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18 de agosto de 2009

DIALÉTICA


Nei Duclós (*)

A convivência dos contrários é a saúde mental do universo e o motivo principal da sua existência tal como o conhecemos. Alternar opostos garante a vida, basta imaginar o dia eterno da face exposta da Lua. Ou a permanência da atual friaca por tempo indeterminado. As estações são o sinal mais explícito do jogo dialético da realidade, que nos impõe uma percepção no mínimo dualista, já que as infinitas gradações geradas pelo confronto dos opostos é algo que faz parte de épocas remotas.

Apesar da fácil manipulação, via rede, ao que se fez de melhor no mundo, nos falta o básico: o ambiente sacudido por inúmeros criadores, que não comparecem mais no imaginário das massas órfãs de luzes. O resultado é o nível raso da indústria cultural, hegemônica na sua agressividade, enquanto camadas profundas das obras do espírito humano jazem em estantes altas, inacessíveis, de bibliotecas de um pesadelo borgeano.

Da mesma forma que a literatura épica inspirou as grandes mudanças do passado, hoje as ações sociais são pautadas pela percepção cevada na ausência da dialética. Quando decretaram o café como o vilão dos alimentos, tive, por experiência própria, de romper com o paradigma e voltar aos expressos, o que me curou definitivamente de persistente dor de cabeça. Não precisei esperar que os luminares da correção alimentar voltassem atrás e pedissem desculpas.

Quando vejo a placidez e a felicidade dos indígenas remanescentes com seus enormes cachimbos, fumando generosamente em rodas e rituais, me pergunto se os sujeitos com rostos pálidos de vampiros que decretam a condenação eterna dos fumantes não seriam criaturas de outros planetas. Eles vieram, possivelmente, de mundos imobilizados nas certezas, brandindo argumentos indiscutíveis, como se a noite não viesse depois do dia e asas não brotassem da podridão das folhas.

Enquanto idéias e hábitos contrários aos nossos se tornam indefensáveis por força de leis, os crimes hediondos encontram cada vez mais flexibilidade nos escaninhos da Justiça. É de se perguntar se o poder que prende o fumante e o bêbado não seria conivente com quem mata e rouba. Talvez, por serem alienígenas, tenham outra lógica. Ou talvez estejam muito à vontade porque não sabemos como jogá-los contra a parede, como se fazia no velho oeste.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 18 de agosto de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: John Wayne acende um enquanto dá aquela olhada mortal para James Stewart em "O homem que matou o facínora", de John Ford. Vai lá e diz que é proibido fumar, diz.

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