Nei Duclós
Não basta denunciar, é preciso estratégia e competência da
linguagem na difusão da denúncia e o
apoio isento de pelo menos um poder da República, o Judiciário. Se não houver esses
dois elementos a denúncia poderá soar como calúnia, por mais comprovada que
seja. O exemplo dos Papéis do Pentágono é esclarecedor. O analista militar do
governo, funcionário da corporação Rand, Daniel Ellsberg (foto), contrabandeou
dos seus arquivos 7 mil páginas de documentos secretos sobre o Vietnã, como
mostra o excelente documentário “O homem mais perigoso da América”, disponível no
you tube, legendado. O New York Times levou dez dias para selecionar o material e cravar a capa.
Foi imediatamente calado pelo governo. Qual a estratégia a seguir?
Perseguido pelo FBI, Ellsberg disseminou cópias para 17
jornais e a denúncia se transformou numa hidra de múltiplas cabeças. Se uma era
destruída, outra se manifestava. O autor desse feito antológico foi inocentado
pelo Supremo americano, que cumpriu seu papel e o defendeu baseado na liberdade
de expressão garantida pela primeira emenda da Constituição. Mas os efeitos se
revelaram contraditórios,pelo menos nos primeiros momentos. Nixon foi reeleito,
apesar de ter sido desmascarado junto com outros 4 presidentes americanos,
desde Eisenhower . Mas teve de renunciar para evitar o impeachment, como
aconteceu aqui com o Fernando Collor nos anos 90, porque foi flagrado em
Watergate, que no fundo aconteceu em consequência da denúncia de Ellsberg.
O documentário explica: ao tentar se vingar do seu
ex-agente, Nixon violou os arquivos do psiquiatra de Ellsberg e no embalo
mandou invadir a sede da candidatura democrata no edifício de Watergate. O Washington
Post e dos repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein acertaram a mão ao mergulhar
na devassa da campanha da oposição feita pelo governo republicano. Foram
divulgando aos poucos, conforme a reportagem evoluiu e com isso desmascararam o
discurso do poder, que era flagrado na mentira a cada momento. A hiperdosagem
dos Papéis do Pentágono não teve a mesma eficiência (pelo menos diretamente) da
homeopatia mortal do caso Watergate.
Ellsberg declarou-se decepcionado com seus contemporâneos,
que ouvem, concordam, mas não tomam providencias, não saem da sua zona de
conforto. No Brasil, assistimos a um fenômeno parecido. Há décadas a imprensa
faz denúncias e tudo fica por isso mesmo, graças à Justiça que mantém os
acusados fora da cadeia, ao esquecimento do eleitor, à indiferença do eterno
presente e o hábito da dispersão. Os acusados aproveitam, ainda mais que a
mídia sofre de incompetência congênita de linguagem. Há excelentes matérias
sobre os escândalos e crimes das autoridades, mas normalmente se faz a denúncia
com texto de escrivão de BO, especialmente nas hard news, o que aborrece o
leitor, exausto diante dessa maneira tosca e recorrente de abordar temas importantes.
Com a incompetência
do ofício, tudo se parece e acaba perdendo o impacto. Inunda-se os espaços da
percepção coletiva com uma quantidade enorme de textos e imagens que acabam se
revelando inócuas. Figuras notórias, alvos das investigações, mantém uma
sobrevivência permanente, voltando à tona a toda hora para cometer mais crimes
e voltar à sombra.
A solução, entretanto, não está só na maneira eficiente de
divulgar as denúncias, mas o acompanhamento e intervenção da Justiça, o que ocorre
de maneira contraditória e muitas vezes decepcionante. Os poderes da República sofrem
de tentativas de aparelhamento do governo e os limites são bem conhecidos. Ao
cidadão resta tentar desconstruir o discurso oficial por meio da lucidez
cultivada pelo espírito habitado, a percepção atenta e os olhos livres. Tarefas
complicadas, mas não impossíveis. Só com um ambiente de massa, coletivo,
favorável à ética, e com precisão e competência no exercício da linguagem
descompromissada com os jargões do crime, poderemos resistir e reverter essa
situação de calamidade nacional.