Nei Duclós
Uma informação de Paulo Vanzolini (1924-2013) no
documentário sobre sua obra musical, Um homem de moral (2009), de Ricardo Dias,
é valiosa: a de que ele resolvia a melodia no momento em que resolvia a letra. A palavra assim é protagonista na canção ao
definir a linha melódica. Trata-se de um trabalho árduo, que Vanzolini fazia
questão de ressaltar ao explicar porque sua obra era, em termos, escassa. Mas
nem tanto: são 51 músicas, a maioria
samba clássico, na linha tradicional mas tomado pelo seu avesso, ou seja,
contrariando a imagem que se faz do seu imaginário. No lugar de uma boemia
airosa ou simplesmente de dor de corno, uma boemia “clínica e com grandeza”,
como diz num samba.
O que seria uma boemia clínica? Doentia no sentido médico,
obsessiva (dor de amor “24 horas por dia, sessenta minutos por hora”),
psiquiátrico. mas sem lamúria nem ostentação. Como um paciente que sofre de
amor sem fazer alarde de sua condição de amante frustrado ou traído. A relação
assim obedece ao que há de mais humano, por meio do conflito e não da
generalização amorosa, romântica e piegas, tão comum na pagodagem de hoje. Amor
em Vanzolini tira pedaço. Nasce torto, não deveria “nem ver a luz do dia”, mas cumpre o destino e isso é o que
torna o narrador do samba, gente e não uma caricatura.
Suas letras elaboradas até o máximo da sonoridade e da
clareza abordam o conflito amoroso entre os desiguais. O paulista que se queixa
da fuga da amada para a terra natal, o Ceará, a mulher que mata seu parceiro em
Ronda, as mulatas que fazem doce para os pretendentes. Essa relação sobrevive
aos trancos num país em guerra permanente, onde o punguista surrupia seus
trocos na praça Clóvis e leva junto a memória da amante representada pelo seu
retrato. Além da batalhas da guerra paraguaia e tantas outras cenas vivas que
seu talento disseminou no país que perdeu a identidade.
No documentário Um homem de moral, que são os bastidores dos
preparativos de um show em sua homenagem, a certa altura ele entra no estúdio
onde só tem fera, grandes compositores, intérpretes e instrumentistas. Paulinho
Nogueira faz blague e pergunta para ele: O que você está fazendo aqui? Ao que
Vanzolini pega carona dizendo: Eu não tenho nada com issso, não tenho nada com
isso. O grande compositor de escassos recursos vocais e que era zoólogo
renomado, apaixonado pelo Brasil e a Amazônia, era um outsider da cena musical,
um talismã da nossa sorte cada vez mais rala.
Foi uma brincadeira dos seus admiradores talentosos, que
viam nele uma fonte de música brasileira de primeira grandeza, fiel ao país que
o formou e gerou, e que a partir da marginalidade da cidadania encontro o núcleo
do drama nacional, transformado em sambas inesquecíveis. Ele nos inspira a escrever
sobre sua vida como se fosse um samba, caprichado na letra, fonte de sua arte .
Não sou especialista em Paulo Vanzolini, nem em música popular nem em zoologia
para compor um texto de adeus ao gênio que nos deixou aos 89 anos neste final
de abril de 2013. Posso apenas fazer esse balanço de alguns cruzamentos da sua
obra e presença na nossa vida culturalmente miserável, onde escasseiam os grandes
criadores.
Em outro documentário, No rio das amazonas (também de Ricardo
Dias, 1996), que passou recentemente num canal de TV a Cabo, é tocante o amor
que tem pela Amazônia e encantador o tom didático de sua narrativa, abrindo
caminho na selva selvagem da nossa ignorância sobre o grande patrimônio natural
abandonado. Doou sua biblioteca com 25 mil itens, avaliado em 300 mil dólares,
para ao USP onde trabalhou a vida inteira. Foi-se o gênio, ficamos nós, órfãos
de tanto talento.