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12 de janeiro de 2010

CORTE CADETE



Nei Duclós (*)

O corte cadete deixava uma penugem no alto do cocuruto. Era obrigatório até a adolescência. Havia um relaxamento da imposição por alguns anos, até se chegar à idade militar. O rigor do assassinato estético era justificado pelo uso de boinas variadas. O cabelo confinado ao reduto muito acima das orelhas, lá onde o calombo do crânio tornava-se indecente, era o piso sagrado da gorra verde, branca ou azul, conforme a arma onde se servia. Todos sabiam que a branca era dos Fuzileiros Navais, a azul da Força Aérea e a verde nem precisa dizer de qual.

Era raro alguém ter orgulho de usar o cabelo assim pela vida afora. Um adulto, fora dos esquadrões e com liberdade de voo, não deveria passar a máquina zero de quinze em quinze dias para demarcar bem o território do seu orgulho. Mas havia uma exceção. Seu apelido, naturalmente, era Gorrinha e assim ficou para todo o sempre. Costumava dizer que viraria semente. Tinha encontrado sua identidade eterna.

Talvez quisesse preservar os sabores da mocidade, quando marchava orgulhoso ao lado de seus pares. Ou então gostava de ser chamado dessa forma, já que seu apelido era popular graças ao futebol jogado no time do bairro, o Andradas. Alardeava os feitos para os garotos da cidade que conheciam apenas o asfalto e jamais se aventuravam na periferia, onde Gorrinha reinava. Uma das marcas que exibia como craque era o chedinho, nome dado ao chute que pegava na veia. Nenhum goleiro resistia ao chedinho, que estufava as redes invariavelmente, segundo o relato feliz dito em tom sério.

Só mais tarde, quando voltávamos da capital nas férias, ouvíamos de novo o herói, já sem o brilho físico de outrora. Agora ele fazia parte do terceiro time do Andradas, mas as histórias eram ainda de primeira linha. Continuava caprichando nas versões, que cercavam sua biografia de uma aura dourada.

Poucos anos trás, fui visitado por ele quando retornei à minha cidade. Usava a mesma bicicleta que o carregava ao longo de ruas planas e largas. Mas havia uma diferença: pela primeira vez vi Gorrinha chorar. Era de saudade, dizia. Do tempo das rodas em que era ouvido e que, com nossa ausência, ficaram por lá. São memórias perdidas nos estádios do subúrbio, como bola quicando no fim da tarde. Gorrinha chorava porque a grande noite do tempo descia sobre as almas exaustas de tanta vida.

RETORNO - 1.(*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 12 de janeiro de 2010, no cadferno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: timaço do Grêmio, com o grande uruguaianense Gessy Lima no centro entre os agachados. Segundo Roberto Mossman, Gessy Lima era "o Craque Paradoxal, porque, apesar de ser um dos maiores jogadores da história do Grêmio e do Rio Grande do Sul, ele simplesmente não gostava de jogar de futebol. Mas tinha tanta bola no corpo que ninguém ligava para isso". Gessy, o maior craque gerado pelo celeiro de futebol que é Uruguaiana, formou-se em odontologia aos 26 anos e nunca mais jogou. Informações por e-mail enviadas por Elo Ortiz.

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