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16 de março de 2011
REMORSO
Nei Duclós (*)
Remorso é necessidade de perdão. O tempo lava, mas não elimina. Há sempre aquele sobressalto na memória, o murmúrio de autocrítica, o espanar de lembranças. Só me arrependo do que não fiz, costuma dizer a arrogância, faltando com a verdade. Pode acontecer, uma oportunidade perdida corroer o esôfago por décadas. Mas normalmente é sobre o que fazemos que o sentimento azedo se manifesta. O que dissemos na hora errada, o erro que insistimos em cometer apesar dos avisos, a exposição pública de algo que nem deveria existir.
Remorso está normalmente vinculado à covardia. Quando nos prevalecemos de alguém, fomos duros com quem não podia se defender, quando debochamos da inocência. Fantasiamos nossa coragem enquanto fugimos dela repetindo as mesmas maldades. Mas a consciência que nos esclarece sobre esses eventos trágicos é a porta para reverter tudo. Se somos capazes de nos arrepender, então temos potencial. Poderemos evitar algumas catástrofes e no fim usufruir de um balanço a nosso favor. Nunca vi você cometer um deslize, dirão os amigos, generosos e esquecidos.
Mas sabemos que a imperfeição é a regra e a nossa vontade de acertar um jogo de cabra cega. É como aquela brincadeira das reuniões familiares e aniversários, quando alguém de olhos vendados, armados de um porrete, tenta acertar uma alvo que se mexe, pendurado no teto. Fracassamos miseravelmente, mas às vezes podemos atingir o alvo. É quando detonamos nossas falsidades, orientados por uma percepção oculta, uma vocação ainda em repouso, uma vontade louca para se manifestar. Somos criaturas misteriosas que precisam habitar o espírito tão crivado de setas como aquele santo de olhar para o teto.
Lembro de todos os episódios em que me arrependi no minuto seguinte e com mais intensidade dos que não pude remendar imediatamente. Há ainda os que passam por nós sem que a gente perceba e só nos damos conta anos mais tarde, quando tudo se esfumou nas ruas baldias do tempo. É quando tentamos remendar o mal feito e reatar as amizades rompidas à toa, por obra de nossa desatenção, pressa ou simplesmente precariedade humana. Costuma dar certo. Os antigos conhecidos podem assim começar a amizade antiga, passar por cima do passado e compartilhar novos tesouros.
É preciso que o remorso seja a baliza, o parâmetro, para que possamos errar menos. Isso não acontece naturalmente. É preciso formação. A consciência não existe por acaso, ela é fruto da semeadura árdua que os adultos exercem sobre a tabula rasa dos seres que chegam do Outro Lado. Trazemos no berço a marca das iluminações possíveis, mas elas precisam ser despertadas. Senão viramos bichos, sem ninguém para trabalhar a alma aberta para todas as possibilidades.
Precisamos da experiência, dos mestres, das leis, da tradição, das ousadias, dos vislumbres, das artes, das inúmeras literaturas, dos gênios e de todos os anjos que habitam a terra, que nos cercam desde a infância e lamentam o que fazemos de errado, mas celebram quando, estocados pelo remorso, corremos para evitar um mal maior.
RETORNO - 1.(*) Crônica publicada na edição 332 do jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagem desta edição: Fantoche, obra de Ricky Bols.
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