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24 de maio de 2010
SÓ O QUE IMPORTA É A LINGUAGEM
Nei Duclós
Vivemos na Era do Conteúdo, também chamada de Era do Conhecimento, ou seja, com o foco errado. Essa abordagem joga no lixo um século de estudos sobre a linguagem. A coisa em si, para usar uma expressão popular emprestada da filosofia, não é o chamado conteúdo, o tema, a informação contida por trás do biombo das palavras. Mas sim a própria linguagem. A palavra, o frame, a imagem, o objeto é o que se trata. Não adianta, portanto, você transbordar de afeto, amor pelo próximo se usar a muleta “um beijo no coração”.
A frase diz tudo sobre você. Sua formação é tosca, sua percepção limitada, seu conhecimento espiritual é zero. Por mais que os italianos precisem ser celebrados e considerados, você põe tudo a perder se usar o jargão “um bom italiano”, pois o excesso de uso e a limitação do insight colocam dúvidas sobre o significado de “bom” nesse caso. Assim como um “bom” vinho. Por mais que admiremos vinhos e italianos, a linguagem usada joga fora toda essa consideração.
Nos comentários sobre filmes e livros, é comum, nas conversas informais, se enredar exatamente na linguagem. A pessoa ficou arrebatada pelo que leu ou viu, mas acaba caindo no jargão “fora de série”, ou no “gostei muito” ou ainda, querendo parecer técnica, comenta a-fo-to-gra-fia. É complicado migrar a linguagem do cinema ou da literatura para a do comentário, resenha, ensaio. Um livro precisa ser visto pelo que é: palavras num ambiente impresso ou eletrônico. E um filme também: imagens, sons e palavras. Nada fora disso. Não existe conteúdo, mensagem. Existe linguagem. Nela está o truque, o segredo.
Um blockbuster que queira incensar o papel da CIA usa todos os artifícios para dizer como os espiões americanos cuidam da paz e da democracia no resto do mundo e para isso tocam fogo logo no puteiro. Se você enxergar o conteúdo, a mensagem, verá que os caras são éticos, corajosos, comedores de tailandesas etc. Mas se prestar atenção na linguagem, decifrará todo o código de sacanagens embutido na obra. Então os poderes tentam desviar o foco da linguagem para o conteúdo, onde eles dominam.
Note que não existe nada mais ético, perfeito, moderado, civilizado e coisinha fofa do papai do que o poder. Veja como se vestem, seus gestos, a maneira como falam. Eles procuram projetar nesse conjunto de sinais tudo o que pregam. Mas se você usar o mesmo recurso, olhar para a linguagem usada, verá como são falsos, cretinos, criminosos, perigosos, anti-humanos. Ninguém engana o olho clínico treinado para enxergar o conjunto enigmático de linguagens cifradas ocultas sob um palimpsesto de luxo. Coloque contra luz e perto do fogo o objeto de estudo, como no conto célebre de Edgar Allan Poe. Ali está o que é realmente dito, e não o texto aparente, o “conteúdo”, o “conhecimento”.
Isso tudo gera uma enorme solidão. Você tenta desviar o foco para o que interessa, a linguagem, e as pessoas insistem em querer debater conteúdo. "Mas o que você tem contra os italianos ou os vinhos?" perguntou alguém no Twitter, cheio de zes e ts no nome. Nada. Minha abordagem é a linguagem, o uso do jargão bom, e não o “sangue”. Por mim, gosto de tudo da Itália, dos pintores clássicos aos grandes cineastas. E venho de uma família Molinari, portanto...Mas não me convidem para conhecer um bom italiano e tomar um bom vinho. Vou chiar.
Por um tempo o foco estava certo, nos áureos anos de “o meio é a mensagem”, de Marshall McLuhan, que vinha na esteira de grandes estudiosos, de Saussurre a Lévi-Strauss. Mas aí o excesso dessa abordagem acabou cansando. Triunfou a soberba, a pose. Isso também foi usado politicamente, pois enquanto todos ficavam prestando atenção nos signos, o pau corria solto e de maneira explícita nas ruas. A desmoralização do excesso acabou desaguando no estágio em que nos encontramos, o do beijo no coração e da celebração da Pax Americana no resto do mundo.
Então, não tem saída? Tem. É preciso produzir pensamento de combate, pontual, para usar no front. Desmascarar os produtos da indústria do espetáculo, gerar auto-consciência, saber do que se trata. Nem precisa erudição ou capital simbólico. Basta saber que existe esse segredo e ficar mais focado no que realmente interessa. Só o que importa é a linguagem. Nela reside todo o potencial de mudança necessária. Se pudermos agir para transformar a linguagem (e não falo em vanguardismos) teremos uma chance. Nada mais atual e necessário, quando estamos em plena campanha política.
Ou você acha que candidato é o quê, senão apenas linguagem?
RETORNO - Imagem desta edição: Bailarina, de Ricky Bols. "Leia" a imagem e me diga o que vê nela. Está aqui porque gosto do trabalho do Ricky, grande artista, quase oculto, como tudo o que é bom no Brasil. Contrate Ricky Bols para o seu projeto. O cara é fera.
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