Páginas

31 de janeiro de 2016

DEIXEI O TEMPO TOMANDO CONTA



Nei Duclós

Deixei o tempo tomando conta
ruas sem vento,calçadas nuas
trouxas de pano sobre a cabeça
gentes do eito, século escuro

Fui falar mas travou o encanto
números trocados no subúrbio
o poema se desfaz, jogo de cena
o palco vazio que perdeu o texto

O ator testa o tardio desfecho
para a plateia ainda sem script
teatro fechado, bico de pena
relógio de bolso, lenço de seda

Gênios projetam sons de recreio
grupo pequeno, corpo pingente
deixei o acaso assumir a cadeira
tudo é presente, o resto conversa




30 de janeiro de 2016

TORTA BANDEIRA



Nei Duclós

O talento é invisível e perde a vaga
recolhe-se ao canto, som inaudível
mesmo fora continua produzindo
ao seu lado anjos limpam a garganta

Ignorado torna-se irreconhecível
mesmo para o autor, perfil partido
nas portas suntuosas agora mendigo
pedaço de pão no balcão do samba

Alguém passa ali e pronto pontifica
você erra por estar sempre triste
diz a infinita e falsa sabedoria
Aprume-se e faça o mundo contente

Quando todos se vão no final da festa
e palitam os dentes com o que resta 
o criador se move em direção ao porto
onde os navios antigos jamais dormem

Pássaros noturnos lhe fazem companhia
aguardam o sol e sua ladainha
autora boreal do estremecimento
despertar da luz depois da desistência

O poeta espelha-se no piso indiferente
onde pousam encomendas para longe
é levado ao convés de bandeira tortuosa
falará nova língua em mar e continentes


 RETORNO - Imagem desta edição: obra de Caspar David Friedrich.

27 de janeiro de 2016

OS ESTÁGIOS DA VIDA




Nei Duclós

O tempo não são as idades retratadas
velhos, moços, crianças diante das velas
nem os navios,que partem em várias fases
ou mesmo o mar, imponente de tão belo
Tons do crepúsculo também  não mostram
a verdadeira trajetória dessa saga
Os estágios não são o permanente ir e vir
rotina do enquadramento civilizatório

A pintura é o olhar do artista, não sua obra
e o tempo é a fonte que recebe o impacto
Mistério que se reveza nas criaturas
o contemplar das gentes olhando fundo
interlocução de humana referência
com aquilo que a transcende, a desavença
entre a vida sem sentido e o quadro eterno
Memória que recusa o fim de cada século


RETORNO -  Imagem desta edição: The Stages of Life, obra de Caspar David Friedrich, 1835

AS BICI E AS BIKE




Nei Duclós

Tínhamos três tipos de bicicletas em casa. As com rodinhas suplementares, para a petizada aprender a se equilibrar, a bicicleta dos rapazes e as das gurias. A nossa passava de irmão para irmão. Era vermelha e com os aparatos da época (a imagem dá uma ideia): lanternas dianteiras e traseiras, bomba de ar acoplada e com placa identificando o veículo. As bici dos garotos tinham um ferro, como se vê na foto (e onde eram levados os caronas) e as das moças não, para caber as enormes saias.

Cada bici possuía a sua placa oficial, outorgada pela prefeitura. Só assim era possível trafegar. Se houvesse acidentes, todos saberiam quais veículos estavam envolvidos. À noite, todos viam que ali estava um ciclista. Alguns colocavam luzinhas nas rodas, para enfeite ou para aumentar a segurança. Existiam também as com motor, em que se colocava no eixo da roda um dispositivo barulhento que dava grande velocidade ao piloto. Usava-se muito no meu colégio, o Santana.

Nós morávamos em frente e tanto na entrada quanto na saída multidões se atiravam nos seus veículos salvadores e aproveitavam a cidade plana, de ruas largas e poucos automóveis. Quando ficamos adolescentes, era considerado ridículo usar bicicleta, isso era coisa de meninos, não de homens, que iam a pé ou de carro. Mas as bici faziam parte da nossa vida e as oficinas especializadas viviam lotadas, para consertos, colocar parche no pneu furado (que tinha câmaras internas). Nos desfiles cívicos, eram grandemente apreciados os grupos que levavam orgulhosos suas bicicletas adornadas nas rodas de papel crepom colorido. Maior sucesso.

Hoje vejo um monte de descalabros. Primeiro, a gana assassina dos motoristas de carro e ônibus, que não respeitam ciclistas e atropelam e matam a torto e a direito, como num genocídio premeditado. Eles querem extinguir a “raça” que usa bicicleta. Segundo, a total falta de adereços fundamentais, pois como você vai enxergar uma bici no escuro, sem lanternas nem luzes, e que se confunde na escuridão? Isso jamais justifica o morticínio, mas haveria uma chance mínima para quem se identificasse na rodovia. Isso só se consegue com leis. As indústrias foram retirando os adereços para economizar e lucrar mais, pois era obrigatório vender com tudo em cima.

Outro descalabro é o que fizeram aqui na aldeia onde moro: transformaram em ciclovias uma grande parte das poucas calçadas (é tudo tomado pela especulação imobiliária, não sobra uma nesga de espaço para os pedestres) . O passeio público agora é dividido com ciclistas que trafegam a toda e reclamam aos berros se você está na frente. Uma vez eu levantei um braço na parada de ônibus avisando que eu queria embarcar e um degenerado veio veloz nas duas rodas bater em mim porque eu estava usurpando o sagrado direito dele. Sem falar no psicopata que quase atropelou minha neta que cruzava a ciclovia para ir á faixa de segurança na rua,a junto comigo e gritou para a menina: ciclovia, porra! Não tive tempo de revidar porque o covarde fugiu tão célere quando chegou.

Os crimes contra os ciclistas não justifica a vitimização das bicicletas.Certa vez eu cruzava a faixa de pedestres na avenida paulista e uma saradona com sua bike caríssima quase me pegou e eu reclamei. Faixa de segurança!  Ela parou se voltou para mim furiosa e gritou: E daí!? Estava vestida com todas as grifes da moda, musculosa e feroz. Pois existem as bici, que servem de transporte para quem não quer pagar ônibus e depender do péssimo transporte público, que carregam compras e crianças por todo lado, como se vê aqui e se via muito na minha cidade, Uruguaiana, e as bikes, que é exclusivamente para o esporte e os procedimentos para manter a forma.

Acho que deveriam ser enquadrados todos. Fazer como em Amsterdã, em que as bicicletas, aos milhares, tem seu espaço e cumprem as leis do trânsito e servem para toda obra, como nos conta meu filho Daniel Duclós em inúmeros posts. Tirar as ciclovias das calçadas e fazer ciclovias decentes, disputando com o leito carroçável, e não com os pedestres, pois isso é oportunismo e covardia, uma ideia de jerico das nossas falsas políticas públicas. Regular a velocidade pois tem energúmeno trafegando a toda sem olhar a quem. Impor o uso de lanternas e luzes e emplacamento obrigatório.  E punir rigorosamente os criminosos do trânsito, que matam ciclistas e ficam impunes.

Só assim vai funcionar.