Nei Duclós
Filmes não focam países, mas cenários que fingem ser países,
ou melhor, aos quais são atribuídos a identidades nacionais ou geográficas.
Cenário também é personagem. Por isso uma
paisagem espanhola se passa por deserto do Oriente Médio em algumas cenas de Lawrence da Arabia, de David Lean, de 1962.
Mesmo quando há superposição explícita – o neo realismo filma a Itália do pós
guerra por exemplo – , existe apenas
cinema e não sociologia. O neo realismo não é sobre a Italia do pós guerra, é
sobre o cinema que focou ruinas urbanas, humanas e rurais com uma luz branca
estourada, carne raspando em pedra, choros e gritos de criaturas barbudas ou em
vestidos em trapos.
Vejo A Trapaça, de Fellini, de 1955, que foi acompanhado,
numa sessão de TV, por análises com elementos sociológicos e históricos, como
Vaticano, miséria, Italia etc. Mas o filme é sobre cinema, como todos. Ninguém
de sã consciência acha, por exemplo, que os figurantes que vestem elmos com
penachos sejam romanos da época de Cristo. Eles são figurantes que vestem elmos
com penachos. Essa é a permanência de uma
obra da Sétima Arte: o de ser apenas cinema, mesmo que se apresente como metáfora.
A linguagem audiovisual não deixa margem para dúvida. É de luz, sombra, cor,
som e forma que se trata e não de Europa ou décadas passadas.
Em A Trapaça, o vigarista vai ao cinema com a filha
adolescente e é desmascarado por suas vítimas, que o levam para a polícia. Na
sala escura, vê-se apenas os rostos dos espectadores e ouve-se o ruído do
filme. É o ambiente ideal para Fellini mostrar que está tratando de cinema. O
vilão tenta negociar sua libertação no canto da sala, mas é pressionado pelos
espectadores, que não querem ouvir a briga e sim assistir o filme. Não
interessa seu semelhante nem o drama que ele vive, o que interessa é o que está
passando na tela. Esse é o recado explícito do gênio.
Barthes lia a franja dos personagens do filme Julio Cesar, de
Joseph L. Mankiewicz, de 1953, como a marca da romanidade inventada por
Hollywood. Graças a Barthes, sabemos que se trata apenas da franja dos
personagens, e não do cabelo dos romanos, e que a metáfora é de autoria da indústria,
desmascarada pelo mestre do ensaio. Em A
Trapaça, o vigarista se veste de monsenhor e usa a batina para identificar seu
papel falso na hora de dar o golpe nos camponeses, católicos fervorosos. Mais
tarde, ao tirar a batina, tenta convencer os comparsas que não trouxe o
dinheiro do golpe, pois o tinha devolvido num ataque súbito de consciência. Os
bandidos não vão na conversa e arrancam o butim escondido na roupa e no sapato
do espertalhão. Assim é o cinema: uma explícita superposição de personagens que
se despem em cenários cinematográficos diante do público que acompanha o drama.
E não um tratado de ciências humanas.
Para analisar a Sétima Arte, criei um tipo ideal no sentido
weberiano, um padrão que serve para esclarecer por meio da aproximação ou distanciamento:
Todo filme é sobre cinema. Ele serve para enxugar o ensaio de suas veleidades
sociológicas e enxergar os filmes pelo que são verdadeiramente, um conjunto de
pontos luminosos acompanhados de sons. Esses pontos captam elementos que são
dispostos em inúmeros personagens, a começar pelo cenário.
Os americanos sabem disso. Certa vez perguntei para alguém
que tinha vivido nos Estados Unidos se o filme que estávamos vendo se passava realmente
em Seattle. Ele falou que a ação se desenvolvia aparentemente numa cidade só,
mas as cenas foram feitas em várias outras, como se fossem uma só. Sabemos que
as mãos de algumas atrizes são de atrizes especialistas em mãos e não das protagonistas.
Essa montagem frankestein é o que faz da Sétima Arte uma atividade voltada para
si mesma. Trabalha com ilusionismo, mas vemos os truques. Não engana ninguém, a
não ser absortos e sérissimos scholars que tentam ver nos filmes o que lhes
falta nas teorias.
É por isso que digo que não há pano de fundo nem
reconstituição de época no cinema. O que chamam de pano de fundo é a superfície
do filme, pois está posto, está na cara. Em E o Vento Levou, de Victor Fleming,
de 1939, não é o sul dos Estados Unidos que aparece, mas a disposição de
elementos do cenário em função de uma narrativa. Coincide com a identidade da
região enfocada, mas não é. Não vemos a Guerra da Secessão e sim um filme com
elementos que nos remetem à guerra da Secessão. Não é a mesma coisa. E O Vento
Levou é sobre cinema, como todos os outros filmes. O céu incendiado do final
com o juramento revanchista de Scarlet O´Hara de que jamais passaria fome outra
vez é reproduzido muitas vezes em outros filmes em sinal de homenagem, como
Cavalo de Guerra, de Steven Spielberg, de 2011. É filme citando filme. E não
época sendo reproduzida.
O vestuário e a caracterização dos personagens, que obedecem
às imposições do script, costumam mostrar furos que os cinéfilos adoram
apontar. O relógio de pulso de um soldado da Antiguidade, por exemplo. Um avião
que passa célere numa batalha medieval. É quando vemos o cinema expondo sua
natureza mais clara e profunda: é um filme que estamos vendo e nada mais. Todos
os figurantes que morrem em cena vão tomar um café logo depois de filmar.
RETORNO - Imagem
desta edição: cena de A Trapaça, de Fellini.