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11 de julho de 2010

DARÍN EM “LA SEÑAL”: MULHER É CINEMA


Implicaram com La Señal (O Sinal, 2007), dirigido pelo Ricardo Darín (em parceria com Martin Hodara), ator fundamental do cinema argentino contemporâneo, que brilha em vários filmes de Juan José Campanella. Considerado confuso em sua trama onde entram todos os elementos clássicos do noir, o filme precisa ser visto, para ser entendido, na sua natureza, ou seja, uma obra sobre cinema. Se existem dúvidas sobre a validade desse enfoque que costura meus ensaios, neste não deve pairar nenhuma, pois em cada segundo está explícito o foco narrativo: tudo aqui é sobre a Sétima Arte.

Nem precisaria dizer, pois está na cara dos atores, dividida pela linha de sombra entre claro e escuro, nos cenários, personagens, situações, seqüências, imagens, diálogos, que brotam diretamente daquele tipo de filme que era considerado de segunda categoria, por serem pobres na produção em preto e branco e que viraram cult pela grandeza que atingiram, se transformando em momentos inesquecíveis. Pode-se dizer que O Sinal é o excesso dessa evidência, desse resgate, dessa memória cinematográfica em tempos bicudos, pois hoje o que se faz é destruir o que foi feito, para no seu lugar ser entronizado um monumento ao obscurantismo.

Não foi a vanguarda que fez esse serviço, foi a própria indústria, que devorou as transgressões e desconstruiu a herança outorgada pela maestria de grandes cineastas. O Sinal poderia ser visto como uma volta ao passado, um anacronismo, um trabalho fake em todos os sentidos, pois o que aparece não é a América da depressão ou dos gloriosos anos 40 e 50, nem as personagens parecem verossímeis nessa Buenos Aires de 1952, quando Juan Perón estava no poder e Evita, sua mulher, agonizava lentamente enquanto a multidão em desespero rezava pela sua impossível recuperação. Mas, como é sobre cinema, o filme dribla essa má vontade da percepção, e se impõe como um trabalho de ruptura contra o eterno presente a que fomos condenados.

“A mulher pesa 40 quilos e não a deixam morrer” diz o detetive Corvalán, interpretado por Ricardo Darín, referindo-se a Evita. A primeira dama argentina é o rádio, a mulher a ser evitada pelo pragmático profissional que ganha a vida fotografando pequenos crimes domésticos, traições em sua maioria. Corvalán não quer ser traído pelas ilusões que tomam conta da política e da sociedade. Ao contrário de seu sócio (interpretado por Diego Peretti) do escritório de detetives, que é engajado na partido do governo e considera o mito Evita como uma coluna do templo nacional, Corvalán quer distância desse circo, e também das armadilhas da tradição, outra ilusão encarnada pelo pai doente tocador de bandoneon, aposentado de uma atividade sinistra, talvez a de matador, talvez a de detetive particular.

Afastando-se de tudo o que lhe parece falso, Corvalán procura manter uma relacionamento frio com a amiga, professora de piano, com quem vai para a cama e que o trai com seus alunos. Amargando o impacto dessa revelação, quando flagra o namorado da amante numa volta pela sua rua, Corvalán não tem nem o consolo da ilusão do jogo, já que aposta nos cavalos errados e nada ganha com os números da loteria. É nesse quadro de decepção que vê o elemento obrigatório das histórias de detetive: a mulher fatal (interpretada por Julieta Diaz), que o contrata para uma missão misteriosa e complicada. Ela é aquele sinal que muda tudo e faz com que os protagonistas se comportem de uma outra maneira.

Essa é sua perdição. Não entenderam como um sujeito pragmático, lúcido e que não se deixava impregnar pelas ilusões, pode ter caído de maneira tão completa nas tramas da fêmea que o enganava e o levou para um ciclo de conflitos extremos, com o desfecho previsível. Acenou para ele com a mais radical das ilusões, o dinheiro farto e acessível num cofre do mafiosos. Para lá se dirigiu Corvalán, pois estava condenado na opção que fez. “Ninguém me obrigou a nada” disse, quando se viu perdido. Ele foi atraído pela penumbra de um cinema, onde deu o primeiro beijo na sua cliente, ao som da música envolvente, dessas de filme de matiné, que embalam o sonho, mas oferecem inapelavelmente a ressaca na hora de sair da sala.

Eis uma composição de elementos cinematográficos que se oferecem ao espectador como uma charada e deve ser decifrada pelo que é, filme sobre cinema. Podemos escapar de tudo, ser donos de nossas vidas, cumprir formalmente nossos destinos, formatar hábitos, ficar distante das armadilhas, já que estamos preparados e usamos esses chapéus, vestimos esses ternos, dirigimos essas carros lustrosos, por ruas chuvosas e acendemos um cigarro atrás do outro. Mas não devemos cair na tentação de entrar numa sala de cinema, pois esse será a tragédia mais prazerosa que poderá nos acontecer, quando enfim nos livramos da casca dessa realidade insuportável e morremos nos braços de um amor inatingível.

O que fizemos de nossas vidas, prezado e brilhante Ricardo Darin? Tu, que és do ramo, sabe como ninguém. Fomos ao cinema.

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