Sempre que posso, me recolho à edícula da minha casa, onde
está uma parte da Biblioteca Miguel
Lobato Duclós. Lá leio trechos de O Livre Arbítrio, de Santo Agostinho, as
Confissões, de Rousseau, e outros títulos fundamentais. Mas são visitas
informais que faço com minhas limitações.
Miguel não se conformava com pouco. Quando estudava um autor
ia fundo. Fez isso, entre muitos outros, com Rousseau. Neste trabalho que está
em seu megasite Consciencia.org, ele estuda a abordagem do grande filósofo
sobre a origem da desigualdade. É um texto extenso? Nada, nós é que nos
acostumamos à leitura curta. Vamos estender nossas leituras para fazer jus ao
menino filósofo que nos deixou esse legado para que possamos melhorar.
http://www.consciencia.org/desigualdade_rousseau.shtml
“NATUREZA E DEPRAVAÇÃO:
DOUTRINA DA SOCIEDADE E TEORIA DA HISTÓRIA
NO DISCURSO SOBRE A ORIGEM DA DESIGUALDADE”
MIGUEL LOBATO DUCLÓS
Originalmente apresentado na FFLCH/USP
“A questão proposta pela Academia de Dijon engloba ao mesmo
tempo História e Teoria Social. Perguntar qual é a origem da desigualdade é
admitir que ela existe no tempo presente, nas relações sociais, e ir em busca
de sua génese em certo momento da história humana. Perguntar se ela é
autorizada pela lei natural é procurar estabelecer características comuns aos
homens, que estariam presentes em todas as raças humanas, por pertencerem ao
seu ser e a sua natureza. O Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da
Desigualdade entre os Homens pretende responder estas questões. Para isso,
Rousseau parte do pressuposto que a natureza dos homens está perdida, ou no
mínimo, obscurecida pelas abstrações sociais e vida civilizada.
Para contrapor à crueldade e hierarquias existentes na
sociedade, Rousseau criou a teoria do estado de natureza. O estado de natureza
era um tema clássico, já tratado por outros pensadores, como Thomas Hobbes e Hugo
Grotius, que criou o direito natural. No entanto, Rousseau lhe dará uma ótica
bastante original. Desde 1743 ele vinha estudando política, como Platão,
Aristóteles, Spinoza, Montesquieu, Grotius, Pufendorf, Hobbes e Locke.
No século XVIII, já estavam bastante difundidos os relatos
de viajantes sobre terras distantes e povos semi-selvagens, baseados sobretudo
nos povos das Américas e da Africa. Porém, indígenas e africanos não
representam o estado de natureza puro tal como descreve a teoria Rousseauana. Sem
dúvida as histórias de homens que viviam nus, fortes, sem vergonha de si e que
quase nunca ficavam doentes foi decisiva para ajudar Rousseau a elaborar sua
teoria. Ele cita exemplos destes povos, louvando sua força e independência, o
que diferia bastante de uma visão comum, que Inferiorizava estes povos. Apesar
de citá-los, Rousseau coloca que eles estavam longe do homem natural embora
mais perto do que o ocidental, simplesmente por apresentarem traços de
civilização, como sociabilidade, graus de hierarquia, artefatos, etc. Isto
seria impensável no estado de Natureza de Rousseau.
Como bem observa Starobinski,[1] existe uma dupla maneira de
encarar a questão da natureza do homem. Existe a bondade natural, que estaria
perdida devido à vida em sociedade. Mas ela estaria perdida para sempre ou o
homem ainda poderia retornar à ela? Há duas possibilidades, a natureza do homem
estaria perdida num passado incerto – o lugar do homem selvagem – ou ainda
estaria presente no homem contemporâneo, bastando para alcançá-la rasgar o véu
da civilidade. Rousseau chegou à conclusão que a natureza humana é boa por
reflexão e revelação, observando o mundo à sua volta. Seu raciocínio é
hipotético, não busca provas científicas de que as coisas seriam 6a maneira de
como a descreve. Ele crê ter entendido a natureza humana, sua Intenção vem do
fundo do coração. Se sua tese se tornou tão polémica é porque o homem,
arrancado do seio da natureza pela vida civil, desconhece a si próprio. O homem
apenas vive, as coisas são para ele de um modo que parece não haver outra
maneira. Sua visão de mundo é culturalmente determinada, seus Instrumentos para
conhecer o mundo não vem dos instintos, mas são racionais, ensinados. O homem
perdeu de tal maneira sua ligação com as forças telúricas e aspirações animais,
instintivas que ele não sabe a verdade sobre si mesmo. Por esse motivo,
Rousseau prefere a máxima do Templo de Delphos – "Conhece-te a ti
mesmo" do que todas as máximas dos moralistas. Talvez voltando-se para si,
o homem consiga encontrar a vastidão da natureza, sua simplicidade, sua
verdadeira natureza ou a modéstia que os conflitos efémeros de relacionamento o
Impedem de ver. O homem da natureza que descreve encontrou em si mesmo, quando
buscava uma meditação voltada para dentro nos campos de Saint-German. Ele
admite que é muito difícil, senão impossível, o homem voltar ao estado de
natureza. Tal volta teria de trazer consigo os aspectos positivos da
civilização Rousseau utiliza-se dos meios que condena, meios civilizados –
linguagem, escrita -para nos contar o que seu coração descobriu sobre o homem
originai e como ele se tornou o que é.
O homem no Estado de Natureza para Rousseau é solitário,
robusto, bem constituído, capaz de sobreviver apenas com a força de seu próprio
corpo, isso acontece em parte porque ele estaria em plena harmonia com a
natureza, entregue à fertilidade natural e abundância de alimentos desta. A
Terra estava coberta pela camada vegetativa, que é mais do que suficiente para
alimentar a humanidade. Não era preciso ir longe para conseguir frutos, raízes,
vegetais e grãos. A alimentação do homem natural seria frugívora. Rousseau
renega o caráter onívoro do homem e aponta características fisiológicas para
direcionar sua doutrina. As criaturas carnívoras seriam mais agressivas e
vorazes, por necessitarem matar para sobreviver. Rousseau inclui o homem como
animal frugívoro por ter o intestino longo, o que é desfavorável para digerir
carne, os caninos não são salientes e o número de filhotes de sua cria é
pequeno, como o de outros animais herbívoros, como a vaca, a égua, a zebra, a
elefanta, etc.
Embora o caráter científico exposto no Discurso esteja
totalmente superado hoje, o texto ainda encontra sua atualidade ao denunciar
certos aspectos da sociedade e apresentar alternativas. A importância histórica
do livro é notável. Dentre outros méritos, podemos destacar que Rousseau foi um
dos primeiros a colocar, na semelhança entre o homem e o macaco, um possível
parentesco. Chega a afirmar que o orangotango, um animal com hábitos e
habilidades parecidas com a do homem, seria uma espécie de homem selvagem e primitivo.
O Discurso da Desigualdade apresenta maior perspectiva
cultural, histórica e antropológica do que o Discurso das Ciências e das Artes.
Outro aspecto atual do texto é seu alerta contra a superpopulação.
O homem natural é sereno, vive disperso entre os outros
animais e não é ameaçado por eles. Os homens evitavam-se entre si, mas quando
se encontravam não era obrigatório que saísse briga. Quando havia confronto,
raramente resultava em uma coisa definitiva, como a morte. O homem natural tem
desejos e aspirações simples. São poucos os prazeres que a natureza lhe
reservou: o estômago cheio, uma companheira e repouso. Não há uma relação de
amor e família entre os dois sexos. A união sexual é a forma mais sincera de
amor, e quando um homem e uma mulher se unem, nada garante que ela se lembrará,
dali a nove meses, da noite em que o filhote foi concebido. E ela mesma só cria
o filho o tempo que for necessário para ele subsistir sozinho. A infância
extremamente longa do homem seria compensada por outras vantagens que a fêmea
tem, como dois braços para carregar o filho.
É interessante notar que Rousseau ao mesmo tempo aproxima e
afasta os homens dos animais. Seria bom entender porque o homem natural é
solitário, justo ele, que é o mais sociável dos animais. Baseando-se no exemplo
de Rousseau acima citado, poderíamos comparar o homem natura! com o macaco. O
macaco também é primata e vive em bandos. Assim como eles, diversos animais só
conseguem caçar e perpetuar a espécie com a colaboração mútua de um bando ou família.
Muitos animais, das formigas aos leões, são extremamente sociáveis. Nestas
espécies sempre há alguém que lidera o bando, havendo, portanto, uma certa
desigualdade natural. Nos macacos é o macho dominante, nos elefantes é a
matriarca, nos lobos é o macho alfa No entanto, o homem natural de Rousseau é
solitário, e tão feroz quantos outros animais. No estado de natureza o homem
não utiliza as mãos, não produz artefatos, mas é capaz de safarem uma luta, se
ela porventura ocorrer. Ora, nunca é demais observar que se dependesse
unicamente de seu corpo para sobreviver, o homem estaria em desvantagens com
outros animais. Ele não tem pelos, não tem garras, não tem presas, perde muitas
vezes em força e rapidez. Mas Rousseau não está interessado na anatomia comparada,
que era pouco avançada na sua época. Ele parte do homem de aspecto físico igual
a hoje, com o corpo ereto, medindo a vastidão do céu com o olhar. Ele tem as
qualidades que precisa para viver aquela vida, nem mais, nem menos.
O homem natural não é racional. Existem nele dois princípios
anteriores à razão: o amor de si e a piedade. Rousseau fala que o amor de si é
uma paixão primitiva, inata, anterior a todas as outras. Esse amor levaria cada
animal a cuidar da sua preservação, e quando desenvolvido pela homem e pela
razão, cria a humanidade e a virtude. Rousseau alerta que ele não deve ser
confundido com o amor-próprio. O amor-próprio é um sentimento relativo nascido
na sociedade, que leva o indivíduo a dar mais importância a si do que a outro.
A piedade é descrita como uma "repugnância inata ao ver o semelhante
sofrer."[2] Essa repugnância se estenderia também à visão do sofrimento de
outras espécies, e mesmo os animais a sentiriam. A piedade aparece em Rousseau
como antagónica ao amor-próprio. Semelhantes se prontificam a ajudar o próximo
porque conseguem formar a idéia do mesmo sofrimento na sua própria pessoa. Esse
é mais um caráter da bondade natural: não há gosto pela morte, crueldade.
Rousseau fala da ternura da mãe pelo filhote, dos tristes mugidos do gado ao
entrar no abatedouro. Nenhum animal passaria sem inquietação pelo cadáver de um
semelhante e alguns chegam mesmo a sepultar os corpos.
Apesar disto ser observável, também se encontram exemplos
contrários na naturezar como o leão que mata os filhotes da leoa, ou alguns
animais que se envolvem em batalhas de morte para poderem acasalar. E
interessante notar que o homem natural, extremamente solitário, não mantinha
uma idéia de espécie e de ser parte de um grupo, e no entanto seu instinto o levava
a evitar a dor do semelhante.
A humanidade teria permanecido neste estágio por eras. O
tempo era então cíclico, o tempo da natureza, nascimento, crescimento,
reprodução, envelhecimento morte. Dia e noite se sucedendo sem grandes
mudanças. O homem não tinha uma consciência de si, querer e não querer eram as
únicas operações de sua alma. que era instintiva. Ele podia, como os animais,
ter idéias simples, combinado-as de maneira primitiva. Sua primeira linguagem
foi o grito da natureza.
Apesar deste homem primitivo ser proclamado bom, ele mesmo
não saberia dizer o que é bem ou mal. Como observa Starobinski[3], efe era bom
porque não exercia atividade suficiente para fazer o mal. Bem e mal são
conceitos morais que não existem no mundo de fato, no instinto da natureza. O
homem primitivo vive em um mundo pré-moral. Ele apenas vive, sem preceitos
religiosos, nem normas de conduta. O homem não havia ainda desenvolvido uma
subjetividade que o opusesse a natureza. Ele não tinha noção do tempo, apenas
de sua existência atual, presente. G saber não evoluía com o passar das
gerações, mas cada uma delas tinha que começar do nada. Rousseau fala que
quando um homem fazia uma descoberta, não a comunicava para os outros. Assim, a
arte perecia com o inventor.
O homem estava de tal modo incorporado ao movimento da
natureza, que não havia distinção entre o verdadeiro e o falso. Sua ligação com
o ambiente era límpida, seus sentimentos não eram contidos pelos costumes. Para
Rousseau, o homem tal como acima descrito, estaria apenas aceitando o legado da
natureza a ele. Ao contrário de muitos religiosos e teóricos, o homem teria
tanto direito de usufruir do mundo quanto qualquer animal. Ele não é o senhor
da Terra, e Deus não a recobriu de pastagens para ele usufruir. É urna espécie
animal dentre outras, destinado a ser sadio. E corno o homem teria saído deste
estado primitivo, no qual persistiu tanto tempo? Por uma causa externa,
extremamente contingente, não explicitada por Rousseau. Não há uma causa
determinada e inevitável. E também Rousseau não apresenta causas que não
ocorreram durante todo o tempo em que o homem permaneceu no estado natural. Mas
teria chegado um momento em que, com o aumento de população humana, surgiram
novos problemas, e os homens se viram obrigados a evoluir para sobreviver. As
diferenças começaram a acontecer por causa de terrenos, climas e estações, como
por exemplo um inverno longo. Nas florestas, o homem começa a usar a mão para
fazer arco e flecha, tomando-se um caçador e um guerreiro. Nos rios, Rousseau
faia de anzóis e linhas. Mas essa maneira de pescar é algo civilizada, os
selvagens caçam, mesmo é com uma lança. Um trovão qualquer teria feito o homem
descobrir o fogo, que o homem utilizou para preparar a carne.
Esta descrição do estado de natureza por Rousseau contrasta
com a da tradição. Hobbes havia falado do estado de natureza para justificar a
origem da sociedade. Para Hobbes, o homem no estado de natureza é competitivo e
egocêntrico. A sociedade regida peia política seria necessária para controlar o
instinto violento do homem. Para Pufendorf os homens são iguais no estado de
natureza e a autondade não é legitimada, ninguém manda em ninguém. A autoridade
política deriva de um contrato. Para Locke, a sociedade garante os direitos
naturais, como o direito à propriedade. Pufendorf opõe-se a Hobbes, pois diz
que no estado de natureza existe a sociabilidade e a razão. Rousseau recusa as
teorias dos dois. -Na tradição, Deus deu aos homens os instrumentos para a
formação da sociedade, como a razão. Para Pufendort, o homem é o animal mais
digno da natureza, e possui uma alma imortal. Para Rousseau a razão só veio com
a sociedade e com a linguagem. Rousseau observa que na teoria hobbesiana do
homem natural, havia urna multiplicidade de paixões, que só existem na
sociedade. O homem natural de Hobbes tem necessidade de dominação, o que não é
uma necessidade física. Os desejos do homem natural de Rousseau são todos
físicos.
Rousseau observa que por si só, o homem não teria conseguido
dar o passo que separa a sensação do conhecimento. Alguma coisa teria
acontecido. O que separa o puro sentimento da consciência deste sentimento é a
capacidade de representá-lo e relacioná-lo por analogia a outras vivências
anteriores. A cada sentimento diferente, prazer, dor, medo, uma reação
relacionada. Formando um inventário básico de vivências e respostas a esta
vivências, o homem seria capaz de criar um código que as represente. Rousseau
não explica no Discurso porque as línguas se formam, apenas diz que é provável
que elas tenham surgido com a família e o convívio familiar. Para Rousseau,
existe um paradoxo nessa origem. A linguagem só pode ter surgido com a
sociedade e o pensamento, que só podem ser concebidos pela linguagem.
O homem se separou da natureza ao romper com sua vida
instintiva de ciclos. Quando consegue conhecer, utilizar-se de outros meios
para sobreviver que não o corpo – como pele, fogo, e armas – o homem cria a
noção de um processo histórico, não no sentido que é hoje é entendido, mas sim
de um sistema de relações e saberes que são transmitidos oralmente, e vão
evoluindo. Assim, o homem começa realmente a fazer sua História, e se
desvincula da natureza. Rousseau identifica já neste primeiro momento é uma
desigualdade, que viria da comparação de si com os outros. Existem dois tipos
de desigualdade. Uma, de fato, natural, que não significa superioridade.
Pertence à ela a idade, agilidade, tamanho. A segunda seria moral, como a
diferença de dinheiro, de cargos, de conhecimento.
Quando o homem toma consciência de sua superioridade para
com os outros animais, e também para com seus semelhantes, nasce nele o
sentimento do orgulho. E quando ele volta o olhar para si próprio, e compara-se
com os outros animais, que descobre o espírito de competição. O homem antes não
competia, graças à abundância de alimentos e o fato de não ser ameaçado por
outros. Mas com o crescimento da população e o início da relação entre os
indivíduos, nasce a inevitável diferença entre as alternativas de ação de cada
um. E aquele que tinha mais êxito nas ações importantes para sobreviver, como
caçar, ser ágil, ser forte, consegue colocar-se dentro do âmbito social em uma
escala gradativa. Com estas relações, o homem pôde perceber que algumas vezes
era necessário a assistência do semelhante para melhor resultado em algumas
realizações. O indivíduo, de acordo com sua atividade, adquire certa
importância social. Alguns são melhores caçadores, outros conseguem lenha e
fogo com mais facilidade e outros ainda são mais aptos a construir as cabanas.
De Início as associações foram familiares, depois formaram-se tribos, onde
estavam presentes Indivíduos com vários graus de parentesco.
A indústria se aperfeiçoava com o esclarecimento do
espírito. Durante muito tempo, a língua universal não foi multo mais
sofisticada do que alguns gritos e grunhidos, que exprimiam diretamente uma
idéia ligada a algo objetivo. Com a formação da família, surgiram
relacionamentos, e com eles nasceu uma forma de amor: o amor paterno. Doces
sentimentos de afeição entre pai e mãe marcaram o início da diferença entre os
sexos. O homem e mulher, que até então viviam igualmente, começaram a dividir
as responsabilidades. A mulher passou a ser mais sedentária, ficando na cabana
e cuidando dos filhotes. O fato de terem se unido, tornou os homens menos
selvagens e ferozes.
Esta descrição da possível evolução do homem feita por
Rousseau forma uma teoria histórica baseada em dedução e indução. O motivo para
buscá-la, como já vimos, não é racional, mas sim um momento de iluminação de
Rousseau, relativo à sua visão da sociedade. A teoria histórica de Rousseau
busca explicar o reflexo da desigualdade em suas origens. Rousseau observa a
injustiça como elemento decisivo para que um grupo dominante imponha seus interesses
sobre outros. Tais exemplos já haviam sido tratados por outros e estavam
patentes em toda história. Rousseau é um conhecedor da cultura da Antiguidade
desde o tempo em que devorava os livros da biblioteca de seu Avo.
Porém, muitas das observações históricas não podem ser
comprovadas. A teoria sobre-o homem natura! de Rousseau parte da observação do
seu interior, do vislumbre de um caráter natural intocável, bondoso. Porém, sua
teoria da Evolução humana é comprovada pela sociedade ao seu redor. De acordo
com Starobinski, foi um momento traumático para o menino Rousseau que o levou a
perceber e separar a essência e a aparência. Sua condição de mas fraco foi
explorada injustamente por um crime que não cometeu – o pente quebrado da
senhorita Lambercier. Em outras ocasiões, Rousseau sentia um prazer
semi-erótico ao ser castigado pela senhorita Lambercier, que percebera e
começara a lhe tratar como um menino grande. Esta surra representa na vida de
Rousseau o momento em que a ilusão foi rompida, e a inocência originai perdida.
Rousseau foi acusado muitas vezes por coisas que fez e que
não fez. Desde sua primeira noite no campo, quando se fecharam os portões de
Genebra e ele não mais pôde voltar, Rousseau vislumbrou a liberdade da
natureza. Lá, longe de tudo, sem viva-alma por perto, todas as acusações,
brigas e hierarquias que agitavam a vida na cidade pareciam mesquinhai A
natureza então era para ele bondosa. Oferecia um refúgio, onde podia se
realizar. Este sentimento de solidão e apego à natureza, que teorizado seria
uma das inspirações dos românticos, nunca abandonou Rousseau. Podia ser
encoberto, quase esquecido, no decorrer da vida. Mas nunca cessava por
completo. Em um rompante emocional, ou em alguma recordação mais forte, e lá
estava Rousseau de novo, tal como se descreve na primeira caminhada em Os
Devaneios do Caminhante Solitário: "Eis-me, portanto, sozinho na Terra,
tendo apenas a mim mesmo como irmão, próximo, amigo, companhia".
Rousseau toma consciência de seu problema, reflete sobre si,
até o problema se tornar uma aspiração. Quando fica sabendo do tema da Academia
de Dijon para o primeiro discurso, um arrebatamento lhe toma conta do corpo,
aquele tema havia sida feito para ele. Escrevendo, entãor encontra sua melhor
vingança. De acusado, passa a ser acusador. E o faz com tanta poesia e
sobriedade que é Impossível não ser logo reconhecido como grande escritor,
apesar de ter começado a escrever tardiamente e de suas idéias polémicas lhe
renderem inúmeros problemas.
E portanto este duplo caráter da obra rousseauana que deve
ser levado em conta. O Discurso Sobre a Desigualdade assume uma postura
radical, porém seu caráter é sóbrio e sua teoria tem volume científico.
Explicando como a desigualdade se desenvolveu, pouco a pouco no seio da
sociedade, Rousseau faz afirmações históricas plausíveis.
O primeiro homem a cercar um terreno e tomar posse dele,
originando assim a propriedade, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. A
Terra, antes de posse coletiva passa a ser individualizada, efetivam-se
territórios. Outra vez podemos fazer uma comparação com os animais. Muitos
animais tem territórios, e cercam-no com a urina e outras maneiras. Um
território significa para os predadores, uma região de caça e de procriação. O
animal defende seu território com garras e dentes, usando todas as forças. O
animal também modifica a natureza, criando tocas para se defender das
Intempéries e de outros predadores.
O livro de Rousseau não apresenta uma tese que possa dar
conta de todo o período descrito no aspecto que escolheu. Uma pessoa apenas,
armada de sua razão e cultura jamais conseguiria desobstruir aqueles períodos
nebulosos do passado. E este artigo também não dá conta de todo o pensamento de
Rousseau. O livro, apesar de tratar de um passado teórico que talvez não tenha
existido, tem valor prático. O valor de criticar noções estabelecidas,
preconceitos, de questionar se as coisas não poderiam ser diferentes. Rousseau
não tinha exemplos práticos que pudessem comprovar o que disse sobre o exemplo
natural. Era apenas evidente que o homem na cidade se acomoda, e que os
selvagens tinham os sentidos mais aguçados do que qualquer outro. Porém,
Rousseau Identifica os selvagens de sua época em um estágio já avançado. Como
afirma no Discurso:
"Assim que os homens começaram a apreciar-se mutuamente
e que a idéia de consideração formou-se em seu espírito, cada um pretendeu ter
direito a ela, e ninguém mais pôde deixar de desfrutar de tal estima
impunemente. Daí saíram os primeiros deveres da civilidade, mesmo entre os selvagens
e a partir de então toda afronta voluntária tornou-se um ultraje. (…) Eis
precisamente o grau que havia chegado a maioria dos povos selvagens que nos são
conhecidos".[4]
Para Rousseau, isto teria sido o indo do erro daqueles que
haviam descrito o homem no estado de natureza como maus. Eles não levaram em
conta que os povos selvagens conhecidos já se encontravam em um estágio
avançado. Na teoria de Rousseau podemos identificar um quadro evolutivo que
ocorreria não ao mesmo tempo em todos os povos, mas representaria uma sequência
na alma humana do homem saindo do estado de natureza para a civilidade. Neste
quadro, o homem sairia do estado de natureza, passaria pela vida familiar, indo
então para a Idade do Ouro, depois passaria a trabalhar o metal e a cultivar a
agricultura. Com o estabelecimento da propriedade, ocorreria o fim efetivo do
estado de natureza e começaria o estado civil, sendo necessário então o governo
civil, que descambaria para o despotismo.
Rousseau afirma que quando um ser humano passou a depender
do outro, começou a desigualdade. A moralidade vai se tornando mais severa, ao
mesmo tempo em que a vaidade se acirra. O fogo e o ferro juntos dão origem ao
trabalho. Quando se precisou dos homens para forjar o ferro, precisou-se de
outros para alimentá-los. Assim surgiu o trabalho e desenvolveu-se a
propriedade. A desigualdade está ligada à propriedade. Mesmo trabalhando tanto
quanto o outro, um tem de sofrer.
Com a desigualdade vem um estado de guerra, de todos contra
todos. Ao contrário de Hobbes, para Rousseau este estado se deu depois que o
homem saiu do estado de natureza. Para se desvencilhar disso, os vizinhos de
uma área precisaram entrar num acordo, estabelecer um contrato. Para Rousseau,
Isso é negativo, pois no resultado final favorece os ricos. As sociedades se
multiplicaram rapidamente. O acordo mútuo não impediu os massacres. O principal
direito do homem é a liberdade. Os pobres só tem ela a perder, mas pode-se
dizer que são escravos. Os povos instituíram chefes para assegurar a liberdade,
para escapar da escravidão, e não o contrário. Os príncipes devem obedecer às
íeis, serem submetidos a elas. O direito à propriedade é apenas convenção
humana, diz Rousseau, contrariando o que Locke disse.
Rousseau inicia então a descrição da evolução política. Diz
que o sangue humano foi sacrificado para a pretensa liberdade do Estado. No
progresso da desigualdade, o poder legítimo foi substituído pelo poder
arbitrário. Assim, em diferentes épocas tivemos ricos e pobres, poderosos e
fracos, senhores e escravos.
Como consequência do progresso e da desigualdade surgem
preconceitos contrários à razão e à virtude. Tendo o súdito apenas a vontade do
senhor, e o senhor apenas suas paixões, some a justiça, cria-se um novo estado
de natureza, fruto da corrupção.
O livro de Rousseau fala das diferenças existentes na
sociedade, que não são autorizadas pelo direito natural. A hierarquia e a
dependência mútua de todos os corpos da sociedade só é possível existir depois
de criarem-se linguagem e deveres abstratos. Como tal, é impossível que dois
homens semelhantes fisicamente seja desiguais por natureza. G que torna as
pessoas diferentes são fatores sociais, como educação, bom nascimento,
alimentação, etc. O homem secundarizou suas funções primárias, que perderam
parte de sua importância, e passou a se ocupar de assuntos que tem valor apenas
na esfera humana. Ele é de uma forma para si, para os outros e por natureza. É
o homem do homem. Como doutrina da sociedade, Rousseau procura a verdade. Ele
espera ter conseguido provar que a tão gloriosa civilização ocidental não é só
maravilhas. O progresso tem aspectos positivos e negativos. Se por um lado,
consegue façanhas e feitos inimagináveis, por outro seus costumes estão
depravados, e onde houver a exploração do homem pelo homem, haverá a
degeneração da bondade e liberdade naturais. Como teoria da história, Rousseau
partiu de um fato não comprovado, mas hipotético. Não é uma realidade efetiva,
é um fato filosófico. E o ponto de partida para a doutrina da sociedade. Porém,
apresenta especulações prováveis, e é bem encaixada o suficiente para
acreditarmos que a teoria que Rousseau levada através dos séculos encontra
correspondência na verdade.”
Miguel Lobato Duclós (1978-2015), siga no link
BIBLIOGRAFIA
1. DEN T, N.J.H. Dicionário Rousseau. Tradução de Cabral,
Álvaro. Coleção Dicionário de Filósofos. Jorge Zahar Editor
2. LALANDE, André. Vocabulário Técnico e critico de
Filosofia. Diversos Tradutores. Editora Martins Fontes. São Paulo, 1996.
3. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Obras completas, tomo 1.
Biografia Bastide,
Paui.
4.__________ , Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da
Desigualdade
entre os Homens. Tradução de Campos, Maria. Coleção
Clássicos de Bolso. Editora Ediouro. 1994
5.___________ , Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da
Desigualdade
entre os Homens. Tradução de Machado, Lourdes. Coieçao Os
Pensadores. Editora
Abril Cultural, 1973
6._________ , Discurso Sobre as Ciências e as Artes.
Tradução de Campos,
Maria. Coleção Clássicos de Bolso. Editora Ediouro. 1994
7. __________________ Os devaneios do caminhante Solitário.
Tradução de Moretto,
Fúlvia. Editora UnB. Brasília.
8. STAROBíNSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau – A
transparência e o Obstáculo. Tradução de Machado, Maria Lúcia. Editora
Companhia das Letras. São
Paulo, 1991
[1] STAROBINSKÍ, Jean. Jean-Jacques Rousseax – A
transparência e o Obstáculo. Página 31. Tradução de Machado. Maria Lúcia.
Editora Companhia das Letras. São Paulo, 1991.
[2] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso Sobre a Origem e os
Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens. Página 158. Tradução de Campos,
Sieni Maria. Editora Ediouro. 1994.
[3] STAROBINSKX Jean Op. Cit. Página 37.
[4]
ROUSSEAU. Jean-Jacques. Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da
Desigualdade Entre os Homens. Página 171. Tradução de Campos. Sierti Maria.
Editora Ediouro. 1994
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