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9 de julho de 2010
PARA QUE SERVE A ESCOLA?
A escola serve para o ensino e aprendizado do uso da língua, passaporte para o conhecimento em todas as outras matérias. Por isso o filme de Laurent Cantet, Entre les murs (Entre os muros da escola), Palma de Ouro em Cannes em 2008, foca no professor de francês e seu embate com alunos migrantes, fonte permanente de tensão entre a autoridade e seus comandados, entre mestre e discípulos, entre instituição e insurgência, entre gramática e gíria, entre nacionalidade européia e etnias não caucasianas, entre argumento e xingamento, entre concentração e dispersão.
É um duelo numa arena que faz vítimas. No Brasil, a escola age nas populações carentes por meio de uma ação perversa, submetendo as famílias à matrícula para o ganho de esmolas sociais, como a merenda. A sociedade da exclusão mantém assim o jugo dos despossuídos trocando um ensino precário por comida, em vez de gerar oportunidades para que todos tenham uma vida decente. O ensino público, em muitos estabelecimentos, acaba sendo apenas o ponto de encontro entre alunos que fazem questão de não aprender e professores que desistiram de ensinar, por ser humanamente impossível enfrentar o jogo bruto da insurreição permanente contra qualquer imposição. A escola fica sendo o único lugar onde as pessoas podem se manifestar e isso entope as aulas de violência.
Na França, eles acham que tem problemas. Escola limpa, montes de professores, um sistema de acompanhamento e monitoramento baseado na disciplina e na lógica, um esquema rígido, tradicional, mas temperado pela flexibilidade das pessoas envolvidas, todas idealistas e vocacionadas. Missão civilizatória de uma nação imperial com povos de outros continentes, disseram os críticos. Vejo diferente. É o repasse de parâmetros para que os futuros adultos fiquem instrumentados, por meio do domínio básico da língua, para a vida plena num mundo hostil.
Os migrantes precisam aprender a língua. Os mais velhos não conseguem e no filme aparecem com seus dialetos e linguagens próprias, sendo traduzidos pelos filhos, os alunos, que por sua vez estão num processo de transição entre a oralidade excessiva e a língua culta. “Ninguém mais usa essa conjugação de verbo”, dizem os alunos. “Isso é coisa da Idade Média. “Pouca gente usa o imperfeito do indicativo”, diz o professor, interpretado por François Bégaudeau, que é o autor do livro que originou o filme e co-autor do roteiro. “Quem usa costuma ser esnobe, elitista, afetado. Mas é preciso que vocês saibam que ele existe, saibam fazer a conjugação.”
O professor francês, explica o diretor, é o oposto dos heróis didáticos do cinema americano, em que um mestre enfrenta a barra dos alunos e sai endeusado. Aqui, não. François comete erros, como xingar alunas. Isso o enfraquece e quase coloca todo seu trabalho a perder. É o risco que corre num ambiente pesado e cheio de contradições, onde deságuam todos os conflitos e confrontos de um mundo em transformação e em que a migração é uma pedra no sapato da direita. No fundo, os professores progressistas querem desmascarar a direita que exige o fechamento das fronteiras, expulsão dos adventícios pobres, sob o argumento de que são inferiores e jamais vão aprender algo ou contribuir para o país.
Quando um dos alunos rebeldes é punido com a expulsão, o professor sabe que ele será levado de volta para África pelo seu rigoroso pai. Não consegue impedir que haja a punição. Isso abre uma ferida no filme, que fecha com um balanço feito pelos alunos sobre o que aprenderam no ano letivo. O filme, excelente em todos os sentidos, é um primor de técnica. Tem um planejamento rígido, um roteiro pré-determinado, mas há abertura e flexibilidade para o improviso, um clima reforçado pela contratação de atores não profissionais. Fica parecendo documentário, cinema verdade, mas é ficção totalmente sintonizada com a realidade.
Além disso, a montagem obedece a um período completa de atividades escolares. Há o principal, que é o desenrolar da aula, cortado por intervalos significativos. Há grande impacto com a solução encontrada pelo diretor do filme, de fazer as tensões se acumularem com o protagonista e seus alunos de francês e a explosão ocorrer com outro professor, que faz tabula rasa do corpo discente, dizendo que jamais vão aprender algo e que ele desistiu de ensinar. Depois cai em si e o inconformado mestre é convidado a tomar um pouco de ar.
Há um recado nisso: o trabalho é pesado, complicado e perigoso, mas pode valer a pena se houver fôlego, parâmetros, e decisões acertadas. Tudo isso depende da lógica, do domínio da língua nas reuniões entre professores, entre pais e professores e nos encontros onde comparecem representantes dos alunos. Muitas vezes, François fica mudo diante da argumentação alheia, por mais que se esforce. São os limites do uso da língua, que é o foco deste filme excepcional, que jamais passa em TV aberta, porque é muito melhor entupir a população de porcaria audiovisual e depois culpá-la de falta de gosto.
RETORNO - Imagem desta edição: François Bégaudeau no papel de François Marin, e seus alunos, no filme "Entre os muros da escola". As barreiras da língua precisam ser rompidas. É o passo básico para acabar com a exclusão.
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