Nei Duclós
A hispanidade é um desafio. A pulverização dos países de
fala espanhola no nosso continente teria a ver com a falta de unidade da
matriz, onde um aragonês jamais se identifica com um catalão e onde Castela
acabou definindo o rosto de um mosaico geográfico, histórico e de etnias. Aqui
onde vivo, na Ilha de Santa Catarina, temos contato com a civilidade dos
portenhos e uruguaios e também com seus excessos, normais hoje, pois ninguém
escapa de um mundo estimulado pelo eletromagnetismo luminoso e ruidoso e a
falta de princípios generalizada.
Mas a hispanidade me invoca não apenas pela sem cerimônia
com que alguns de seus representantes nos tratam, achando que podem se adonar
de um rio da fronteira, por exemplo. Ou achar que podem nos engabelar com conversa
fiada sobre América Nuestra, um codinome que por coincidência é em espanhol.
Não se fala em América Nossa, que isso é poltiicamente incorreto, mas Nuestra,
que lembra El Che e a grande e genial Mercedes Sosa. Há muita milonga nessa
interação, a começar pelo tratamento feminino do pampa, que cruzando a linha
divisória, vira mulher.
Mas tudo isso é café pequeno, como se dizia antigamente,
diante do espetáculo de o rei espanhol posando ao lado de cadáveres de búfalos
e elefantes, num episódio bizarro que escandalizou o mundo e deixou os próprios
espanhóis furiosos. Quer dizer que o país está passando a maior crise devido à
tunga promovida pelos especuladores, que não se satisfazem com pouco, e querem
raspar os cofres de todas as nações, e o rei vai caçar elefante na Africa, como
se estivesse ainda no século 19?
Acompanho abismado esse rolo pelo jornal El Pais, de Madri e
lá fiquei sabendo que além de quebrar o quadril, o rei também envolveu o neto
no safári sinistro, já que o pobre adolescente acabou dando um tiro no pé e
teve de ser hospitalizado. Mas o pior ainda não citeie fiquei completamente zonzo
com a indiferença com que o noticiário tratou esse detalhe: o rei Juan Carlos
teria matado o irmão quando era jovem num acidente de caça! Deus me livre lançar
suspeitas de briga pelo do trono em cima do indigitado monarca. Mas que fica
estranho saber desse episódio, fica.
Mas isso nada tem a ver com hispanidade, dirão, pois a coroa
inglesa também se supera em escândalos e bizarrias. Sim, não é privilégio nem
da monarquia, pois nos nossos palácios de luxo republicanos vemos de tudo,
desde ladrão que se elege até chefe de máfia que legisla. Mas estou com a
Espanha atravessada desde o momento em que começou a barrar milhares de brasileiros
nos aeroportos, fazendo-os sofrer com esperas intermináveis e humilhações.
Fazem isso porque se sentem superiores? São bons demais para nós? Só entra quem
matar elefante? Ou estiver mancando por ter participado de um safári caríssimo?
O mais hilário é ler no jornal espanhol que o rei machucou
as cadeiras. Na fronteira se usa essa palavra, mas mais para cá fica engraçado
demais. Rei descadeirado. Talvez, pela reação de seus compatriotas, ele tenha
atingido um grande paquiderme: a própria monarquia, que representa como um dos
seus últimos baluartes.
RETORNO - 1. Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: elefante com cores da Espanha. A mídia deita e rola.