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9 de novembro de 2015

HOLLYWOOD COM KANT E HABERMAS



No dia 24 de agosto de 2004, Miguel Lobato Duclós (1978-2015) abordou no seu blog filmes como Questão de Honra e O Informante à luz da filosofia. Ele tinha 26 anos. A liberdade de pensamento do filósofo menino.




“O PAÍS EM CONFLITO”

MIGUEL DUCLÓS

“Sabemos então que devemos entender os EUA como um complexo de grupos e pessoas que muitas vezes interage de forma conflitante, e não como um bloco único e organizado, pois isso é uma eficiente ilusão gerada pela coerência da propaganda externa americana. Parece haver uma contradição entre o modo como a informação é repassada e controlada pelos órgãos de estado e a imprensa, como nos dados sobre 11/09, e o espírito vanguardista americano – o mesmo capaz de criar a Internet – fundado na liberdade individual e livre iniciativa, que se orgulha de sua constituição e de conceitos como “democracia” e “liberdade”. O principal problema dos discursos de Bush é o de continuar usando essa retórica, quando ninguém mais a engole. Assim dita a hipocrisia reinante, e a invasão do Iraque, foi feita em defesa da “liberdade”, contra a “ditadura iraquiana” e contra o “terrorismo e as armas químicas”. A empreitada contra o “Eixo do Mal” que Bush diz estar fazendo se usa do prestígio mítico das forças armadas americanas na luta contra a Alemanha nazista durante a segunda guerra. É por isso que, no trailer do documentário Fahrenheit 9/11, de Michael Moore, Bush aparece cinicamente dando uma declaração desse calibre e depois mandando a reportagem se afastar, pois quer dar sua tacada de golfe em paz.

Os filmes de Hollywood, na medida em que sofrem investimentos milionários das grandes produtoras, trazem várias linhas principais de situações e temática, e limitações na sua liberdade de expressão quanto ao tratamento da cultura e política americana. Mas alguns segmentos da classe artística mantém aspectos liberais, quando produções significativas vem a tona e põe esse tema em pauta. Notamos isso na cerimônia de entrega do Oscar de 2003, onde todos e tudo fazem parte do espetáculo, já que alguns filmes foram aplaudidos e vaiados ao mesmo tempo, como o documentário vencedor de Moore.

Quando assisti o filme “O informante” com Russel Crowe e Al Pacino fui buscar críticas na internet e algumas o classificavam como irrelevante e chato. Ao meu ver esse filme é muito interessante, apesar da falta de “explosões” e “mortes”, pois mostra como a sociedade civil pode se articular em várias instâncias até furar o “bloqueio” imposto de cima para baixo. Nesse filme baseado em fatos reais, Crowe é o ex-executivo da indústria tabagista que concede entrevista ao programa 60 minutos da CBN ao descobrir que o alto escalão da empresa sabe do poder viciante e nocivo de alguns componentes do produto e nada faz em contra isso. O programa não vai ao ar no último minuto, vetado pela direção da editora. Al Pacino faz o papel de Bergman, o produtor do programa que fica decepcionado e tenta convencer Crowe a falar em público, mesmo sob represálias. No final, a notícia acaba rompendo a centralização e o tom uníssono da imprensa, sendo publicada pelo The New York Times.

O filme “Questão de Honra”, com Tom Cruise, Demi Moore e Jack Nicholson traz a questão da hierarquia militar e da justiça americana, sempre fetichizada em filmes de tribunal. Cruise é um jovem advogado sem futuro brilhante aparente que decide investigar a verdade num caso de assassinato. O ápice do filme ocorre quando ele enfrenta um general de alta patente no tribunal. O discurso de Jack Nicholson privilegia a defesa da nação por parte dos “falcões” vigilantes, que lidariam com o “mundo real” e ergueriam as barreiras para que os americanos pudessem viver em paz, encastelados e protegidos, mesmo que isso significasse algumas injustiças e ilusões. Cruise retruca violentamente em defesa das instituições legítimas, e da deliberação juridico-civil, buscando a defesa de um cidadão comum inocente mesmo em detrimento da suposta “ordem nacional”. A vitória final de Cruise parece passá-lo à maioridade, trazendo reconhecimento profissional e livrando-o da imaturidade apresentada ao longo do filme.

Isso nos lembra da famosa resposta de Kant à pergunta “O Que é Esclarecimento (Aufklarung)”? É a saída do homem da sua menoridade, da qual ele mesmo é culpado. Sapere Aude!, encoraja o filósofo. Ousar saber é o pré-requisito para o homem se situar no mundo. O que nunca foi usado é sempre débil, mas o homem não deve desistir de usar seu entendimento ainda que leve alguns tombos no início. O financista faz as minhas contas, o médico se ocupa de minha saúde, o padre de minha alma. Sou levado a repassar meu direito inalienável da liberdade de pensamento para “especialistas” à minha volta, sendo assim incapaz de caminhar por passos próprios. Da mesma maneira, nos dois filmes, o homem comum é encorajado a defender seus direitos e caminhar por conta própria, não transferindo a sua responsabilidade para um círculo superior ao seu.

Habermas, no influxo de seus mestres Adorno e Horkheimer, comenta a crítica à razão e o aparente fracasso do projeto iluminista de conhecimento. A razão instrumental é a razão com vista a fins, assim faz-se uso dela para atingir um objetivo e ignora-se as consequências periféricas, como as implicações morais. É a razão ocidental associada a um sistema econômico e religioso que muitas vezes se põe contrária à moral que se pretende universal. Buscando conciliar esses dois aspectos da razão prática, Habermas propõe a razão comunicativa como um sistema operante da sociedade. A deliberação e discussão ilimitada em diversos níveis, dos mais simples aos mais complexos, seriam capazes de vencer as dificuldades do subjetivo, garantindo universalidade – e moralidade – à razão, pela sua comunicabilidade e sociabilidade. Habermas reconhece os problemas do modelo de sociedade baseado na razão instrumental, mas também reconhece ganhos emancipatórios práticos e importantes em seus desdobramentos, como o fim da tortura dos loucos em hospitais psiquiátricos. Por isso que vai defender a continuidade do projeto da modernidade contra todos os que anunciaram o seu fracasso e substituição pelo pós-moderno, como os pensadores da tradição nietzscheana, notadamente.

Então, Habermas busca vencer as dificuldades das separações das esfera de valores por esse modelo dialógico de razão, que garante o debate democrático legítimo, polivalente e plural. Como é o exemplo também dos dois filmes citados. No entanto, essas pequenas vitórias somem quando o país passa por cima da ONU e vidas civis inocentes se perdem em guerra, como já vimos tantas vezes.”

Miguel Lobato Duclós no link

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