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3 de novembro de 2010
PAZ É CHÃO
Nei Duclós (*)
Quando morava no ruído, no ronco da megalópole, toda vez que escapava para o litoral eu conseguia dormir horas seguidas como se estivesse raspando o chão com as mãos, enquanto o corpo ficava suspenso numa atmosfera líquida e ritmada. Acordava novo, em paz. Não era um sonho, mas uma sensação. Quem mora fora da brutalidade urbana intumescida por décadas de política econômica ruim, que atraiu o país inteiro para algumas manchas urbanas doentes, sabe do que se trata. A terra guarda um abismo de serenidade perdida para sempre. Buscá-la por meio da trilha, do acampamento, da pescaria, da temporada na praia ou mesmo da mudança definitiva para lugares remotos, é uma forma de recuperar o que existe por direito e que foi usurpado. Pelo menos, esse direito não pode ser contestado.
Há uma capa de asfalto e brita impedindo que a planta do pé encontre sua base. A ansiedade que isso provoca produz sequelas. Quando milhões de pessoas saem às ruas portando relógio no pulso para contar minutos ou batimentos cardíacos, envergando roupas industriais e calçando inovações tecnológicas, me limito a lembrar os quintais, que faziam parte das casas e que hoje foram erradicados pela especulação imobiliária, que toma conta de parques, orlas, montanhas, planaltos, calçadas.
Aqui onde eu moro, a tendência é construir minúsculos apartamentos amontoados, tendo ao redor uma farta e generosa natureza. Em tese, existe espaço de sobra, mas providenciaram para que não haja nada para pedestres, não apenas nas avenidas (com algumas exceções), mas principalmente nas ruas e ruelas, ou servidões, como são chamadas. Sair de casa tem sido um transtorno, pois os carros se amontoam no espaço que sobrou. Não fosse o automóvel algo tão poderoso e precioso para a sociedade do espetáculo e do arrocho, até mesmo onde eles trafegam seria tomado pela trena carnívora da metragem quadrada vendida a ouro. Num praião como este, não há um só play-ground. Mas existem bairros-cemitérios aguardando os turistas que chegam aqui disputando a areia cada vez mais escassa.
Neste ano o mar avançou em toda a ilha. A faixa que existia entre a rua e o mar diminuiu brutalmente. As ondas mastigam a praia com apetite. Colocam a culpa na ganância de dominar a beira, enchendo de biroscas e privatizando o que deveria ser de uso geral. Outros dizem que as águas salgadas aumentaram seu volume em todo o mundo graças ao tal aquecimento global, e que aqui é só um reflexo. Tenho outra percepção, mas sempre acusam teorias fora do esquema como sendo de conspiração. Desconfio que o uso sistemático de armas climáticas, que desestabilizou o clima definitivamente desde o terremoto (provocado?) do Haiti, fez com que tudo ficasse anormal. Desandou, como se tivessem mexido nos fundamentos dessa harmonia a que me refiro quando nos retiramos para o ermo em busca de descanso.
Somado com a violência disseminada, há grandes chances de não reatarmos com o cosmo, como costumávamos fazer. Mas ontem a estrela Vésper surgiu solitária num entardecer dourado e azul. Fiz um pedido. Quem sabe poderemos retomar a vida saudável que foi perdida?
RETORNO - 1.(*) Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana, edição número 314.2. Imagem desta edição: Globe na Floresta, de Ricky Bols.
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