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28 de junho de 2014

A SOLIDÃO INVENTA



Nei Duclós

A solidão inventa os amores
que não a atingem.
É o conforto da fantasia,
espuma que alisa o mar
e volta todos os dias

Tornam-se perenes companhias,
como se fossem vida,
mas são doces na vitrine
Você se serve às oito da matina
e acredita no sonho que cativa

No fim estar sozinho é teu
verdadeiro amor, do qual não abres
mão, lobo faminto. Foges do coração
que te ilumina, assustado com a voz
em busca do perdão, pobre porcelana

Despertas zonzo sem saber onde fica
o corpo que deixaste à deriva
sentes uma dor, mas há medicina
o que não passa é esse gesto em vão
em direção à flor inacessível



RETORNO - Imagem desta edição: Obra de Evandro Schiavone.

26 de junho de 2014

FLOR E SOMBRA



Nei Duclós

O que te arrebata só a tempestade declama.

Tua flor me faz sombra. Acolhe-me em muros de pedra. Resistente pétala.

Palavras são apenas pistas para o que acontece de fato. Entre nós há mais do que dizem os versos.

Não faz sentido a palavra sem teu rosto. Maquias de sonho a pele que me beija.

Quero ver quantos dias aguentas sem que eu te cante.

O que parece poesia é insônia. O que parece fantasia é poema.

Partiste depois de me ler. Sou o bilhete que marca a página do teu livro.

Demoraste na distância, como se o tempo fosse extenso.

Escolhi a solidão quando desmarcaste a ponte. Fiquei pescando peixes de açucena.

Eras minha até um certo tempo. Depois, desistimos, tempestade de areia.

Não se consuma o amor que combinamos. Fica um voo ainda na penumbra, como um assombro.

Foi só uma noite. Mas o espelho ficou marcado com tua imagem. Ela reaparece toda vez que o tempo se banha de memória.

Temos ritmos diferentes. Eu ando à toa e tu desfilas com mantos.

Nossa obra é o que escutamos de sopros avulsos, de criaturas sem rosto. Somos naves espaciais que não deixam registro. Estivemos aqui? Ninguém acredita.

Quando partimos, deixamos o coração na chuva. Ele é anfíbio, respira por memórias.

Nada fica de ti em ti mesmo. Tudo pertence a lugar nenhum.

Ter só o que passa é ser.

Não olhe para trás, coragem de muitas vidas. Tudo o que passa fica ao teu lado, solidão que pede auxílio.


PROVAS

Se as coisas não deram certo não é porque tenhas fracassado. É porque a vida costuma pedir provas do teu amor por ela.

O tempo todo estou nessa. Foi-se o tempo de promessas. Agora é ação, palavra na forja, coração aberto.

A cabeça fica nas nuvens. Lá é a oficina da doçura. O resto acompanha, mecanismos da forma. Obedecem o coração que há na fantasia.

Já passa do que nos dissemos, a dor de um dia estar longe. Agora é hora silente, espaço do noturno encontro.

Teu corpo ausente me convida para a dança. Toco violinos de puro esquecimento.

Tudo é provisório, menos o sentimento. Ele cicatriza, ardendo.

Foi só uma noite. Mas o espelho ficou marcado com tua imagem. Ela reaparece toda vez que o tempo se banha de memória.

Gostaste deste final de tarde? Agarrei tua cintura com vários golpes de mestre.

Não jogue beijos à traição quando estiver no estádio lotado. Pode aparecer no telão.

Se você aparecer no telão do estádio, não abane que nem um panaca. Olhe profundamente para o nada. Cool.

Fui me fazer uma visita. Estava fechado.

Quando partimos, deixamos o coração na chuva. Ele é anfíbio, respira por memórias.


INVISÍVEL

- Meu avô disse que o senhor não existe, disse o garoto.
- Escute os mais velhos, disse Jack o Marujo. Eles limpam o mundo dos excessos da fé.

- Estás sumido, disse o visitante.
- Sou invisível, como o vento, disse Jack o Marujo. Moro no mar, durmo na gávea.

Deixo sem ponto o verso que apronto. Aprovas antes de ver, só pelo sopro.

Nem me importo mais com isso, diz ela, todos os dias


FORÇAS

Escreva na água quando houver paz
disse o Mestre. Faça espuma
para acompanhar os pássaros

Junte forças para o teu poema
quando fores à guerra


VOZ E CORAÇÃO

Voz e coração. Disso és feita
perfeita em arte temporã
cantas para que haja corpo
jogo aberto antes da manhã

De brinde teu rosto satisfeito
flor feminina na luz de neón
melodia da tua leitura atenta
fios de prata em pernas de lã


SEGREDO

- Alguém por perto?
- Não.
- Algum encontro?
- Não.
- Você me ama?
- Muuuito.

- Não vou voltar, disse ela.
- Não precisa, disse ele. Nunca irei embora de ti.

- Dizes coisas desencontradas, opostas, disse ela. E não me fale que és muitos.
- Sou todos, disse ele.   

O COMANDANTE ROVÈRE E A JUIZA NADIA



Nei Duclós

Cena magnífica no episódio de ontem da série Boulevard Du Palais, que está no ar há 13 anos, e é transmitida com legendas em português pela TV5, canal 204, da NET (que faz parte do pacote extra de canais estrangeiros por apenas R$ 9,90). O comandante Philippe Rovère, detetive da polícia judiciária, espera seu grande amor oculto e não correspondido, a juiza Nadia Lintz, na saída do hospital.

Rovère, sessentão de capote até os pés e chapéu de feltro desabado, barba por fazer, alcoólatra e traumatizado há anos pela morte de um filho, mas que resolve todos os casos com seu jeito aparentemente ausente e distraído, é visto com agressividade pela juíza que pergunta o que ele estava fazendo ali.

- Me preocupo com você, disse ele, pois sabia que a mãe de Nadia, de 86 anos, acaba de morrer.
- Me deixe só, disse ela.
- Você está sempre sozinha, gritou Rovère, que não admitiu ser excluído daquele momento importante.
- Meu pai era um canalha, diz a juíza, e enriqueceu na guerra. Por isso me separei deles. Agora me deixe em paz.
- Essa foi a vida deles, diz Rovère. E a tua? Te escondes porque te sentes culpada de algo que não te diz respeito. É mais fácil fracassar do que encarar isso de frente.

A juíza pára, com um pequena caixa nas mãos onde estava os objetos deixados pela mãe morta.
- Porque tua mãe não era como querias, isso não impede de amá-la, diz o grande detetive.
E os dois se abraçam. Ela aos prantos. Rovêre não chora.
- Meu pai também já foi. Agora você é minha única família, diz ela.
- Meus pêsames, diz o grandalhão.

Coisa mais maravilhosa. Uma série sem pretensões, clássica em seu esquema de romance policial (série noire de Gallimard : Les Orpailleurs, de Thierry Jonquet, e sua continuação, Moloch), cuida dos detalhes, os personagens bem amarrados com atores competentes (Anne Richard e Jean-François Balmer) e diálogos que fazem chorar as pedras.

Adoro Boulevard Du Palais. Me chamem de comandante Rovère.



24 de junho de 2014

VOAR O MOMENTO



Nei Duclós

Em vez do sonho, te passo a biografia. Vida palmilhada em barreiras sem fim. Calçadas rotas, ruas de ruído, ar de fuligem. O poema como perspectiva.

Não tenho mais memória, liberdade é esquecimento. Faço como os pássaros, que voam o momento.

Cultivei muitos rostos, adaptados às arestas. Por isso tenho ângulos e florestas.

Fazer o que não gosta acrescenta. Fazer o que gosta melhora. Nesta gangorra compomos a obra.

Não é álibi, é contingência. Somos soldados rasos do tempo.

Em algum lugar te precisam. Só te acham se estiveres em movimento.

Vieste me buscar, flor selvagem. Perfume bárbaro, de mato cerrado.

Fui buscar poemas na despensa. A porta estava trancada. Risquei então na porta um verso a faca: o que fica na frente jamais passa.

Quando tudo te falta, te socorre a palavra. Habita teu coração exausto.

Pisei no pampa molhado. Barulho de flor amassada. Perdizes fogem ao largo. Nuvens espiam os pássaros.

Fazemos parte da natureza. Sou água, és correnteza

 Os fatos nada tem a ver com a previsões

Perdemos o poder de sedução. Tudo está claro demais para os enredos. Nos resta a decisão de continuar querendo o que nem sempre vale a pena.

Não me escondo, floração da serra. Faço a trilha orientado pelo andar do vento.

Aos vinte, não estamos prontos. Aos oitenta, passamos o ponto.



RETORNO - Imagem desta edição: foto de Margareth M. Ju.