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16 de março de 2011

O PALHAÇO INVISÍVEL


Nei Duclós (*)

Sonhos nada significam. Pelo menos, não obedecem às interpretações correntes, tiradas de alguma cartolas. Há a psicanálise e suas chaves, mas mesmo esse acervo sofre de padronização. Ficamos assim à mercê do bate-pronto dos comentários. Sonhei com um rio, você diz, e imediatamente vinte vozes se levantam: ah, é sexo. Com fogo? Sexo, certamente. E por aí vai. Esses dias falei que tinha sonhado com um palhaço com a cara do Ankito, aquele comediante das chanchadas dos anos 60. E que ele ficava invisível. Na mesma hora alguém falou: ou é sorte ou é morte!

Prefiro acha que é apenas um truque misterioso que captamos quando estamos imerso em outro mistério, o sono. Os motivos de precisarmos desligar oito horas por dia podem ser explicados à luz da lógica e da razão, mas no fundo não fazem sentido. Estrelas jamais dormem. A Lua fica de olho parado te vendo o tempo todo. As montanhas estão em vigília permanente. Os tubarões nunca param de se mexer. E, claro, os mosquitos e moscas, esses apenas fingem que descansam, porque estão sempre prontos a dar o bote. Portanto, dormir é um enigma e seu subproduto,o sonho, uma charada indecifrável.

O fato é que estava eu diante do palhaço com a cara do Ankito, sentados um em frente ao outro, numa espécie de pôquer. Nunca aprendi a jogar pôquer, por mais que me ensinem. Nas cenas de faroeste, fico pasmo com a linguagem cifrada em que os jogadores ficam mostrando as próprias cartas, blefando ou quebrando a banca por motivos desconhecidos. Porque o sujeito tem que pegar tudo o que está em cima da mesa depois de mostrar as cartas é um tremendo de um enigma para mim. Mas não costumo espalhar esse tipo de incompetência, pois senão vão querer me ensinar de novo e eu fingir que desta vez aprendi.

Pois como ia dizendo, estava eu diante do palhaço com a cara do Ankito e ele sumiu da minha vista. Só que alguém atrás de mim dispunha de uma luz que incidia sobre espíritos, silhuetas, aparições, assombrações. FoI então que a luz amarelada se projetou para o espaço que estava vazio na minha frente: eis que aparecia o palhaço todo transparente a roubar uma carta que estava na mesa. O sujeito roubava usando mágica, mas, como diz o Chapolin Colorado, não contavam com minha astúcia.

Esse tipo de cena que a minha mente produz não deve ter nenhum sentido. Ao contrário de outras, explícitas. Uma vez sonhei com meu colega Itamar, do ginásio, em que ele caía num precipício num acidente de ônibus e no dia seguinte abri o jornal e lá estava o evento, com a morte do meu amigo. Em outra, sonhei que um militar graduado na época do golpe do Chile em 1973 interferiu a favor de um amigo e logo depois recebi notícias de que estava salvo, na embaixada argentina em Santiago.

Ou seja, sou capaz de ter sonhos poderosos e premonitórios, como qualquer pessoa. Só acho que os sonhos, quando querem dizer algo, mostram na lata sem metáforas. Não precisam de palhaços invisíveis para nos convencer de alguma coisa. A não ser que o velho Ankito tenha algo a me dizer e não apenas me fazer rir, como na época em que o mundo tinha mais graça.

RETORNO - 1. Crônica publicada na edição 331 do jornal Momento de Uruguaiana. 2. Imagens desta edição: a foto maior tirei daqui e a menor é Ankito vestido de palhaço.

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