Nei Duclós
Reli versos que te fiz sonâmbulo. Estavam acordados, sem
saber aonde, já que não identificaste a origem.
Na noite alta entreguei à fantasia
um pacote com teu rosto embrulhado para presente.
Mostraste teu quarto sem querer.
Somei com tua blusa preta cavada e braços tensos para apostar que ali se dará o
evento.
Tua cara quase amarrada, surpresa
por ser tão sem impacto, atrai não pela pose, xadrez metido a besta, mas pelo
fato supremo de ser mulher só tu mesma.
Treinamos o amor sem permitir
reparos. Não há mais vagas para quem aponta erros.
Beijo de saudade, grudado,
encharcado, lábio de goiabada.
Lua lua lua verte a chama de branda
textura, amarelo branca, violento coração de rua.
Convoquei a poesia para te colocar
na roda. Foges, mas sempre há um verso que cheira a flor da tua glória.
Depois que te capturo, vou me
embora. Há serpentes neste jardim sonoro. O que farás com tuas maçãs remotas?
Pode fingir que dorme. O sol já me
contou a novidade. Viu tua perna saindo do lençol junto com a aurora.
Perdi a vontade. Fique com seus
poemas, disse ela, que assim me livro do medo de perder-te para o que não te
pertence mas te suga os olhos.
Estou sendo sincero, deixei de te
querer. Que alívio ser um pobre inseto.
És seletiva. Aceitas tudo o que ele
diz. Se alguém mais falar, desconfias.
Não preciso mais de ti, bentevi.
Estou livre da tua auditoria, cantoria. Vá para outra freguesia, bigorrilha.
Fiquei por instantes sem o lance que
nos liga. Tenha paciência, daqui a pouco volta. O sinal será um súbito beijo em
parte surpreendente.
Levantar e baixar a ponte sobre o
fosso que cerca teu castelo pessoal é um trabalho de relação profunda com o teu
entorno, fonte da criatividade permanente, feita de entregas e resguardos.
É possível que, em pouco tempo, o
amor se desmanche, junto com a chuva que te pegou de chofre.
Exagerei no poema. Paciência. Vai
piorar.
Pássaros saem das tuas costas
fugindo de gaiola de chaves súbitas. Olhas para o voo com teu perfil de nuvem.
Amor, especiaria que exigiu viagem
de uma vida inteira para chegar até a tua porta. Mas nem provaste, habitante do
deserto.
Lua cheia flutua, encruada no escuro, volume envolvido em superfície,
imóvel na imagem, memória de sua fuga de noites sob o jugo de sentimentos
antigos
SONHO RADICAL
Só o sonho é radical quando a
realidade fecha todas as portas.
Precisamos escrever o espírito da
lei para que ela volte aos seus redutos de justiça. Um acordo entre iguais fora
da letra morta.
Não faça o balanço quando for
embora. Preste atenção apenas no pássaro que, indiferente, cisca perto do teu
território. Prepare o voo que ele elabora.
Não diga nada quando fazem o bem sem se darem conta. Não
estrague tudo, valorizando o valor que não depende do teu diagnóstico.
Ganhamos a vida para perdê-la.
Depois vamos atrás, sem alcançá-la.
Ignoro tuas riquezas, por isso
empobreço quando me imagino.
O mormaço cedeu. Foi como se a
primavera resolvesse ventar frio depois de se desesperar com seus incêndios.
RETORNO – Imagem desta edição: cena
do filme A Fonte das Mulheres.