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1 de agosto de 2010

L´HEURE DE L'ÉTÉ: A DISPERSÃO DA MEMÓRIA


Horário de verão é uma idéia de Benjamin Franklin, proposta no século 18, que acabou migrando para a Europa no início do século 20 e sendo adotado de maneira definitiva por alguns países a partir do primeiro choque de petróleo em 1973, quando economizar energia virou obrigação. Há quem conteste esse recurso, que conhecemos bem. Não foi sem muita polêmica que ele virou lei na França, onde se passa o filme L´heure de l'été (2007), de Olivier Assayas, e que os americanos traduziram equivocadamente para Summer Hours.

Não se trata de horas passadas no verão por uma família, reunida para homenagear a matriarca (interpretada por Edith Scob) numa casa que é um acervo de arte em todas as peças, dos vasos às xícaras, dos quadros na parede ao gesso quebrado de Degas, dos armários à escrivaninha. Mas é sobre o tempo e sua dispersão, representado pela manipulação dos relógios, quando aparentemente se “perde uma hora de sono” no verão, como dizem os que reclamam, e se ganha outra hora no inverno, quando os ponteiros voltam ao normal.

Assim, em vez de um dejeuner sur l´herbe, um pic-nic familiar cheio de conflitos, como querem os americanos, se trata de o momento terminal de uma civilização, a francesa, pressionada pela globalização, pela burocracia, pela indiferença, pelo rompimento dos laços familiares e a destruição e dispersão dos rastros e vestígios. Todos tem culpa no cartório, a começar pela mãe, que não se debruça sobre a vida do filho economista, não lê seu livro e ignora que ele dê aula na universidade. Ela se concentra apenas no acervo artístico da sua casa, herança de um amor proibido com o cunhado, artista brilhante que deixou vasto material cobiçado por museus e colecionadores.

Os filhos também fazem parte dessa destruição da memória. O próprio economista (interpretado por Charles Berling), que se desespera com seu livro onde denuncia a barbárie da economia global (pois ninguém prestará atenção) e que vive afastado da família. O outro rebento da matriarca (interpretado por Jérémie Renier ) foi trabalhar na China e levou mulher e filhos. Achava que ficaria algum tempo, mas descobre que sua mudança é definitiva. Ele é empregado de multinacional fabricante de tênis que usa a mão-de-obra barata (escrava) para a tal competitividade e acaba rompendo com a sua nacionalidade. Ele deixa de ser um cidadão francês para se tornar um híbrido sem raízes.

E há Juliette Binoche no papel da designer, a única que herdou o talento artístico do tio, e que cria utensílios para o novo-riquismo da economia predatória. Vemos assim que o esgarçamento das relações e laços sociais e familiares está vinculado à situação do comércio e indústria mundial sob o jugo da ditadura financeira, que a tudo reduz a pó. O desfecho é a tristeza provocada pela venda da casa e da divisão das peças valiosas que existiam dentro dela e tinham uma função. Ao irem para o museu e coleções, é como se estivessem numa prisão, diz o economista, que não queria fazer a venda e lutou em vão por manter o lugar intacto.

Mas todos precisam de dinheiro e não há saída. O tempo ganho com a curadoria da mãe perde-se no momento do seu funeral. É quando todos acordam para o quanto poderão ganhar comercializando as peças e a casa. Para isso é necessário driblar a pressão do governo francês, que cobra altos impostos por heranças lapidadas e não permite que coleções consideradas de interesse nacional saiam do país.

Quem herda esse caos são a novas gerações, reunidas numa festa terminal na casa agora vazia. Longe dos bons momentos de férias que passaram na infância no território dos seus ancestrais, eles representam a dispersão semeada pelos pais e avós. O tempo cobrou a conta de quem se deixou levar pelas aparências e necessidades de uma época que faz tabula rasa da cultura e da identidade das nações. Por ser a França, o país que mais tenta se manter inteiro no redemoinho da economia predatória, o filme ganha dimensão e força. Se na França está assim o que nos resta?

Sabemos onde nos situamos: no fundo do poço da barbárie. Tudo virou ruínas no Brasil que um dia foi nação. Mas não vamos falar disso. Dói demais.

RETORNO - Imagem desta edição: a mãe Edith Scob e a filha Juliette Binoche: uma herança perdida no caos da economia predatória.

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