MIGUEL DUCLÓS
“Em grego a palavra alethéia significa desvelamento,
revelação. É composta pela partícula de negação a+lethen. Lethen significa
esquecimento. Então vemos que conhecer significa lembrar, não esquecer. Essa é
uma noção bem platônica, em Platão a alethéia é reminiscência, o conhecimento é
inato, pois a alma já contemplou a fonte do ser e do saber que são as Formas,
antes de nascer. O tempo das Formas é cíclico, o aion do Timeu, e daí advém sua
eternidade. Daí a famosa definição “o tempo é a imagem móvel da eternidade”.
Sócrates tenta demonstrar que o conhecimento é inato ao
fazer um rapaz escravo, sem estudo, demonstrar um teorema matemático, conforme
vemos no Mênon. Essa epistemologia platônica será depois contestada pela noção
empirista moderna de de Locke e sua tabula rase, onde tudo provém da
experiência. O inatismo é uma das características do racionalismo clássico,
aparecendo também em Descartes, que lembra que o homem só pode conceber a idéia
de um ser infinito porque isso seria como a marca de do pincel de um artista em
sua obra.
Lethos é também o rio da memória, como nos conta o seguinte
poema órfico
“Encontrarás à esquerda da Mansão do Hades, uma fonte,
E a seu lado, um branco cipreste.
Não te aproximas deste manancial.
Mas encontrarás um outro junto à Fonte da Memória,
De onde fluem águas frescas e, diante das quais há
guardiões.
Diz-lhes: “Sou um filho da terra e do céu estrelado;
Mas minha raça é do céu (somente). Vós próprio o sabeis.
E – ai de mim! – estou ressequido de sede, e pereço. Dai-me
rapidamente
A água fresca que flui da Fonte da Memória”.
E eles mesmos te darão de beber do manancial sagrado,
E desde então tu dominarás entre os outros heróis”.
No Fédon de Platão existe a recorrência desse mito, uma vez
que as almas tem de reencarnar tantas vezes quanto for necessário até que
possam se purificar e então habitar junto aos deuses. Toda a vida virtuosa de
Sócrates tem em vista este fim, o de conseguir passar pela secreta abertura,
que aparece também no mito de Er da República, e então evitar o esquecimento e
poder prosseguir.
Platão absorveu a metempsicose, além do orfismo, da escola
pitagória, que contava que as almas, depois da morte, iam para o Hades e lá
tinham de prosseguir ou reencarnar. O Hades seria um lugar muito complexo e de
caminhos tortuosos. A palavra grega para felicidade é eudaimonia . Ter um bom
(eu em grego) daimon significava ter um bom guia para quando se chegar no
Hades, já que a alma ficaria cega. Por isso a importância do daimon, demônio de
Sócrates, que aparece na Apologia de Sócrates. O demônio nesse momento é uma
concepção pagã, pré-cristã, não tendo a carga pejorativa posterior. O daimon é
apenas um intermediário entre os deuses e os homens.
Em Castaneda, o mundo foi feito e posto diante de nossos
olhos para ser usado. O mundo nos usa nos forçando a usá-lo e não há como
escapar dessa ordem. O objetivo da vida é desenvolver a consciência através da
vivência. Uma vez que o Absoluto é idêntico a si mesmo, alimentaria-se através
do empréstimo da consciência a todo ser vivo, que a enriqueceria através de
suas experiências de vida e no final a devolveria ao “mar escuro da
consciência. Os petiscos de consciência seriam desemaranhados pela Águia como
uma forma de se distrair e se auto-conhecer – falando em termos mundanos – já
que a consciência do ser vivo é do mesmo tipo que a auto-consciência do
universo.
O homem é então posto no mundo para esquecer, com a tarefa
de lembrar-se. Lembrar-se da sua ligação com o espírito, e do seu outro eu,
através da compreensão do regulamento, que funciona como um mapa. Toda a
segunda parte da obra é de recapitulação, lembrar-se de experiências vividas e
sedimentadas nas nuances segunda atenção, quando a pessoa é ela mesma e ainda
assim não é. O presente da Águia é justamente a abertura que permitiria ao ser
vivo prosseguir. Os videntes teriam descobertos que o mar escuro, na hora da
morte, não faz questão da força de vida, e sim da consciência. Por isso
desenvolveram uma estratégia de recapitulação, onde se revive a vida através do
“movimento do ponto de aglutinação”, e se devolve ao mar as experiência através
da vassoura mágica da respiração. O resultado final implicaria numa maneira
alternativa de morrer, já que o ser humano poderia se tornar um “ser
inorgânico”. É importante nessa associação, porém, lembrar que em Castaneda não
há de forma alguma “reencarnação” e esse autor chega mesmo a negar
veementemente essa possibilidade em uma de suas entrevistas.
Mas, para além do momento crucial da morte, cada mundo
percebido gera a impressão de ser total e nos faz esquecer dos outros. Assim,
quando se está triste, tudo parece triste, com a raiva também. O ser humano é
capaz de estar plenamente consciente de uma cena que presencia em seus mínimos
detalhes, mesmo que sua atenção não esteja focada nisso. Portanto, em várias
épocas da vida existiria um entorno perceptivo, conceitual que depois seria
esquecido para dar lugar a outro. Quando ele retorna, gera confusão e
estranhamento, pois na verdade ele sempre esteve lá, armazenado. É a chamada
sensação do deja vu ou o flashback. Quando foi mesmo que eu percebi isso?
De qualquer forma, uma boa pedida é não se deixar envolver
totalmente pelo poder envolvente de um momento, se ele estiver levando à
desesperança e niilismo.”
Miguel Lobato Duclós (1978-2015) em 11 de novembro de 2004 no
Blog do Miguel:
Texto lembrado por Ida Duclós.
RETORNO - Imagem desta edição: Miguel joga ping pong com colega na Universidade. A
presença do filósofo menino, para sempre lembrado.
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