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25 de março de 2016

CINEMA É O MELHOR LANCE




Nei Duclós

Cinema é uma falsificação, mas isso não significa que não exista como obra original. Faz parte da realidade, embora mostre personagens imaginários, cenários desenhados e construídos em estúdios ou manipulados em softwares, situações inventadas, diálogos que jamais existiram, histórias criadas por escritores e diretores, além de todo o aparato de marketing que se impõe ao olhar do espectador, fazendo sua cabeça inclusive antes de o filme ser lançado.

Mesmo quando o filme é “baseado em fatos reais” trata-se de uma versão, como notaram uma vez os irmãos Cohen, que debocham desse jargão muito comum na Sétima Arte. Paradoxalmente, o cinema das falsificações produz obras originais. É o rebento único da criatividade humana, que deixa de ser apenas a soma de todas as outras manifestações – teatro, pintura, escultura, música, História, memória – para existir como criatura à parte.

Giuseppe Tornatore, que aos 32 anos, em 1988, deslumbrou o mundo com sua obra prima Cinema Paradiso, mostra como o cinema é pura manipulação e como nos encanta por driblar nossa percepção. O que não é exclusivo da arte, pois a chamada realidade é também um truque da percepção. Cada um tem na mente o mundo que constrói em seu imaginário, e esse mundo some no desfecho da vida. Sobrevivem as outras versões, dos que permanecem em pé (não por muito tempo). No seu filme de 2013, O Melhor Lance, ele joga com essa dupla face da ficção, que é real pelo que falsifica, e falsa pelo que tenta reproduzir da realidade.

O leiloeiro milionário e bem sucedido interpretado por Geoffrey Rush é um falsificador. Arremata por uma bagatela telas que valem milhões (com ajuda do parceiro Donald Shutterland), cultiva uma castidade perversa ao colecionar centenas de quadros famosos de mulheres, usa luvas para não ter contato com tudo o que existe fora dele, especialmente o corpo feminino. O celibatário que esconde um tesouro na sua casa/hotel é o alvo favorito dos especialistas em falsificações, que procuram desmascará-lo atraindo-o para uma armadilha. Ele comete um erro: confia no que jamais acreditou, amizade e amor. Paga caro por seu equívoco, descobrindo-se solitário depois de ter provado o alvo predileto do seu pânico, a mulher.

A bela Sylvia Hoecks cumpre seu papel de sedução, fazendo-o acreditar que aparência, idade, taras, medos e raiva não contam quando duas pessoas se apaixonam. Nada mais falso do que a identificação espiritual, insumo do romantismo, território clássico do equívoco fatal, o que leva à morte nas paixões não correspondidas. O amor é exigente e cobra a conta. É cego para quem despreza suas evidências. Pelo menos nesta história, em que não há surpresa na disparidade entre os amantes.

Tudo o que parece verdadeiro revela-se falso ao virarmos um quadro para ver o que há no fundo dele, na assinatura que o falsificador imprime na imitação perfeita, na visão técnica de obras produzidas para provocar assombro. A mulher que vive confinada em frente à mansão onde se desenvolve a trama é uma autista obcecada por números. Ela ajuda a decifrar o nó que enredou o especialista. Mas é desprovida de graça. A chamada “realidade” não vale a pena, por isso a falsificamos. Ou talvez não tenha o cacife diante da sua concorrente, a imaginação.

Tornatore é do ramo. Seus filmes, como todos, são sobre cinema: o que vemos na tela não é só uma história de amor e suspense, é também e principalmente a composição de elementos audiovisuais para nos convencer que há um abismo entre o que existe e o que percebemos, mas que é irresistível nos entregar a eles. Fazemos a melhor oferta: queremos conquistar o sonho, o alvo do nosso desejo, mesmo que para isso sacrifiquemos a realidade, essa voyuer obcecada por algaritmos sequenciais e que fica de fora do melhor lance, o sentimento.

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