Nei Duclós
Começa pelo nosso nome. Somos palavras do registro de
nascimento em cartório: origem, filiação etc. Amor, memória: tudo pode ser
lido, já que compõem conjuntos orgânicos de signos, representações que acabam
tomando conta do que era considerado real. Somos regidos pelos discursos do
poder, nos insurgimos pelos textos e imagens, nos identificamos pelo que
dizemos e expressamos, existimos a partir do lugar ocupado nas linguagens em
conflito. Viver é um eterno debate entre argumentos opostos que são reduzidos a
opiniões. É o front de uma guerra interminável, de linguagens que surgem, se
reproduzem e somem.
Não se trata de uma camada de superficialidade sobre a o
real, é a própria realidade que se manifesta por meio da linguagem. O nome da nossa rua é referência importante,
a cidade onde nascemos ou moramos, o nível escolar que atingimos, a carta de
amor que inventou uma nova família, o próprio casamento, ritual de palavras
juramentadas. Nossas crenças giram em torno de livros sagrados e a palavra do
Senhor é definitiva. Deus ordenou o mundo por meio das Tábuas da Lei, onde
valia o que estava escrito.
Quando vemos um filme, lemos um livro, comparecemos a uma
exposição, vamos a uma audiência de música erudita ou a um show de música
popular, nossa percepção aborda diversas linguagens. Nossa capacidade de ler o
que está posto é a chave que decifra os enigmas da criação e da arte. Nada
existe fora do que é articulado em sinais visuais ou fonéticos, em sons e
imagens. Toda a cultura moderna se baseia nessa evidência. Os grandes
pensadores, de Levi-Strauss a Pierre Bourdieu, de Wittgenstein a Noam Chomsky,
de Sausurre a Foucalt, mostram que a chamada intermediação entre a percepção e o
que é considerado real é algo que tomou
conta da realidade, a própria linguagem.
Por isso é inútil tentar ver atrás do biombo, a charada está
no biombo. Um filme não tem uma guerra como “pano de fundo”, o pano de fundo é o
próprio filme, senão não estaria lá. Não existem conteúdos, e isso não
significa que só existam formas. Existem linguagens que nos transportam para
inúmeros insights. Não podemos perder a âncora, a origem desses lampejos de
conhecimento. Quando você lê um poema, não tenha dúvida: o poema é apenas ele,
não nos remete a outras coisas. Se as palavras do poema não derem conta do
recado então não adianta procurar nada através delas. As palavras são o próprio
dizer do poeta e é inútil ele fazer pose de romântico ou realista. Ele é o que
acaba de escrever.
Nossa época é a prova mais explícita dessa evidência. A
internet é a exposição 24 horas/dia de linguagens múltiplas que se cruzam e se
superpõem. Somos avatares, endereços postais, fotos. Somos a realidade formada
por linguagens e interagimos por meio desses signos. Quando partimos, somos não a lembrança que as
pessoas tem de nós, mas as marcas que deixamos na linguagem coletiva. Somos
este poema, este texto, este som. Cante minha canção que continuarei presente.
RETORNO - 1. Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: Billie Hollyday.