Nei Duclós
Resenhei Náufrago em 2004 sem citar o roteirista, William Boyles Jr., veterano do Vietnã que fez sucesso
com esta e outras produções, como Apolo 13, Polar Express e Planeta dos Macacos
(2001). Escritor de primeira linha, Boyle mostra em Náufrago (lançado em 2000), um dos meus
filmes favoritos, a sucessão dos elementos fundamentais da natureza para narrar
uma história de sobrevivência. Esse foi o insight que tive quando vi o filme pela milionésima vez. No trecho que vai desde o acidente do avião
que cai no mar até a salvação do personagem principal por um navio cargueiro,
quatro anos depois, cada elemento da natureza é hegemônico na história.
Primeiro, a ÁGUA, que é o mergulho do executivo de FedEx
(que oficialmente não teria pago nada pelo merchandising, o que duvido muito)
no fundo do mar em plena borrasca. Nessa sequência da Água, é Tom Hanks vindo à
tona com seu barco inflável, é sua navegação à deriva e , já na praia, onde
começa a conviver com as ondas intermináveis, quando nada atrás de um navio que
acende uma luz distante além da arrebentação. É também a tentativa de pegar
peixes com uma lança, a luta desesperada
para beber de um côco etc.
O segundo elemento é a TERRA, que é quando ele aporta na
ilha deserta e precisa enfrentar sua própria incompetência de lidar com a
natureza. É quando ele se recolhe a uma gruta, o fundo da Terra, para poder
curar suas feridas e se abrigar da chuva, da Água que o ameaça. A Terra é o
abrigo, a Água o perigo. O alto pico da ilha, de onde se descortina o horizonte
indevassável e se consegue uma visão clara do isolamento total, é o lugar da
revelação e do desespero. Uma tentativa de suicídio no cume do monte é a
desesperança fincada na impossibilidade de a Terra, elemento salvador, ter
continuidade para que se possa seguir em frente. Mas no fim, a corda do
enforcado abandonada lá será a tábua salvadora para a viagem de volta.
O terceiro elemento da narrativa, nessa sequência, é o FOGO,
quando surge Wilson, o pequeno demônio que inspira o náufrago a conseguir a
primeira chama. O diabinho desenhado com sangue na bola de Vôlei é a ruptura
com uma série de derrotas. É a primeira vitória do sobrevivente rumo à sua
redenção. É o fogo sendo roubado dos deuses. É o segredo compartilhado na
solidariedade do novo amigo. É Prometeu ainda acorrentado, mas com esperança. O
tempo é o abutre que lhe come a carne, mas o indivíduo que consegue o Fogo
agora tem poder. Por isso a celebração ao estilo viking na grande fogueira que poderia
servir de sinal para um outro navio que se aventurar por aqueles ermos.
O quarto elemento é o AR, quando o náufrago encontra a vela
que o levará para fora da ilha. O vento que soprou para que conseguisse o Fogo
também vai soprar para que possa navegar na sua balsa. A filmagem dos detalhes
técnicos da expedição solitária em cima de alguns paus amarrados e ao lado do
inseparável Wilson é um primor de narrativa enxuta e eficiente. Elementos
náuticos, técnicos, reduzidos à extrema simplicidade, dão veracidade ao esforço
racional do homem que perdeu a razão no período de longa solidão. Seus conhecimentos
técnicos de navegação servem como antídoto para a loucura. O ar limpa a mente
do fogo do delírio, o desenraiza da ilha e usa a água não mais como ameaça
mortal, mas como veículo de uma viagem salvadora.
Toda essa brilhante sequência termina quando o pequeno diabo
do fogo, Wilson, se dilui na água, some no horizonte, naufraga para sempre. A
água levou seu melhor amigo e o protagonista entrega os pontos. Se livra dos
remos, se deita no que restou da sua jangada e aguarda a morte. Quando surge o
infindável cargueiro que desfila atrás do olhar opaco do náufrago, vemos uma
das cenas mais emocionantes da Sétima Arte: minimalista, enxuta, sem palavras,
apenas com gestos e o ruído magnífico do apito do navio que enxerga a vítima.
O filme é magistral no uso dos recursos do cinema. A
sequência da gruta em que ele deixa acesa a pequena lanterna que fica reduzida
a um foco que vai se apagando e mostrando o corpo iluminado de maneira sombria
na noite infinita, mostra a primeira manifestação da manhã quando um pequeno
raio de sol incide sobre seu olho. Temos assim alguns minutos preciosos, também
sem palavras, em que apenas sombra e luz contam um momento importante da saga
do homem que conseguiu driblar a morte certa.
Entre as várias cenas emocionantes, destaca-se a do funeral
do amigo que é desovado pela água na praia. Tom Hanks precisa dobrar as pernas
do morto para caber na cova, deixa a foto da família no bolso sujo da camisa,
escreve o nome e data do nascimento e morte na pedra e o enterra. Outra cena
sem nenhuma palavra, apenas com esse que é o grande ator do nosso tempo,
seguindo o roteiro de um escritor brilhante e sob a direção segura e perfeita
de Robert Zemeckis, que dirigiu Forrest Gump e duas sequências do maravilhoso
De Volta Para o Futuro (a II e a III).
Queria escrever poucas linhas sobre meus novos insighs e
acabei mergulhando um pouco mais neste filme que não canso de ver.