto

És caçador voluntário
De puçá feito de nylon
Querias todas as asas
Mas ficaste com a crisálida

Esperas que ela se forme
Ao longo da primavera
A fada que é o poema
Única fé que preservas





TEIMOSO

Nei Duclós


Fiquei por aqui mesmo
Limite dos pés no território
Não migro nem faço algazarra
Sou parte do tempo, não da vida
Que é um luxo cevado em amor próprio

Ocupo-me de nuvens e palavras
Que jamais dispensam o meu auxílio
Navego a terra em seu movimento
Imóvel como um pássaro teimoso
Qie no voo busca o equilíbrio




11 de janeiro de 2019

TRÊS LIVROS: A PALAVRA NO ESPELHO

Nei Duclós


Dos ebooks que tenho lançado ao longo deste início de século, três focam com ênfase o ofício do poema ; TROVADOR, SEMEADOR e PALARA NA PEDRA. Escrever sobre a arte da palavra tem sido recorrente na poesia contemporânea e em todos os meus lançamentos sempre há algo sobre esse tema fundamental. Mas esta trilogia poética aprofunda esse relacionamento entre o autor e sua obra, funcionando como vasos comunicantes entre o que faz o poema acontecer e o seu resultado.

Adquira esses três exemplares. Entre em contato pelo messenger ou neiduclos@gmail.com. O preço é promocional: 20 reais cada exemplar se forem comprados avulsos, e se for os três são 45 reais (o valor baixa para 15 cada um).

Compre livros. Leia poesia. Na sequência, os poemas que abrem cada um dos três livros.

TROVADOR

Sofri a vida toda de esquecimento
Agora lembrei: sou poeta da praça
e do vento. Obra de monumento
estátua de sal, portal do tempo
Imóvel , vejo o incêndio
que prova Deus mas não me vence

Ninguém diz o mesmo, é puro
voluntarismo, mania de querer
sem que aconteça. Inventei a lenda
dos versos que geram primavera
Estranho, sou mendigo de letras
no mercado absurdo dos compêndios

Colecionei estrelas jogadas fora
foscas de uso, cinco marias de anjos
com elas bato calçada em ritmo tonto
trago de volta o que perdi dizendo
quando ninguém escutava e era noite
Sou trovador sem eco, muda montanha

Sobrevivo porque esqueço, assim começo
todo dia como pastor de espantos
meu rebanho são expressões de medo
que cansam da dor e viram escândalo
Quando me for, haverá conserto
o mar lembrará de todos os poemas

SEMEADOR

Jogo os versos a esmo
para que se acostumem
com a minha arte

Eles se depositam ao relento
nos canteiros, nas calçadas
por toda parte

O que tens feito? perguntam
Sou um semeador de vento
Minha casa é o poema

PALAVRA NA PEDRA

Embaixo da pedra eu vi a palavra
ela se contorcia ao ser descoberta
quis escapar mas não sabia o norte
precisava de mim, pálido profeta

Recolhi num sussurro seu corpo fértil
e o joguei no monturo, remanso frágil
esperei que virasse a planta soberba
e suas sementes em vão germinassem

Meus olhos exaustos lembraram o poeta
que andava no ermo e topou descuidado
notei que a vida se oculta na treva
no lugar mais fundo, nas fontes primevas

Busquei o sentido neste mundo bizarro
cortei a navalha todo tipo de excesso
Voltei ao caminho e repeti o gesto
encontrei a palavra embaixo da pedra

Nei Duclós




9 de janeiro de 2019

PENETRA

Nei Duclós


Sei que não é para mim
a festa que fazes no alvoroço
Mas assim mesmo tenho
um pé no teu quintal de moça

Flor que não retenho
Abraço só no esboço
Sou um penetra em tua imagem
Que o mar me trouxe



8 de janeiro de 2019

O REGRESSO: SANGUE SOBRE A NEVE


Nei Duclós

O livro O Regresso (The Revenant, O Renascido), do advogado e político do comércio internacional Michael Punke pode ser baseado em história real (que é uma ficção como qualquer outra, como notaram os irmãos Cohen), mas na hora do Alejandro Iñarruti filmar em 2015 (e hoje na Netflix),não teve outro jeito: se baseou em Sangue sobre a neve (The Savages Inocentes, 1960), de Nicholas Ray, com Anthoný Quinn. Como sobreviver à neve roubando sangue e carne dos animais, entre outras peripécias?

O cineasta mexicano sabe (ou pelo menos pode desconfiar) que tudo na Sétima Arte é sobre si mesma. Pois um filme é a soma de soluções cinematográficas já criadas (quando surge uma nova, é imitada até o osso, como e o caso da estátua da Liberdade enterrada na areia na saga do Planeta dos Macacos).

O filme poderia ser a incorporação de muitas soluções e assim mesmo se transformar numa bela criação, pois como a música que se baseia em sete notas (e seus desdobramentos), alguns instrumentos fornecem o material necessário para inventar. É o caso do ataque de índios a cavalo nos imigrantes brancos cercados, criação de John Ford e que se tornou cânone no cinema, para desespero dos analistas indígenas americanos. Mas Iñarruti preferiu ou foi obrigado a não arriscar. Tinha nas mãos o material de um profissional do marketing e do comércio, não podia brincar em serviço. Então, dele índio a cavalo atacando branco acampado..

O filme vira uma sucessão de lugares comuns. A dura sobrevivência na água gelada que misteriosamente jamais gera hipotermia, os nativos americanos bonzinhos contra os malvados franceses, a perseguição ao vilão, primeiro no tiro e depois na faca, numa longa sucessão de barbaridades, do qual o filme se serve à vontade. E tem Leonardo de Caprio, que mesmo deixando crescer (talvez seja falsa) uma barba quilométrica continua não tendo biotipo para os personagens que interpreta. Vestir uma tonelada de pele de urso também não resolve .Ele se arrasta, ele atira, ele foge, ele luta o tempo todo e o filme se perde numa história movida a clichês.

Mas por ter custado caro acaba sendo bem feito, com boa sequências de ação. E e sempre é divertido torcer para o mocinho mesmo quem ele seja o protótipo de janota almofadinha virando repasto de urso meio tarado.

Essa de se esconder no cavalo morto eu tinha visto em outro filme, Qual? Não consigo lembrar.



4 de janeiro de 2019

DIÁRIO DE BORDO

Nei Duclós


O espaço para dizer é infinito
Mas no alto mar vale o domínio do ofício

Navegar é risco
não basta dispor de um navio
Leme e vela, convés e gávea
E um diário de bordo
para sobreviver aos naufrágios

É preciso ainda esperar
Saber agir no conflito
Misturar-se, ser a mão
na obra coletiva