Nei Duclós
O título The Mistifits, de John Huston, 1961, foi traduzido
corretamente para Os Desajustados, que é um dos significados da palavra, e é assim que é conhecido esse baita filme,
duro, cruel e poético do grande cineasta. Mas o mais apropriado seria no
sentido de Os Inadaptados. Falta de adaptação é o que define melhor os
personagens, interpretados por uma galeria de magníficos atores – Clark Gable,
que morreu logo depois em função do esforço exigido na obra; Marilyn Monroe, que
complicou as filmagens com sua briga com o roteirista, seu marido Arthur
Miller; Eli Wallach, que berra no desfecho para seu comparsa xingando-o, cena
imitada por Sergio Leone em O Bom, o Mau e o Feio; Telma Ritter, a inteligência
e o talento da veterana; e Montgomery Clift, complicado e brilhante.
Todos faziam parte do mundo normal. A bela divorciada (Marilyn)
saía de um casamento sólido, o cowboy (Clark) ficou velho e com ele sua
profissão, a de prear cavalos mustangs, que não serviam mais de montaria, mas
de ração para cães; o alcoólatra craque dos rodeios (Clift) que arrisca a vida
numa profissão perigosa e obsoleta para escapar de sua dependência materna e da
má lembrança da morte do pai; a separada (Thelma), que viu seu casamento acabar
mas ainda está ligada ao ex-marido, que vive com outra; e o piloto de guerra
(Wallach) que perdeu a embocadura da vida depois de ter bombardeado cidades e
matado gente. Ou seja, são inábeis, o tempo passou por cima deles. E não
rebeldes ou malditos, como sugere o termo desajustado, que estava na moda nos
anos 60, no auge da delinquência juvenil.
Outro detalhe importante é a coincidência entre as cenas de
laço aos cavalos em disparada e a captura dos rinocerontes no filme do ano
seguinte, Hatari. Ambos são brutais, mas Huston tem a precedência. Gable não
tinha mais idade para aquele tipo de cena. John Wayne em Hatari conseguiu se
sair bem, mas o ex-galã Clark sofreu
demais com as exigências do matador Huston e com os atrasos de Marilyn. Todos
estão excepcionais no filme, que narra o encontro de uma turma da pesada que
não tem mais lugar no mundo e acabam se confrontando num desfecho intolerável
para os espectadores sensíveis. São cenas impactantes, dignas de uma antologia
da Sétima Arte.
A obra tem dois momentos. O intimista, em que Clark e
Marilyn se aproximam, Clift e Wallach tentam conquistar a beldade, cada um com
suas fraquezas tentando sensibilizar a moça, e a velha senhora que tenta
parecer jovial conformada com sua solidão. Todos bebem hectolitros. Num filme
inacabado de Orson Welles, em que Huston faz o papel de um cineasta, há o
seguinte diálogo: Em que parte do roteiro estamos, Orson. E isso importa, John?
Sim, eu preciso saber a que altura da bebedeira eu me encontro.E o outro momento é a sequência que começa no rodeio cheio
de gente e termina no deserto na captura dos cavalos. Tudo por alguns trocados
e a insistência numa vida que já passou.
The Mistifits é o enterro de uma era do cinema, faroeste
inclusive, de atores que saem de cena, veteranos que se aposentam ou morrem, ou
jovens que acabam se suicidando ou revelando o lado sombrio das grandes
estrelas. Huston não veio à Terra a passeio. Ele é impiedoso e insuportável.
Mas seus filmes são encantadores na sua crueza. Ele também não se adaptou, pertence a uma linhagem de
cineastas que desapareceu junto com suas grandes obras. Nada se faz como
antigamente, quando a civilização tinha atingido seu esplendor. Seu cinema é
sobre uma forma contundente de fazer cinema. Vejam, diz Huston e seus pares,
este é o cinema. Lembrem disso.
Faltou dizer: o filme trabalha a ideia de liberdade na
América, em que as pessoas que foram jogadas fora querem continuar ganhando a
vida sem depender dos esquemas de empresa ou salário. Mas não conseguem
sobreviver com o que sabem fazer, que são atividades fora de uso. Decai assim o
sonho americano da terra da aventura e junto com ele o cinema, que perde sua identidade clássica e oferece o avesso de uma nacionalidade ferida..
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