Nei Duclós
Cinema é o
olhar em movimento. A imagem que se move junto ao som é acompanhada pela
percepção do espectador. Em Janela Indiscreta (1954), Hitchcock coloca em cena
uma representação da plateia, o olhar de quem está fora da ação. Esta se
desenvolve em cenas de cinema mudo através de uma janela debruçada para outras
janelas de apartamentos. O paradoxo é que a verdadeira ação é esta em primeiro
plano, do olhar que acompanha o assassinato e outros eventos no condomínio.
Hitchcock orienta o olhar do espectador para o que é visto e para quem vê.
Em certo
momento do filme, quando Grace Kelly enfim se convence de que há algo errado na
janela em frente, ela diz: Repita o que você viu e o que isso significa. É a
chave do filme. Precisamos contar o que estamos vendo e o seu significado para
que os outros compartilhem dessa percepção.
Uma obra
prima se presta a inúmeros vetores de leitura. Toda vez que a revejo,
beneficiado pelo repeteco obsessivo da TV
a cabo, descubro alguma coisa. Ou presto atenção no que me passou
lotado. Pode-se dizer que o filme é um conjunto de situações conjugais. Os
recém casados que se encerram por uma semana para cumprir a escrita, o casal de
idoso que pega chuva na varanda exposta de verão e perde o cachorrinho para o
facínora, a solitária que enfim encontra seu par no compositor do andar de
cima, a loira atlética que se livra dos pretendentes para abraçar seu amor que
veio do front, o vendedor que cuida da mulher e acaba brigando com ela e a
matando, e finalmente as situações
dentro do apartamento dos protagonistas. Além de Grace e Stewart, que ficam
colocando suas diferenças insolúveis em meio a uma paixão irresistível, há
também a fidelidade da empregada (Telma Ritter) que vive falando bem marido
enquanto esfrega freneticamente as costas do patrão. É um erotismo de sugestões
e conflitos, uma permissividade confinada à rigidez dos costumes.
Permeando
essas narrativas há também o debate sobre privacidade e ética . A guerra, a
televisão, a mídia internacional, a imposição das imagens, as revistas de
comportamento e fofoca expõem a cidadania permanentemente. O voyeur que
descobre o assassinato é também um voyeur profissional pois vive da fotografia
de guerra. O sujeito que coloca o olho no mundo, ao ser confinado em casa devido
a uma fratura na perna, volta suas lentes para a vizinhança e se pergunta se
está certo o que esta fazendo. Sua profissão é imobilizar a ação por meio da
fotografia. Só que ele agora está no cinema. Precisa da teleobjetiva para ver
de perto o que se move longe de si. Precisa da proximidade para entender a ação
sem ter de engessá-la.
O filme, no
original, chama-se Janela dos Fundos (Rear Window). É uma intervenção no íntimo
da vida doméstica, no anonimato das grandes cidades. As pessoas são situações
de solidão e desespero, vistas de longe. Tem a intimidade devassada por um
olhar desocupado. Isso está certo?
Hitchcock
não veio ao mundo a passeio. Era celebrado por Godard, que fixou a câmara, ou
seja, imobilizou o que estava em movimento. Talvez na intenção de libertar o
olhar do público da imobilidade, fazê-lo assumir o papel de protagonista diante
do cinema. Se a Sétima Arte fica imóvel, a percepção precisa se deslocar, se
movimentar. Hitchcock representou o olhar do espectador no protagonista. Godard
procurou desalienar essa visão fixa na ação que se desenvolve na tela, tratando
a ação didaticamente, de maneira descritiva diante do aprendizado da plateia. O
cinema ensina e a cultura se resolve.
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