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3 de agosto de 2010

LE BALON ROUGE: CINEMA, MUITO PRAZER


Assisti meu primeiro filme aos cinco anos, mas só fui apresentado à Sétima Arte aí pelos 12 ou 13, quando um irmão marista que corria os colégios deu um curso sobre cinema para a gurizada do ginásio. Foi quando descobri que os filmes não eram obra dos atores, como eu acreditava, mas dos diretores. E que não importava a leitura moral ou religiosa de um filme, mas sua leitura real, da imagem que aparece na tela e o som que a acompanha. Sim, os maristas eram de vanguarda.

Para provar o que estava revelando para nosso espanto, o professor projetou Le Balon Rouge, a obra-prima de Albert Lamorisse, que ganhou a Palma de Ouro de Cannes em 1956, e o Oscar de melhor roteiro original de 1957, protagonizado pelo seu filho, então de seis anos, Pascal. Enquanto se sucedia a saga do garoto da velha Paris que foi adotado por um balão vermelho, o professor ia dizendo o significado de cada cena. Era, claro, uma leitura rígida, em que tudo representava algo transcendente. Mas servia como exemplo.

Lembro que o mote principal era que o menino solitário, criado pela avó, praticamente órfão, carregava sua carência afetiva pelas ruas, representada pelo grande objeto voador, redondo e vermelho. “Numa sociedade que esbanja conforto”, dizia o professor quando passava o vendedor de travesseiros, “o menino luta para que o aceitem, para que o adotem” e enfrenta os garotos maus que querem destruir seu objeto de desejo. Fiquei totalmente impressionado pela coerência do que o irmão dizia e o que via na tela. Tudo fazia sentido! Foi ali que aprendi talvez a mais valiosa lição cultural da minha vida.

Com essa base, comecei a “ler” o cinema por minha própria conta e risco. Quando cheguei em Porto Alegre e tomei contato com os grandes críticos da época, com Helio Nascimento à frente, e depois ledo o pessoal pesado do centro do país, como Ely Azeredo, Alex Viany e Paulo Emilio Salles Gomes, fui radicalizando meu universo cinematográfico, empurrado para a cultura, a arte, a política e a filosofia. O lazer veio junto, pois sempre fui siderado por aventura e o faroeste, mas só depois ganhou status de pensata, de análise. Vi John Ford com os olhos livres, como programa da sessão das quatro, antes de render-me ao culto.

Mas Le Balon Rouge ficou como o be-a-bá do cinema. E assim foi considerado na época, adotado nas escolas e com grande repercussão mundial, por ser didático, encantador, maravilhoso e radicalmente a favor da infância, da sensibilidade e da grandeza humana. Todos nós somos aquele garoto que é perseguido pelo balão e briga por ele contra o predadores. Hoje, revendo essa beleza de filme, noto o óbvio: que em toda a trajetória da fuga do menino para salvar seu balão escorraçado pelas gangs, professores, guardas, condutores de bonde e adultos em geral, surgem nos muros e paredes os cartazes anunciando grandes filmes.

Dois se destacam: O Cangaceiro, de Lima Barreto, com Vanja Orico, dizem as letras garrafais. E outro com Alan Ladd e Virginia Mayo. Sim, como digo sempre, todo filme é sobre cinema. O roteiro do menino pelas ruas de Paris está todo balizado pelos filmes cults. A metáfora é tremenda: o balão enfim é destruído pelas patas dos garotos maus, mas em revolta todos os balões de Paris acorrem e o levam para o céu (numa seqüência que lembra o padre voador, Adelir Antonio de Carli, que em 2008 repetiu o gesto e se foi para sempre – será que ele foi marcado pelo mesmo filme e quis repetir aquele momento de libertação?).

Não lembro a conclusão a que chegou meu querido e inesquecível professor. Mas deve ser algo relacionado com a vitória da emoção e da criatividade, transcendendo o mundo sem imaginação que tentou podar sua necessidade de amar. Ou algo assim.

O que importa é ver o que nos dizem os filmes, o que as imagens nos sugerem, qual a idéia original que levou o cineasta a compor sua obra e como podemos contribuir com nossa leitura. Larisse era um fotógrafo conhecido e importante desde os anos 40 e especializou-se em filmes curtos e documentários. Morreu dentro de um helicóptero quando filmava em Teerã um roteiro para os amantes no Irã. Oito anos mais tarde o filme interrompido, Le vent des amoureux (1978), foi levado às telas pela viúva e os filhos e indicado a um Oscar.

Foi-se o artista, mas ficou seu filme único, maravilhoso, que nos arrebata sempre que o vemos. Ele está cada vez melhor. Continua, para mim, sendo um parâmetro. O abc do cinema.

RETORNO - Imagem desta edição: o garoto Pascal Lamorisse recolhe seu balão para escapar dos predadores.

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