Blog de Nei Duclós. Jornalismo. Poesia. Literatura. Televisão. Cinema. Crítica. Livros. Cultura. Política. Esportes. História.
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31 de agosto de 2009
MANHÃ, O VÍDEO. E QUERO UM SORRISO, O AUDIO
Meu poema "Manhã", postado aqui há dois dias e que foi publicado em 1975 no meu livro de estréia Outubro, ganha agora roupagem de gala com este video produzido por Juliana Duclós, com fotos de Ida Duclós e Daniduc. A melodia é de Carlinhos Hartlieb e a interpretação de Gelson Oliveira. O poema fala de um momento especial depois de uma noite de amor, quando o corpo brilha em paz, pleno de realização, quando essa claridade interior inunda a pessoa, e quando os olhos são forrados pelo azul do céu e do mar.
RETORNO - Imagens desta edição: na foto em preto e branco, Carlinhos Hartlieb. Na foto colorida, Gelson Oliveira.
BATE O BUMBO: "QUERO UM SORRISO" MUSICADO
Já está na rede: outro poema meu de Outubro, "Quero um sorriso", que se transformou num hit no orkut e nos blogs e fotologs graças à divulgação feita na revista Caras no final do ano passado, foi há tempos musicado por Muts Weyrauch e agora ganha caprichada interpretração de Muts e banda, como informa o
"Studio Rock - Quero Um Sorriso
O Studio Rock foi criado em junho de 2004 para trabalhar no mercado musical, com os serviços de gravação, mixagem e masterização. Os contatos são: www.studiorock.com.br - com endereço eletrônico studiorock@terra.com.br.
O mais novo lançamento do estúdio, numa produção de Paulo Arcari, é a música Quero Um Sorriso, com letra de Nei Duclós e música de Muts Weyrauch. Participaram das sessões: Mutuca (vocal), Jaime Pieta (guitarra), Luciano Leães (teclados), Luciano Albo (baixo), Vasco Piva (sax tenor) e Paulo Arcari (bateria).
Com arranjo de base de Mutuca, aí está: Quero Um Sorriso".
A VOLTA DO TROVADOR
"Se você vier me perguntar por onde andei
No tempo em que você sonhava
De olhos abertos lhe direi
Amigo eu me desesperava"
(A Palo Seco, Belchior)
Belchior estava esquecido, enterrado em vida, depois de 40 anos de canções maravilhosas. Endividado, era obrigado a cantar em tudo que é biboca, enquanto a mídia só se interessa por Zezé di Camargo e Luciano. Nunca vi o Belchior fazendo papel de palhaço nos programetes das redes de televisão. Nunca mostrando sua mansão, seus cachorros, sua mulher nova ou velha.
Manteve-se íntegro, fiel ao seu recado. Abandonou tudo para se recolher e criar. Foi cobrado pelos seus ex-assessores, que entregaram a história para a Globo. Ele não tinha o direito de deixar os sanguessugas na mão. Teve que reaparecer, contra a vontade.
Não foi campanha de marketing. Mas todos descobriram sua importância e o crime de ser esquecido. A subita notoriedade vai lhe permitir que imponha gravações de suas músicas inéditas. Antes do seu sumiço, isso não era possível. Agora é.
Que bom, Belchior, que você está vivo e inteiro. Canta, poeta, trovador. Canta que nós escutamos e cantamos junto.
30 de agosto de 2009
UMA NAÇÃO DE ATORDOADOS
Nei Duclós
Ninguém fala mal da publicidade porque todos têm medo dela. Como ficam impunes, os publicitários surtam até não poder mais. No fundo, estão prisioneiros desse abuso que é tomar conta de todo o espaço disponível na TV aberta e na TV a Cabo (na Internet ela está invasiva, mas ainda dá para aturar). Os reclames não se conformaram em ficar no seu reduto tradicional e tomaram conta da programação, primeiro vi merchandising e agora no maior desplante, de tudo o que se faz e produz. Vejam o Milton Neves, o Faustão ou o Raul Gil, estão sempre fazendo propaganda no espaço que seria para entretenimento ou informação.
No Globo Rural, que ainda é bom, dê-lhe publicidade sobre Criança Esperança nas matérias e nos intervalos (como acontece com todos os outros programas da rede), insistindo para que as pessoas doem dinheiro, numa postura parecida com a que a Globo condena na Igreja Universal da Rede Record. É a mesma coisa: dinheiro dos fiéis. Mas qual é o resultado mais pernicioso da publicidade, além de condenar a população a engolir anúncio em todos os minutos das suas pobres vidas, como se isso fizesse parte da natureza e não houvesse solução nenhuma à vista (bastaria encarcerar os maganos que ganham os tubos com esse sistema e pronto)?
O pior de tudo é que a publicidade promove a padronização sob a capa da falsa diversidade. Fazer reclames para criança, negro, deficiente, mulher, idoso, estudante, dona-de-casa não significa que estão se dirigindo a vários segmentos de público, como eles gostam de dizer. Eles se dirigem a uma só pessoa, a um só personagem, a uma só caricatura: o idiota imbecil que nasce para consumir e é descartado ainda em vida, pois tem mais carne chegando das novas gerações para queimar na fornalha das vendas e do consumo sem limites.
É por isso que tanto o garoto que anuncia carro, a mulher que mostra as vantagens do absorvente, o pai margarina, o véio afetivo, o gorila urso durão, todos tem aquele comportamento, postura, voz, gestos estudados dos imbecis que eles imaginam que você, espectador, é. Ainda estamos na era pavloviana, a teoria do condicionamento puro e simples. Continuamos sendo treinados não a comprar ou a vender, mas a ser idiota, babaca, bundão. A maior evidência disso é a frasesinha ishperta, nessa entonação cretina de “ahá, isso até minha avó fazia”, ou “uhú, como é formidável oferecer o fiofó”. Dedinhos apontados para você, corpinhos cool ou saradinhos, gente sorrindo e se abraçando, ombros sacudintes de satisfação narcísica, eis o universo mental impingido na nação desprovida de cidadania.
Ontem assisti no you tube o longo (15 minutos) discurso do presidente Obama nos funerais do senador Ted Kennedy. O que me deixa louco vendo cenas em terras estrangeiras, é essa identificação de pessoas letradas, que se reúnem para debater, celebrar, ou render homenagens , como na missa para o mais jovem dos trágicos irmãos estadistas da América. Não temos mais esse tipo de evento. O que vemos no Senado, na Câmara, nas escolas é essa parvoíce geral de um país de atordoados (expressão usada por Jorge Luis Borges quando a Argentina se jogou na aventura da guerra das Malvinas). Não temos sequer mais estadistas para enterrar. Os que tínhamos, se foram. Imaginem o discurso quando o Sarney, o autor de “O Brejal dos Guajás”, se for. Ou o discurso do Lula na posse do terceiro mandato (toc toc toc).
A verdade é que desviamos o foco da educação, da formação escolar plena e profunda, de gente que lê e é civilizada, e que, ao estudar, abraçaram algum compromisso com a ética (o que não se vê em grande número dos nossos diplomados) para essa gandaia imbecil difundida pelos monopólios, que impõe representações idiotas do comportamento de massa, como a multidão que quer se libertar e acaba se atirando nas novas motocicletas, ou os babacas que se reúnem para churrasquear cheios de latinhas de cerveja na cuca.
Certo, a publicidade, tal como a conhecemos, tem origem americana. Mas lá eles possuem uma nação, a cargo de gente formada em universidades, uma elite preparada, pressionada pela opinião pública, uma população nutrida, enquanto aqui temos a sociedade de classes transformada num pesadelo, a bandidagem comendo solta, o desperdício do agronegócio (num estado, o gado morre de fome, em outro, montanhas de grãos deixados ao relento estragam com a chuva precoce, como vi neste domingo no Globo Rural).
Como a educação, mesmo que exista em alguns centros de excelência, deixou de ser o foco principal da nação, e como a economia serve para esvaziar os bolsos do povo despossuído, fomos entregues à sanha assassina do mercado predador e do Estado sanguessuga. Somos selvagens, não capitalistas. Num projeto do Criança Esperança, a meninada aprende a tocar instrumentos. Isso existia antes de 1964, a educação musical, a formação de bandas em todo o território nacional. Sucatearam e privatizaram e ficam se exibindo como são politicamente corretos. Tudo cacifado pela Petrobrás, que está na mão de estrangeiros, ou de bancos, que arrancam os tubos da população sem defesa.
Soube (porque não consigo mais ver o sujeito) que Lula criou constrangimento quando mostrou publicamente num evento sua cobiça em virar presidente da Petrobrás depois que deixar o Planalto. É só nisso que pensam: como garantir a sobrevivência das próximas quinhentas gerações da própria prole. Com família de dupla cidadania (que é “para garantir o futuro”, como disse a atual primeira-dama) e um cargo desses na Petrobrás, pronto, o resto que se exploda. Ficamos nós dançando ao som do hip hop, do sertanojo e do baticum, trilha sonora da guerra nojenta que os governantes sustentam contra a cidadania em pânico.
Chega, porra.
RETORNO - Imagem desta edição: o líder aponta a salvação para a massa: se joguem nas motos que assim serão libertados. Quem desempenha o papel de líder é o bom ator Wagner Moura, o mesmo da campanha do Bradesco (aquele que agora está por toda parte, o que só acontecia com a Caixa Econômica e o Banco do Brasil) e da banda Sua Mãe, especializada em músicas bregas. Ok.
29 de agosto de 2009
MANHÃ
Nei Duclós
Depois de limpar os pés
no portal da aurora
a noite se recolhe
É quando a manhã nasce
para ver-me forte
Acordo a casa, abro a porta
e a brisa vem bater na carne clara
da mulher que eu gosto
deitada em paz e glória
Tenho o que sonhei
e custou-me caro
esta firmeza de me tornar belo
A espera dobrou levemente a costas
mas um forte azul
coloriu-me os olhos
A tristeza se foi
como um parente chato
que abandona o quarto dos hóspedes
E é no amanhecer
que tudo isto enxergo
o lençol manchado de amor
e o barulho dos meus versos
nas folhas do caderno
RETORNO - 1. Poema do livro Outubro, musicado por Carlinhos Hartlieb.2. Imagem desta edição: Praia de Ingleses, vista do Morro das Aranhas, foto de Daniel Duclós.
JOSÉ ALENCAR, UM HOMEM DE BEM
Nei Duclós
A longa enfermidade do vice-presidente José Alencar torna ainda mais evidente o quanto ele destoa desse governo, cada vez mais doente. Vimos o quanto o empresário deu credibilidade à chapa vitoriosa com sua biografia, seu carisma e sua maneira desprovida de ambição e pose, tão comuns nos políticos que dominam hoje o acesso ao dinheiro público. E como ele lutou pelos princípios que o colocaram lá, ou seja, o apoio ao capital produtivo, à iniciativa privada, ao empreendedorismo, às leis do mercado sem se sobrepor às leis da nação etc.
Poderíamos até não acreditar nele, mas vemos agora o quanto foi sincero e como sofreu com a traição gigantesca de um governo de araque, que o desmoralizou fazendo tudo ao contrário, enchendo ainda mais as burras dos banqueiros, quebrando setores industriais inteiros, promovendo o desemprego, sucateando o empresariado nacional e entregando tudo de mão beijada para os estrangeiros.
Vemos hoje o homem idoso nas mãos de Deus, onde sempre esteve, como disse nesta sexta-feira no Jornal Nacional. Agradeceu o poder das orações de todos os que clamam por sua saúde. Deu entrevista como sempre, em paz, de cara limpa e olhando de frente, com a doçura que o tempo, a dor e a sabedoria acabam despertando num homem de bem. Fiquei emocionado com seu depoimento curto, incisivo, quase uma despedida, neste apagar das luzes da nação, quando os meliantes são perdoados por monstros togados e pobres cidadãos são humilhados por terem dito a verdade.
O povo que destrói delegacias no interior do Maranhão, que queima ônibus em São Paulo, que enfrenta a polícia que desapropria barracos podres, esse país com a população jogada no lixo, tem em José Alencar um exemplo. Não por ser grande empresário bem sucedido ou por estar doente. Mas por ser digno e fazer parte daquele Brasil soberano que se foi de uma vez nas mãos dos algozes que nos governam. Acredito que José de Alencar candidatou-se de boa fé e achou que poderia influir com sua autoridade nos rumos do governo. Mas foi voto vencido o tempo todo e não é por acaso que seu corpo acusa o duro golpe, multiplicando os pontos mortais que tomam conta do seu organismo.
Longe de ser um sujeito boa praça ou bonachão, como deverão dizer dele quando se for, José Alencar é o brasileiro convicto da sua grandeza, tranqüilo como água de poço, como se diz na fronteira e que conhece seu lugar na História da nação que ajudou a construir. Infelizmente não foi nosso presidente, o que seria uma bênção para todos nós, hoje devorados por essa corja que se sucede no Planalto desde 1964. Talvez não tivesse maldade suficiente para enfrentar os touros e as feras, mas se houvesse a oportunidade de se eleger presidente (o que não aconteceu, pois jamais foi falso como o dono da sua chapa) teríamos um governo equilibrado, sério e, posso apostar, competente.
Mas José Alencar foi usado, assim como todos nós. Acho que ele representa o eleitor não partidário, o que entrou na briga por convicção e que jogou todas as fichas em alguém quem veio do povo pobre, achando que assim poderíamos eliminar a causa de nossos males. Mas o mal cresceu e tomou conta das nossas vidas. A lição de José de Alencar é encarar tudo com grandeza, sem acusações nem ressentimentos, pois não deve nada e tem a consciência tranqüila. Isso transparece quando chega ou sai do hospital, sempre disposto a pensar no futuro.
José Alencar, vice-presidente do Brasil, um cidadão de verdade. Esta homenagem não quer usar seu nome e sua biografia para diminuir o governo do qual faz parte mas não participa. Mas é que sua postura, sua força transparece e faz sombra ao que o rodeia. É inevitável pensar assim. Que Deus o proteja e o preserve e estenda muito sua vida que honra e engrandece a nação. Ele nos dá esperança de que existem pessoas capazes de, no meio da tormenta, manter a serenidade só encontrada nos velhos capitães do mar, os que esperavam a tripulação se salvar para só depois afundar dignamente junto com o seu navio.
28 de agosto de 2009
SOBRE TWITTER, BLOGS, SITES
Nei Duclós
Quando falo em twitter para certas pessoas, lembro quando, antigamente, toda vez que eu conversava sobre cinema, música, literatura ou um bom programa de rádio, meia dúzia de imbecis se enquadrilhavam, abraçados e ficavam me olhando de maneira debochada, babando de satisfação diante do meu atrapalho em tentar provar que meu assunto não era perda de tempo. A única perda de tempo era demonstrar para mentes criminosas ágrafas que existe algo fora da sua psicopatia triunfante. Normalmente, depois que eu abordava temas como Elis Regina ou David Lean, ouvia um “ara, deixa disso”. O importante, para eles, eram assuntos como violência, putaria e ostentação.
Hoje a situação praticamente não mudou. Há os bobalhões que te olham enturmados e os outros, que se recolhem na casca da sua estupidez, desconfiados de tudo e todos, como se a vida fosse um eterno rumo à porcaria nenhuma. Já ouvi um monte de asneiras sobre os avanços da informação na rede. “Ora, essa tecnologia emergente é como espelhinho e bijuterias para índios, cuidado, não se deslumbre”. Uma coisa que realmente me irrita é quando falam que alguém está deslumbrado. É uma espécie de status dos que se encastelam na sua ignorância, usufruindo situação imitada de coronel do sertão sentado na varanda e fazendo pouco de tudo, já que a única coisa que interessa é quanto vai entrar em caixa espoliando o couro da escravaria.
O motivo de tanta encrenca, além do espírito de porco, que deve ser algo gostoso porque tanta gente exerce, é que ainda não descobriram a verdadeira natureza de um software. Se um produto virtual permite que você publique teu diário, como aconteceu no início dos blogs, então blog é diário de adolescente e não, como temos hoje, o ambiente poderoso de todo tipo de mídia, de jornal a revista, de livro a relatório, de literatura a marketing. Se existe a possibilidade de colocar teu currículo num site, então o site é uma coisa imóvel, engessada e não vale nada, e não como é hoje, um espaço nobre de difusão de informações e idéias.
E se o twitter serve para publicar abobrinhas pessoais, então o twitter não presta. É preciso entender que o twitter é uma janelona para o que se produz de mais importante no mundo. Basta saber buscar, escolher bem quem você vai seguir, pesquisar. Numa só página, vi links para um belo artigo sobre Rimbaud, uma entrevista importante sobre ideologia pós-colonialista, uma sequência deslumbrante de fotos sobre o Ramadam, entre inúmeras outras pistas. A maioria está em inglês, mas o translate do Google está bala, não é mais aquela coisa tosca de antigamente. A tradução simultânea está dando de dez no que acontecia anos atrás. Dá para sacar tudo e acompanhar os fatos sem ficar confinado aos artigalhetes da ex-grande imprensa.
Quando me falam nessas sumidades obsoletas que pontificam em espaços pagos, dizendo besteiras e muitas vez copiando (como deu para notar esses dias em eminente escritor, que chupou artigo sobre uma tendência atual nos Estados Unidos), acho graça. Com o twitter acabou essa bobagem. E não apenas isso. Você hoje pode acessar qualquer jornal do exterior e ficar sabendo o que se passa muito além do que a imprensa nativa publica e os blogueiros repercutem. Mas é preciso saber procurar. Aqui no Diário da Fonte, a jornalista e antropóloga Ida Duclós é a nossa especialista, que descobriu como usar ao máximo a nova ferramenta e está ensinando várias pessoas. Ela me abastece de informações o dia inteiro.
Claro que se você ficar seguindo a Xuxa (que quer “processar o twitter” porque levou o troco dos ex-baixinhos que ela explorou a vida toda) ou acreditando em decisão judicial de censura na rede (esses dias uma juíza mandou tirar “o blog do site”), você continuará na mais completa ignorância, satisfeito com sua auto-suficiência sobre o que desmoraliza toda e qualquer idéia fixa.
No twitter, é possível participar, por exemplo, de um fórum de debates entre deleuzistas e marxistas. Mas se achamos importante apenas as falcatruas do Senado, as asneiras do presidente, as mentiras sobre a economia e fechamos os olhos para um mundo que existe lá fora e continua em frente, apesar do nosso milenar atraso, então bom proveito. Toda vez que alguém falar em twitter dê aquela risadinha babosa e acerte o vizinho com o cotovelo enquanto aponta o incauto que resolveu levantar o assunto. Exerça a esperteza caipira. Dããããã.
RETORNO - 1. Magnífica edição da revista Sibila, editada pelos poetas Regis Bovincino e Ronald Augusto que oferece, entre muitas leituras importantes, uma extensa entrevista com João Cabral de Melo Neto. Leia sem dó nem piedade. É biscoito fino dessa que é uma publicação cada vez mais imprescindível.
2. Alguns links pontuais do twitter: Entrevista da Eurozine com Achille Mbembe sobre a teoria pós colonial. Visite a Agenda 2020, tremendo site gaúcho. Babe com Godard e a outra história do cinema - altos estudos via twitter. Fotos sensacionais do Ramadan.
3. Imagem de hoje: Muçulmanos fazem compras para o Iftar, o jantar do sol que rompe o jejum, em Chalk Bazaar, o mercado tradicional Iftar em Daca, Bangladesh no domingo, 23 agosto, 2009. (AP Photo / Pavel Rahman) #
27 de agosto de 2009
O OPERÁRIO COMO EXPIAÇÃO DE CULPA
Nei Duclós
O operário, classe social emergente do início do século 20 no Brasil, é o herói do modernismo, um movimento que, já nos anos 30, como notava Manuel Bandeira nas suas crônicas sobre literatura e artes plásticas, era um novo academismo. Esse processo se intensificou ao longo das décadas e se transformou no cânone. Apesar de inúmeros movimentos que bateram no muro da herança modernista, como a geração de 45, o concretismo, a Práxis, a catequese poética, entre muitos outros, a cultura inspirada nas classes despossuídas ganhou status de nobreza e acabou desaguando numa tragédia política.
De Tarsila de Amaral com seus rostos empilhados sob chaminés (quadro Operários, foto acima) ao Oswald de Andrade, do panfletismo da sua saga Marco Zero, e da Pagu com seu romance proletário, o operário foi entronizado como a representação do chamado povo pobre. Originalmente, o marxismo-leninismo foi incorporado com sucesso na periferia do capitalismo, como a Rússia, porque o operário era um privilégio a que as massas aspiravam e, por ser privilégio, foi ungida para tomar o poder. Não interessam as outras classes, o importante é que o assalariado das fábricas, como se fosse a raça escolhida, encarnou a representação de um novo fundamentalismo, que resultou no capitalismo engessado de estado do stalinismo ou no atraso isolacionista de Cuba.
No Brasil, o impasse foi resolvido graças ao trabalhismo, uma força política que foi derrotada, exatamente porque instaurava o equilíbrio entre o capital e o trabalho, o que não é admitido por nenhuma das duas partes. Tanto o capitalista, que diz amar o trabalho, quanto o trabalhador, que aspira ao capital, precisam da mediação do Estado para conviver pacificamente. Mas isso é impossível se de um lado existe o especulador e os juros estratosféricos, junto com os tubarões que dominam os meios de produção, e do outro o operário achando que foi escolhido para mandar nos outros.
Ao contrário da revolução de 30, que concentrou forças em outra representação, a do trabalhador, mais abrangente do que operário e menos preconceituoso do que o pobre, o novo academismo fez do ídolo operário uma expiação da culpa da classe média letrada. Antonio Candido, com suas justificativas toscas, citadas por Augusto Nunes, tenta esconder o que enfim foi desmascarado pelo governo Lula. A ilusão do operário analfabeto que enfeixava todas as virtudes que faltavam aos alfabetizados é apenas mais uma camada do deslocamento do qual nos fala Roberto Schwarz em Machado de Assis, um mestre na periferia do capitalismo. O Brasil precisa cultivar o atraso da sua superestrutura (as ideias, os debates, as leis, os conceitos, a política) para que fique impune a tunga dos frutos do trabalho da população escrava.
Hoje, quando há temor de mais tempo no poder para o PT, é bom lembrar a obra de quem elegeu os operários como heróis, tão nociva quanto a dos que elegeram os grandes ditadores como Hitler e Mussolini. Em novembro de 1935, uma quartelada desestabilizou um governo eleito pela Assembléia Constituinte. As massas, principalmente nos quartéis, estava impregnadas de propaganda pseudorevolucionária. Foi um movimento da Força Pública em Natal por melhores salários, um paredismo nas forças armadas insufladas pelo marxismo de galinheiro, que desencadeou o golpe e pegou o líder, Luis Carlos Prestes, da calças na mão.
Prestes e sua curriola tiveram que assumir a quartelada, que foi imediatamente sufocada, depois de uma desastrada investida no quartel da Praia Vermelha, onde houve assassinatos na calada da noite. Esse episódio inspirou o golpismo de extrema direita no Brasil. Primeiro, a tentativa de golpe foi abortada pela instauração do Estado Novo nacionalista em 1937, que lutou mais tarde contra o nazifascismo. Depois, em 1938, os integralistas tentaram matar o presidente com um ataque de gangs ao palácio do Catete. Finalmente, conseguiram derrubar Getulio em 1945, destruir sua obra em cinco anos e, ao sofrerem o revés das eleições de 1950, lutaram para levar GV ao suicídio.
Tudo isso culminou com 1964 e com sua consolidação, 1985. No plenário do Senado no mais recente 24 de agosto, José Sarney disse que em 1954 já fazia parte da UDN anti-Vargas, mas que o suicídio o deixou “comovido”. Não há limites para a cara de pau. É que hoje, depois que Lula provou a inoperância das idéias metidas as libertárias do operário como expiação de culpa, a obra de Getulio emerge como um transatlântico afundado pelos vermes. É impossível negar sua obra. Então mentem que se comoveram com o suicídio.
Esfregaram as mãos, isso sim. E fazem a festa hoje, quando um ex-operário, que nunca foi trabalhador no sentido de trabalho mesmo, amealha capital com sua dupla gestão de horrores. Ele e sua curriola, tendo à frente o ex-desafeto Collor e o meliante Palocci. É isso o que colhemos com a cultura a serviço dos equívocos. Uma produção cultural que passa pela carnavalização do Brasil, a cargo do teatro dito de vanguarda, primo-irmão do besteirol e das peças comerciais importadas. As denúncias do teatro russo contra a acomodação da classe média, que se referiam à ditadura tzarista mas que não podiam servir de parâmetro para a situação brasileira, intensificaram a culpa. Todos ficaram convencidos que Lula era a solução. Bastava o torneiro mecânico chegar lá, e pronto, estávamos com a alma pura e limpa.
O Brasil se sente culpado por ter se defendido das invasões paraguaias, por ter conquistado território aos hispânicos, por ter expulso os holandeses, franceses, ingleses, espanhóis. O Brasil tem vergonha de suas lutas e agora paga o maior mico abrindo as pernas para os cocaleiros como Morales, os falsificadores como Lugo, os leões de chácara como Chávez. Só falta o Equador vir aqui nos dar uns cascudos. A tudo suportamos, porque somos culpados, tão culpados que elegemos um operário para nos governar.
É como dizia Lampião, uma das duas cabeças do Othon Bastos em Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha: “Tenho medo de viver sonhando com a luz de bala que joguei em cima do bom e do ruim. Tenho medo do inferno, e das almas penadas que cortei com o meu punhal; tenho medo de ficar triste, e sozinho como gado berrando pro sol; tenho medo, Cristino; tenho medo da escuridão da morte.”
BATE O BUMBO: LEILA NO JABUTI
Minha candidata ao Jabuti deste ano é Leila V. B. Gouvêa , que concorre na categoria Teoria e Crítica Literária com seu livro Pensamento e "lirismo puro" na poesia de Cecília Meireles (EDUSP, 248 pgs., R$ 42,00). Leila, excelente repórter, com quem tive a oportunidade de trabalhar quando eu editava a revista Notícias Fiesp/Ciesp, é autora acadêmica séria, de grande talento e profundidade. Ela sempre me falava desse seu trabalho sobre Cecília, autora a qual dedicou sua vida, tendo inúmeros estudos sobre ela.
Seu livro está descrito assim: “A singularidade da poesia de Cecília Meireles face ao modernismo é a questão inicial colocada por Leila Gouvêa neste ensaio: para a autora, pode-se caracterizá-la como poesia moderna dentro da tradição pós-simbolista internacional. Analisando as obras de Cecília, desde a fase inicial até sua produção madura, a autora procura identificar o pensamento estético da escritora, a presença do cotidiano em sua poesia, como a genealogia do pensamento e da “metafísica” atravessa sua lírica, a presença do mito, a presença e o sentimento do tempo histórico na poética ceciliana. Alcides Villaça observa que a autora apresenta um generoso leque de perspectivas de interpretação, adicionadas a partir do ângulo de quem sente e pensa a poesia ceciliana: da alegorização platônica à presença viva dos mitos, do “canto encalacrado” à incursão histórica, da sondagem dos elementos musicais e imagéticos ao plano de uma dolorosa metafísica."
Um pouquinho de Cecília Meireles em Vigilância, do seu livro Mar absoluto: “E como adormecer nesta Ilha em sobressalto,/ se o perigo do mar no meu sangue se agita,/e eu sou, por quem navega, a eternamente aflita?”
ENCRENCA
Nei Duclós (*)
O excesso de boas intenções embaladas em programas solidários alerta para uma realidade mais prosaica: a de que nos entregamos ao conflito por vocação e natureza e todo esforço em contrário soa falso. O normal é a encrenca, especialmente entre os que estão próximos demais, como acontece nas tragédias domésticas, conjugais ou não. Morder quem está perto é um esporte consolidado, enquanto a idéia de ajudar o vizinho é tão bizarra quanto rasgar dinheiro. Mas dizer isso é pecado.
É melhor acreditar no gesto de jogar pombas para o alto (que correm em direção a um abrigo antes que alguém lhe dirija algum chumbo quente) como representação da paz. A experiência ensina que a paz não depende de beijos no coração. Pelo menos porque o órgão bombeador de sangue não pode ser beijado impunemente, sob pena de lambuzar o beijador.
Pessoas realmente sinceras se xingam quando se encontram. É a maneira humana de demonstrar apreço. Esforços pela paz exigem sacrifícios tremendos, como foi o caso do Brasil na II Guerra. Os Estados Unidos precisavam do nosso apoio para reverter a situação complicada na África, onde o nazismo avançava com sucessivas vitórias e poderia se instalar solidamente para, dali, conseguir invadir o continente sul-americano.
O governo brasileiro declarou então guerra à Alemanha e Itália e, segundo Sumner Welles, subsecretário de Estado dos EUA, “colocou à disposição dos Estados Unidos todos os seus portos e deu ao nosso país, ao mesmo tempo,o uso livre de suas bases aéreas, em toda a região do norte do país”. O estadista americano reconheceu que “esse auxilio tornou possível aos Estados Unidos lançar aquela grande ofensiva do Norte da África, a qual marcou uma mudança da maré da guerra contra a Alemanha e a Itália”.
Vamos imaginar a posição difícil do presidente Getúlio Vargas, que precisou convencer os brasileiros sobre a necessidade de tomar essa decisão. Vargas compareceu pessoalmente à despedida dos pracinhas da FEB, que foram lutar nos campos da Europa, e os recebeu na volta, depois da vitória. A paz se beneficiou do estadista que foi derrubado um ano depois, em 1945, por um golpe militar. O crédito ficou na mão dos seus adversários políticos, que o levaram ao suicídio dez anos depois, a 24 de agosto de 1954. Mas falar sobre esse tipo de encrenca também é pecado.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada no dia 25 de agosto de 2009 no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: Sumner Welles, subsecretário de Estado dos EUA, com Getúlio Vargas e Oswaldo Aranha.
26 de agosto de 2009
A BOMBA TERCEIRIZADA
Nei Duclós
Quando o departamento de Estado americano se deu conta, o sol já estava alto. A pequena república de Zilteist, encravada no centro da Europa, enriquecera tanto com o comércio de supérfluos, por meio de agressivos corretores de bolsas espalhados pelos principais centros econômicos globalizados, que era proprietária de uma bomba nuclear. Uma não, uma série inteira de artefatos. Como acontecera isso, como deixaram que essa situação se instalasse no miolo da crise internacional? Simples. Graças a investimentos em ações disponíveis no mercado, de firmas que faziam a manutenção das bombas e que repassam direitos de propriedade sobre os objetos sob sua jurisdição (conseguida na base do leasing) para quem os enchesse de grana. Essa era a pior notícia: as bombas em questão eram americanas. Ou seja, os especuladores de Zilteist detinham o poder sobre as bombas nucleares instaladas em território estadounidense.
- Quer dizer então que, se eles quiserem detonar Washington, podem?, perguntou, aos berros, o general George Swann Bilboard, encarregado dos negócios relacionados com a energia nuclear.
- Em princípio, sim, respondeu o burocrata Down Below, que cuidava do cerimonial da Casa Branca e enfeixava poderes inusitados, inclusive esse, o de participar de uma reunião da alta cúpula da Segurança imperial. Tudo o que se relacionasse a dinheiro, juros, lucros, no mundo todo, passava pelo crivo de Below.
- Que princípio é esse, posso saber?
- O do direito à propriedade privada, disse o rotundo burocrata, que para irritar ainda mais o general, usava gravata borboleta.
- Então, disse o general se aproximando perigosamente do gordinho, se sua mãe estivesse correndo perigo à luz disso que você chama de princípio, você continuaria sentado com essa cara de pasta de amendoim?
Era uma estocada na cor da pele de Below, tido como afro-descendente, coisa que ele negava de pés juntos, dizendo que sua cor de azeitona vinha de ancestrais italianos (tinha um Cavalieri sumido entre uns primos do seu tataravô, pelo lado materno).
- Não tenho mãe, disse Below, mas logo se arrependeu. Não tenho mais mãe, quis dizer.
- Não precisa explicar, disse o general, gente que não sente que uma bomba na mão dos estrangeiros é um perigo não deve mesmo ter mãe.
O presidente americano, presente à reunião, suspirou. Aquelas reuniões eram chatas. Gostava de dizer piadas em público, se rodear de jornalistas, tirar férias, verificar os índices de aprovação. Jamais ter de enfrentar um pepino daqueles. Caucasianos ferrenhos detendo todos os direitos de acionar bombas no próprio solo americano. Isso sim era um problema. Precisava agir:
- General, essas bombas que Zilteist tem, são de verdade?
O general ficou lívido. Um frio percorreu sua espinha. Começou lá embaixo, subiu pela coluna e rebateu na nuca. Chamam isso de brio.
- Como assim, Sr. Presidente?
- Veja bem, continuou o estadista. Descobrimos muito tarde que aquelas ogivas que os russos desfilavam em carro aberto não tinham nada dentro. Será que não deveríamos usar o mesmo expediente?
- Claro que não, Sr. Presidente. Somos americanos. É diferente.
- Entendo, meu general, mas não poderíamos então esvaziar essas bombas que são de propriedade deles e obrigá-los a carregar as cascas?
- O Sr. diz, entregar nossos mísseis, com toda a tecnologia embutida, com ogivas falsas e arrostar um processo liderado pela ONU?, perguntou, alarmado, interferindo onde não era chamado, o gordinho Below.
- Então, qual é a solução? perguntou, bocejando, o presidente.
“Posso dar uma sugestão?”, disse, esfregando as mãos, o professor doutor em economia e estrategista Bill Proudham. “Não”, respondeu o general, que já conhecia aquela mente atrapalhada. “Vamos ouvi-lo, general, “ disse o presidente, pensando no lanche dali a pouco. “É o seguinte”, disse Proudham, servindo-se de uma batatinha crocante que jazia na mesa havia alguns dias (não havia faxineira na sala de reunião da Segurança Nacional). “Vamos comprar Zilteist e anexá-la ao principado de Mônaco. Conhecemos seus venais governantes, vivem comendo da mão dos altos especuladores. Basta fazê-los aprovar algumas leis e a propriedade das bombas será estatizada. Aí compramos o país, o incluímos nas corridas de Fórmula 1 e às visitas ao palácio onde a Grace Kelly guardou sua estonteante beleza e pronto”.
O general estava verde de fúria. Todas as reuniões da Segurança acabavam com alguma sugestão medonha por parte de um civil. Mas o presidente colocou água fria na fervura do general: “Combinado, Proudham, acho a idéia boa. Mas só se ela for liderada pelo nosso general aqui. Terá plenos poderes para fazer a transação e vamos liberar um trilhão de dólares para isso ser levado a bom termo. O general poderá ficar com um por cento dos montante. O que acha general? “
Mas o grande militar já não escutava mais. Estava sonhando com uma boa pescaria nos lagos canadenses, com tralhas de última geração, rodeado de garotas recrutas da Marinha. “Aceito”, disse. “Vamos fazer isso. Meu primeiro passo será evitar que as bombas façam parte do mercado de ações”. “Mas meu general”, disse Below, quase gargalhando. “Sem ação, como faremos a guerra? Imobilizados?”
O trocadilho infame acabou com a reunião. Proudham corria ao banheiro, pois a batatinha já fazia efeito.
RETORNO - Imagem desta edição: Grace Kelly.
25 de agosto de 2009
ESCUTE BELCHIOR, O QUE ANDA SUMIDO
Nei Duclós
Aconteceu de verdade. Eu trabalhava na Ilustrada da Folha de S. Paulo, lá por 1976/77. Estava chegando na redação da Barão de Limeira para mais uma tarde de trabalho quando Belchior, que estava passando na calçada, saindo do jornal, chegou para mim e disse: “Nei, li Outubro em Porto Alegre na casa de uma amiga, gostei muito mas não consegui levar o exemplar, a dona não deixou. Você consegue um para mim?” Eu tinha lançado meu livro de estréia um ano antes e recebia ali, por parte do grande poeta que hoje anda sumido, uma demonstração de apreço, reconhecimento e consideração tão raro quanto improvável. Parece um sonho, mas é fato. Nem lembro direito o que disse para este que é o mais radical artista da música popular, mas enviei um livro autografado mais tarde. E nunca mais nos falamos.
Assim como surge, Belchior vai embora. Tem motivos de sobra. Vá a esse endereço e reviva todos seus grandes clássicos e me diga se não tem razão em fazer o que o Fantástico revelou no último domingo. Belchior deixou imóveis com tudo dentro, com contas a pagar, um automóvel estacionado no aeroporto de Congonhas, que já soma 18 mil em dívidas, não liga nem escreve para ninguém conhecido e, segundo alguns fãs, é visto no Chile, no Uruguai, em Salvador desde quando deixou de aparecer e de atender as solicitações de shows, isso já faz dois anos. Bem que ele avisou em seus versos: “Gente de minha rua/ Como eu andei distante/ Quando eu desapareci”
Vamos imaginar que não aconteceu o pior (não seria o caso de acionar o setor de Pessoas Desaparecidas?), que Belchior não esteja no outro lado nem precisando de ajuda e que apenas cumpriu sua própria profecia, fruto de sua radicalidade em não compactuar com o sistema de ilusões e sacanagens que nos envolveu nos último 45 anos. Em todas as suas letras, Belchior dá seu principal recado, sintetizado nestes versos: “Eu não estou interessado/ Em nenhuma teoria/ Nem nessas coisas do oriente/ Romances astrais/ A minha alucinação/ É suportar o dia-a-dia/ E meu delírio/ É a experiência/ Com coisas reais...” O incrível é que agora querem saber apenas onde anda, para solucionar o mistério e não para decifrar seu enigma. Continuam não querendo saber como ele anda, como é ou foi seu caminho, o que percorreu com sua arte.
Com seu talento ele chamou a atenção de Elis Regina (que por um tempo lhe deu visibilidade), mas isso foi apenas um passo, não resume sua grandeza. Belchior é muito maior do que a percepção que temos dele. Pode ser tarde demais, talvez tenha mesmo desistido de nos falar o que sempre nos disse com todas as letras. Mas não importa. É hora de escutá-lo de novo: “Ora direis, ouvir estrelas, certo perdeste o senso/ Eu vos direi no entanto:/ Enquanto houver espaço, corpo e tempo e algum modo de dizer não/ Eu canto.” Por ser completo, Belchior também não se limitou a essa insistência sobre a necessidade de nos transformar, de nos expressar, de superarmos o passado, de resgatar o que perdemos, de apontar para o futuro. É também e principalmente um cantor do amor e seus desdobramentos: “Deixando a profundidade de lado /Eu quero é ficar colado à pele dela noite e dia/ Fazendo tudo de novo e dizendo sim à paixão morando na filosofia”.
Belchior também carrega nos seus versos, nas suas músicas, nas suas interpetações, as citações do que lhe emociona e faz a cabeça. Ninguém cita tanto quanto ele. Faz referências a Caetano Veloso (seu Outro em negativo), Poe, Lorca, John Lennon, João Cabral. Nascido e criado no Ceará, tendo vindo para o Sul, Belchior não cai nas armadilhas dos lugares comuns da “gente do sertão” e levanta a voz contra a mesmice da nossa percepção, em que colocamos essa dualidade entre uma parte rica do Brasil em confronto com a parte pobre. E debocha, com lirismo e grande metáfora: “Pois o que pesa no norte, pela lei da gravidade,/ disso Newton já sabia! Cai no sul grande cidade”.
É impressionante a quantidade de obras-primas produzidas por Belchior ao longo de sua vida. Para quem, como ele, extrapolou todos os limites da canção, inaugurou um novo canto, alertou sobre os pesadelos que nos assassinaram, que cantou o amor sem fechar os olhos, que carregou esse andor pesado pelo país em ruínas, é compreensível que tenha abandonado tudo e saído porta afora. Só rezamos para que ele continue em algum lugar, vivo. "O passado é uma roupa que já não serve mais".
Mas a verdade, Belchior, é que todos nós sumimos. Fomos soterrados pela incúria, a inveja, a mediocridade, a brutalidade, a dor, a morte da esperança. Fomos destruídos, jogados fora, esquecidos. E agora que estamos sumidos querem nossas pistas. “Anjos mexem nos armários/ procuram pálidos/ o que perdi na aventura trágica” como digo num poema em Outubro. O mesmo livro que te emocionou e que ainda espero conversar sobre ele e sobre a tua poesia. Pois se tudo some pelo ralo, fica a nossa voz e a vontade do reencontro.
Como você mesmo diz: “O que é que eu posso fazer/ com a minha juventude/ quando a máxima saúde hoje/ é pretender usar a voz?/ O que é que eu posso fazer/ um simples cantador das coisas do porão?/ Deus fez os cães da rua pra morder vocês/ que sob a luz da lua,/ os tratam como gente - é claro! - a pontapés.”
RETORNO - Leia também: Encrenca, minha crônica de hoje, como acontece todas as terças-feiras, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.
24 de agosto de 2009
VARGAS: O ESTADISTA SOLAR PUNIDO PELA SOMBRA
Nei Duclós
Escolhi a bela foto acima para ilustrar este texto sobre Getúlio Vargas, que foi forçado a se suicidar em 24 de agosto de 1954, exatamente 55 anos atrás, depois de uma campanha bandida difamatória, que jogou lama na obra de construção nacional do grande presidente. Uma calúnia histórica, até hoje em vigor, a cargo da ultra-direita, dos ladrões e dos imperialistas que não se conformaram com as sucessivas medidas de Getúlio contra a espoliação internacional.
Principalmente, não engoliram a acachapante vitória nas eleições presidenciais de 1950, quando Getúlio Vargas alcançou 48 por cento dos votos, o que deixou seus adversários na rabeira. Venceu sem apoio de ninguém, nem da imprensa, da rádio ou da televisão. Seus comícios era convocados por panfletos jogados nas cidades e atraíam multidões que urravam seu nome. Por que será? Porque era um ditador pai dos pobres enganador? Ou porque o povo sabia que ali estava seu principal aliado, seu líder, que o tirou da brutalidade pré-histórica da República Velha, onde famílias inteiras eram exploradas pelos tubarões de sempre, e o colocou numa vida decente, segura, das leis trabalhistas, dos salários compatíveis?
Vi minha cidade, Uruguaiana, inteira aos prantos no dia do desfecho. Fui acordado com um sussurro sinistro: “Getúlio se matou! Getúlio se matou”. Porto Alegre, como aconteceu em outras cidades, foi depredada pela multidão em fúria. Os jornais de direita do Rio de Janeiro, como O Globo (sempre eles!) foram empastelados. A reação popular adiou o golpe por dez anos. Só em 1964 eles conseguiram reunir forças para derrubar o herdeiro político de Getúlio, João Goulart, que acabou sendo assassinado no exílio.
Lembro quando Samuel Wainer, o fundador da Ultima Hora, o único jornal favorável a Getúlio, criado depois das eleições de 1950, me contou como ele viu o 24 de agosto. Eu era seu editor no tablóide Aqui São Paulo, em 1976. Samuel voltara do exílio acabado, com grossas sobrancelhas brancas e cabelo de algodão. Imaginava que ele tinha uns 80 anos, mas estava mais ou menos na altura da idade que eu tenho agora, 60 anos. O que não esqueço é um detalhe das suas lembranças (mais tarde reunidas no exemplar livro escrito por Augusto Nunes, Minha razão de viver): a população avançou sobre os veículos que traziam os pacotes da UH com a notícia do suicídio, arrancavam os exemplares e...jogavam o dinheiro para dentro das carrocerias! O povo pagava o jornal que ia ler! Esse era o povo brasileiro daquela época, que não se comportava, em massa, como hoje, em que tudo é saqueado, basta haver um acidente em qualquer lugar. Eles pagavam pelo jornal que iam ler! As caminhonetes, os caminhões, ficaram cheios daquele troco que remunerava a UH pelo seu trabalho.
Não vi nenhum destaque hoje nos jornais sobre o suicídio, como se eles tivessem enfim conseguido erradicar a existência, a presença, o legado do grande presidente. Vejam na foto acima Getúlio em visita a um orfanato em Petrópolis: o semblante claro, franco, aberto, rodeado de crianças naqueles idos do Brasil soberano. Vejam o rosto dessas crianças. Existia pobreza, existia dor naquela época, claro, existiam famílias destroçadas, mas não havia o estímulo ao crime contra a infância, não havia o abandono criminoso, como ocorre hoje.
Getúlio não tinha cara de mau, não fazia cara de mau. Foi o estadista que inaugurou o riso em público no Brasil. Ao contrário dos psicopatas da República Velha que o antecederam, todos de rosto cavernoso, e de alguns bandidos que o sucederam, os de riso maroto como JK, os de caratonha fechada como Médici, os de olhar rútilo dos dementes como Collor, os de expressão que mistura bonomia com esperteza, como Lula, os caras de múmia como FHC e Sarney, Getúlio era uma pessoa inteira, íntegra, solar. Desde sua infância, cultivou uma vida pessoal reservada e assumia, nas amizades e na política, uma postura séria, conseqüente. A alegria vinha de sua concentração e grandeza.
Por que o forçaram ao suicídio? Porque inventaram uma atentado contra um jovem major da Aeronáutica, que fazia a segurança do vilão Carlos Lacerda (toc toc toc), conhecido como o Corvo, que liderava a campanha difamatória. Envolveram o presidente nesse embrulho e o forçaram a renunciar. Getúlio, ao dar um tiro no coração, puxou a toalha na hora em que se sentavam para o banquete do poder. Mas o motivo principal foi a intervenção de Vargas contra a espoliação do Brasil pelo capital estrangeiro e a criação da Petrobrás. Sim a Petrobrás, que hoje aparece nas propagandas como uma das maiores empresas do mundo. Só que agora ela não é mais brasileira. Agora está nos conformes.
Destaco, do livro de Luthero Vargas, um dos filhos de GV, autor de Getúlio Vargas, a Revolução Inacabada, publicado em 1988, a denúncia sobre as perdas internacionais, feita pelo próprio GV em 31 de dezembro de 1951. O presidente se refere à artimanha que solapou as boas intenções do decreto do presidente Dutra, que o antecedeu, de 1946, que assegurava "aos capitais estrangeiros aplicados no Brasil o direito de retorno ao seu país de origem, mas na proporção máxima de 20% ao ano”. Ao mesmo tempo, diz GV, no mesmo ano foi feito um regulamento, baixado pela Carteira de Câmbio do Banco do Brasil (e mais tarde completado por vários aditivos), onde se permitiu que os juros, dividendos, lucros do capital estrangeiro que ultrapassasem os 8% previstos em lei eram também considerados como capital estrangeiro.
Essa artimanha permitiu que em cinco anos tenha sido subtraída “da economia brasileira uma soma fabulosa, quase equivalente ao papel moeda circulante no país e que foi escandalosamente incorporado ao capital estrangeiro”. Isso sabotou o espírito e o texto “do decreto-lei, inaugurando na surdina e sem que ninguém se desse conta”, um grande e extorsivo “sistema de vazamento do fruto do trabalho de milhões de brasileiros.” Em 1952, em função desse escândalo, Getúlio Vargas fez o decreto limitando em 10% as remessas de lucros para o Exterior. Foi o estopim. Estava a armada a conspiração.
Décadas mais tarde, quando Brizola falava em perdas internacionais, todos riam. Tinham esquecido as origens desse crime. Já vivíamos então em pleno Brasil sem soberania. Ficamos acostumados ao roubo do nosso trabalho. O país não vai para frente. Claro, é tudo levado para fora, com a conivência geral. É por isso que esquecer o suicídio é crime.
Getúlio Vargas, presidente do Brasil Soberano, presente.
RETORNO - O Jornal Nacional deste 24 de agosto fez matéria sobre os bilhetes de Vargas, que foram guardados pelo seu assessor Lourival Fontes, que deixou ordem para só liberar 40 anos depois de sua morte. Um bestinha metido a historiador, entrevistado no programa, dando sorrisinhos espertos, capturou um bilhete de Getúlio abordando vagas de cargos públicos. Não aprofundou a questão querendo saber do que realmente se tratava, se eram cargos que o Executivo deveria decidir nem nada. Simplesmente serviu para a conclusão óbvia: a de que GV usava os mesmos expedientes de hoje. Canalha estúpida. Comparar a bandidagem de hoje com o grande presidente. É como costumo dizer: o anti-varguismo, esse aleijão ideológico, não dorme nunca.
23 de agosto de 2009
CHE, CARIÑO
Lula é realmente um grande estadista. Ao posar com um colar de folhas de coca ao lado de seu parceiro, Evo Morales, presidente da Bolívia, a situação ficou dessa maneira descrita a seguir. Primeiro, o Brasil se compromete a prejudicar ainda mais a indústria têxtil brasileira, já sucateada pelos chineses, ao substituir os Estados Unidos num acordo de tarifa zero entre os dois países nesse ramo industrial. Bush tinha mandado Morales pastar porque os bolivianos não fizeram nada contra o narcotráfico. Não entendo nada de política internacional, mas como um cocalero iria brigar com a industrialização e exportação ilegais da folha da coca? Dizem que uma coisa nada tem ver com a outra. Então, tá. A cocaína deve vir de outra fonte, talvez do carrapicho.
Segundo, o Brasil regularizou a vida de 48 mil bolivianos, a maioria na cidade de São Paulo, em troca de apenas oito (o noticiário diz OITO) brasileiros na Bolívia. Muito justo. Nós somos uns imperialistas hijos de la puta e eles são unos cucarachos revolucionários. Precisamos pagar o mico. Tem mais. O Brasil não quer receber de volta os cinco mil brasileiros que estão em zona da fronteira na Bolívia, lá onde se instalaram, compraram e beneficiaram terras. Pois iria, segundo o governo brasileiro, pressionar “os projetos” sociais no Brasil. Ou seja, na política “social” de Lula não tem lugar para brasileiro que está sendo expulso da Bolívia.
Qual a solução? Tirá-los da zona da fronteira? Em termos, pois a idéia é removê-los para uma província que é também fronteira, só que do Acre, em lugar remoto sem infra-estrutura. Então o objetivo não tem nada a ver com fronteira, já que vão tirar de uma para colocar em outra. O objetivo é se livrar desses brasileiros que estão sendo pressionados pela chegada, armada pelo governo boliviano, de centenas de colonos que, com discurso nacionalista, querem tomar as terras dos brasileiros.
Os brasileiros não deveriam estar lá. Não se deve deixar criar uma situação dessas. Mas já que ela está criada, qual a solução? No mínimo, respeitar os patrimônios , a sobrevivência e a integridade física de quem se encontra no meio do imbróglio. Na sua visita, envolto num colar de folhas de coca, Lula disse acreditar que o governo boliviano vai tratar “com carinho” os brasileiros que estão lá. Mas era o que faltava! Carinho em política internacional! Vamos ver o que significa carinho (que na Cucaracholandia é um termo usando entre amantes).
O Brasil conseguiu em 2007, e já repassou, 20 milhões de reais, ou mais de 10 milhões de dólares, para uma ONG, a OIM, Organização Internacional para Migrações, que tem como diretor geral um general americano, Wiliam Lacy Swing, um sujeito especializado em arrancar verba para pretensos trabalhos humanitários. Fez isso quando era delegado da ONU e conseguia recursos de europeus e americanos para promover eleições no Congo, por exemplo, em plena guerra. Mas vamos pensar o seguinte: para que 20 paus para a OIM?
É para que a ONG ajude a “realocar” (expulsar) os brasileiros de lá. Para tirar os caras das suas terras e jogá-los no meio do mato, a OIM do general Swing recebe quatro mil reais POR BRASILEIRO migrado à força (basta dividir 20 milhões por cinco mil). É um grande negócio, realmente. Por que não dão quatro mil para cada um dos brasileiros viajarem até o Brasil onde encontrarão, por iniciativa do governo, terras compatíveis com as que eles tinham na Bolívia? Ah, mas isso vai desestabilizar as grossas sacanagens com grana que significam os tais projetos sociais.
Como se faz a reforma agrária hoje no Brasil? Simples. Os representantes do governo, via institutos especializados e outros quetais, conseguem propriedades para os sem-terra, mas em cada transação ficam com um pedaço de chão. Se você assentar milhares e milhares, terá então milhares e milhares de acres nas mãos dessas maganos intermediários. É um novo latifúndio que se forma.
Eis aí a conga, a rumba, o sambinha, o mambo desse ágape em que Lula e o chanceler Celso Amorim participaram como histriônicos protagonistas, pois o Brasil entrega tudo, se enreda com as sacanagens do vizinho, sai de mãos abanando e deixa os brasileiros que realmente necessitam da ajuda do nosso governo na mais completa sinuca de bico. É de dar dó vê-los se abraçando com Morales. São velhos comparsas. O que querem? Fazer papel de palhaço diante desses indiferentes canalhas?
VILLA-LOBOS E AS CRIANÇAS NA ERA VARGAS
Nei Duclós
O megaespetáculo do Criança Esperança na Globo começou com o Trenzinho Caipira, de Heitor Villa-Lobos. O evento privatiza Villa-Lobos, o maestro educador de crianças dos governos Vargas, de 1930 a 1945. E serve para arrancar dinheiro dos contribuintes, quando o trabalho de Villa, na era Vargas, foi todo feito com dinheiro público, dos impostos, que para isso servia. Por ter atuado tanto no Governo Provisório (1930-33), quanto no Governo Constituinte (1934-1937) quanto no Estado Novo (1937-45), Villa, o gênio, foi por muito tempo acusado de fascista e nazista (a mediocridade fareja o talento), já que ele pegou a rebarba da grande calúnia histórica promovida pelo lacerdismo – o macartismo brasileiro – e que até hoje funciona.
Basta ver as fotos selecionadas de Vargas com a proximidade do 24 de agosto, data do suicídio do grande presidente. Sempre com cara de mau, para que a marca do “ditador” continue colando. Mas como a mentira, de tão longeva, cai de velha, é moda agora fazer uma revisões e dizer que Villa até que era um nacionalista e não um nazista como o governo ao qual servia. Haja paciência para esses criminosos. Mas a sorte é que vários estudiosos levantam o trabalho do maestro como educador na era Vargas, e não como um coadjuvante de ditador nenhum. Falta reconhecer o óbvio: a de que essa obra foi que gerou uma quantidade gigantesca de gênios musicais do Brasil (Tom Jobim era aluno confesso de Villa-Lobos), já que o ensino obrigatório de música foi decretado pelo Governo Vargas no ensino público em 1932. Sabiam disso? Pois saibam ou lembrem.
Vamos agora passar a palavra para duas professoras, Priscila Paglia e sua orientadora Marlete dos Anjos S. Schaffrath, com o trabalho “Heitor Villa-Lobos E A Formação Moral Do Povo Brasileiro: O Canto Orfeônico”. Elas insistem no enfoque tradicional do nacionalismo autoritário e a desconfiança geral em relação a Getúlio. Mas também apresentam fatos:
“Heitor Villa-Lobos foi convidado a assumir cargo público na SEMA (Superintendência Educacional e Artística). Através deste órgão ele teve a oportunidade de implantar seu projeto de Educação Musical, baseado na prática de canto orfeônico, de modo a torná-la disciplina obrigatória no currículo das escolas, de ensino regular, brasileiras de acordo com o Decreto de n. 19890 de 18 de abril de 1931, que contemplava as escolas do Rio de Janeiro (antigo Distrito Federal) e o decreto n. 24794, de 14 de julho de 1934 que estendia o ensino a todos os estabelecimentos primário e secundário do país, permanecendo assim até a promulgação da lei n. 5692, de 1971."
"Segundo Guérios (2003) dois foram os motivos levaram Villa-Lobos a assumir este cargo. Primeiro, pela questão financeira, pois mesmo já sendo um compositor de renome internacional ele ainda não dispunha de uma fonte de sustento, portanto, um cargo público era uma boa oportunidade para que pudesse melhorar financeiramente. Segundo, pelo poder que lhe garantiria esta função, tendo a seu dispor o apoio do governo para a implementação de projetos culturais."
"Entretanto, de acordo com Souza (2005) dois fatos foram fundamentais para que Heitor Villa-Lobos conseguisse implantar seu projeto de educação musical, primeiro, o fato de ter influência junto ao Interventor paulista, João Alberto, homem que apoiou e patrocinou Villa-Lobos para que este pudesse realizar concertos populares promovendo música nacionalista em 54 cidades do interior do Estado de São Paulo no período entre janeiro e abril de 1931. Além do apoio e patrocínio para a realização de uma concentração cívico-artístico dia 3 de maio do ano de 1931 no parque Antártica em São Paulo onde, segundo Guérios (2003), Villa-Lobos percebeu as possibilidades que estavam se abrindo com o regime. O autor também supõe que este evento cívico-artístico tenha marcado um desvio na trajetória do compositor."
"Segundo fato ter escrito a Getúlio Vargas uma carta intitulada “Apelo ao Chefe Provisório da República Brasileira”. Esta carta (nota: trechos reproduzidos abaixo)foi enviada a Getúlio Vargas e chegou a ser reproduzida no Jornal do Brasil do dia 12 de fevereiro de 1932. Villa-Lobos revela nesta carta que o estado em que se encontra o cenário artístico Brasileiro é horrível, porém, afirma ter encontrado a solução para o problema e, de acordo com (GUÉRIOS, 2003, p. 177): “(...) aproveitou a oportunidade para deixar claro que estava a disposição do governo, (...)”. A impressão que se tem é que como resposta é criada, no mês seguinte, a SEMA. "
"(...)Acabou por apresentar seu plano de Educação Musical à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Em 1931, o maestro organizou uma concentração orfeônica chamada "Exortação Cívica", com 12 mil vozes. Após dois anos assumiu a direção da Superintendência de Educação Musical e Artística. A partir de então, a maioria de suas composições se voltou para a educação musical. Em 1932, o presidente Vargas tornou obrigatório o ensino de canto nas escolas e criou o Curso de Pedagogia de Música e Canto. Em 1933, foi organizada a Orquestra Villa-Lobos."
Mirele Ferreira Borges também aborda o tema em “Heitor Villa-Lobos, o músico educador".
Como disse o poeta Carlos Drummond de Andrade, que por muitos anos foi Chefe de Gabinete do Ministério da Educação e Saúde do governo Vargas: "Quem o viu um dia comandando o coro de 40 mil vozes adolescentes, no estádio do Vasco da Gama, não pode esquecê-lo nunca. Era a fúria organizando-se em ritmo, tornando-se melodia e criando a comunhão mais generosa, ardente e purificadora que seria possível conceber"
Ou seja, quando acusarem Getúlio Vargas disto e daquilo, lembre em qual governo foi possível fazer um trabalho dessa envergadura. Quem pontificava era Villa-Lobos, Drummond. Hoje quem pontifica é Luciano Huck, Didi. Eu tive sorte: participei do canto orfeônico do colégio público onde fiz o primário, o Romaguera Correa, de Uruguaiana, e tive aulas de música no currículo normal. Fazíamos a clave de sol em cadernos pautados e copiávamos melodias. Fui alfabetizado em música. Assim como aprendíamos letras e números, aprendíamos notas. Simples assim. Tudo isso foi destruído a partir de 1964. Entendeu agora porque os gritalhões sertanojos, o baticum e o pagode repetitivo tomaram conta do ouvido musical da nação?
CARTA DE VILLA-LOBOS A GETÚLIO VARGAS
"Peço permissão para lembrar a Vossa Excelência que é incontestavelmente a música, como linguagem universal, que melhor poderá fazer a mais eficaz propaganda do Brasil no estrangeiro, sobretudo se for lançada por elementos genuinamente brasileiros, porque desta forma ficará gravada a personalidade nacional, processo este que melhor define uma raça, mesmo que esta seja mista e não tenha tido uma velha tradição.
De modo que hoje, dia 1o. de fevereiro de 1932, espero que Vossa Excelência irá decidir, com acerto, a verdadeira situação dos artistas no Brasil. [...]
E então, ou Vossa Excelência será além de grande e benemérito Homem Público e estadista arguto, o amigo leal das artes e dos artistas da nossa Pátria, colaborador de um dos maiores monumentos artísticos que o mundo produziu e que a História Universal das Artes inscreverá como um dos seus capítulos mais interessantes, ou somente o grande e enérgico Chefe do Governo Provisório da República Brasileira, o invicto patriota que sacudiu o jugo atroz das rotinas políticas passadas que pesavam sobre o povo brasileiro, cujos filhos são à Vossa Excelência reconhecidos e que não cansam de exaltar Vossa Excelência nesta ascensão. [...]
E com isso Vossa Excelência terá salvo nossas artes e nossos artistas que bendirão toda a existência de Vossa Excelência. Seu humilde patrício, (a) H. Villa-Lobos. "
RETORNO - Imagens desta edição: na de cima, o maestro e os estudantes do Brasil. Na segunda foto, Villa-Lobos assume o cargo de diretor do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico e é cumprimentado pelo ministro Gustavo Capanema. E na terceira, Villa-Lobos e Getúlio Vargas, presidente do Brasil soberano.
22 de agosto de 2009
O POETA NO EITO
Nei Duclós(*)
Crônicas de Manuel Bandeira revelam o artífice da palavra no embate árduo da sobrevivência
Quatro páginas diárias datilografadas eram o seu limite, o máximo que as unhas de Manuel Bandeira podiam suportar. A enorme quantidade de compromissos, desde as crônicas semanais sobre literatura e artes plásticas, entre 1930 e 1945, até as traduções, os projetos especiais e as colaborações em inúmeras revistas literárias, faziam do tísico e hepático poeta um operário do verbo com encomendas acima de suas forças. Por isso costumava se livrar de alguns encargos, mesmo que fossem melhor remunerados do que outros, que só compensavam pela quantidade de livros depositados gratuitamente na sua mesa.
Havia também o tempo investido em eventos e visitas ao objeto de seus textos, como acontecia nos salões e exposições das artes plásticas. Como eram poucas as obras que valiam a pena serem vistas e comentadas, Bandeira se torturava de ter que falar dos aquarelistas que exigiam atenção, dos diletantes, dos simplesmente picaretas que estavam de olho nos prêmios concedidos todos os anos pelo Ministério da Educação e Saúde do ministro Gustavo Capanema, do governo de Getúlio Vargas. Foi assim que, depois de anos publicando seu rodapé no jornal A Manhã, ele convenceu o poeta Cassiano Ricardo que deveria se livrar dele, no que foi atendido.
Às vezes, precisava lembrar a seus editores que havia contas para pagar e acabava pressionando para que a remuneração pingasse na sua ascética vida de intelectual de espírito livre e de grande coragem e fôlego. Em todas as 478 páginas deste segundo volume das Crônicas Inéditas lançado pela CosacNaify, com organização, posfácio e notas de Júlio Castañon Guimarães, existe a postura exemplar do poeta. Como, por exemplo, a “crueldade” expressa na sua atuação como jurado de concursos literários, em que colocava a meritocracia acima de todas as injunções. Assim se livrava dos que exigiam os prêmios explicitamente ou por vias indiretas. Tinha gente que não respeitava a assinatura por pseudônimo, por exemplo, e entregava o nome verdadeiro, para tentar influenciar, em vão, o resultado.
Eis uma lição para os dias de hoje, em que, dividindo o número de obras pelos dias disponíveis dos jurados, teríamos recordes, como a leitura de sete romances por dia, como às vezes acontece. Como chegar a um denominador comum em tão exíguo prazo? Ou, então, como denuncia determinado diálogo entre dois amigos escritores, em que um confessava ter participado de um concurso em que o outro era jurado. O evento já tinha sido concluído e o autor em questão não fora premiado. A resposta do outro foi: “Mas por que você não me avisou?”
A sinceridade extrema do poeta era fruto do seu enorme conhecimento cultural, da presença de espírito diante da avalanche de obras, da intuição certeira que se decidiu pelos melhores quando os talentos nem eram ainda conhecidos (de Vinicius de Morais a Iberê Camargo). Bandeira fazia justiça com as próprias mãos e usava frequentemente o chamado humour, a graça ferina no lugar da frase anedótica. Dizia coisas mais ou menos assim: “fulano é tão talentoso que tem o poder de estragar a própria obra; o único problema é que o pintor colocou uma jarra de água bem no meio da tela só para estragá-la; o poeta decidiu pintar, mas ele não me convenceu; o modernismo é um novo academismo; este ano o salão está cheio de portinarices,” entre outras preciosidades do sarcasmo e da ironia.
O sabor destas crônicas é que Bandeira revela sua época pelo filtro da inteligência e da sensibilidade. Poderíamos dizer que qualquer tempo é vítima da barbárie e da truculência, e cada momento da vida humana, com vocação para a brutalidade, acaba se salvando graças aos espíritos mais elevados, que mergulham fundo e trazem à tona, tanto para os contemporâneos quanto para os pósteros, as joias que a humanidade produz e nem sempre estão visíveis. É preciso que os grandes mestres façam parte dessa corrente poderosa que define nações e décadas, para que possamos nos orgulhar de sermos humanos.
Só que existem épocas que sobram em realizações e grandes espíritos. Manuel estava rodeado pelo que havia de melhor no mundo, tanto os escritores e artistas de primeiro time, como Mario de Andrade e Guignard, os livreiros e editores, como José Olympio, e participava de acontecimentos de repercussão internacional, já na época da guerra e da Política da Boa Vizinhança, éramos tratados como aliados importantes. Havia, também, a riqueza dos temas que entraram na pauta obrigatória da nação depois da Revolução de 1930, um evento que ele considerava positivo, conforme suas próprias palavras: “A revolução brasileira, ainda quando não tivesse a vantagem, que todos esperavam dela, de sanear o ambiente político de nossa terra, deu alguma satisfação a essas exigências espirituais de renovação (...) Quanta coisa mudou! Positivamente, é o outro lado da Lua. Declaro que estou encantado”.
Sua coluna Impressões Literárias, que publicava no carioca Diário de Notícias, foi a oportunidade de verificar a explosão editorial do país logo depois da revolução, não que o governo fizesse grande coisa, alertava, mas porque a má administração geral acabou beneficiando o preço da matéria-prima, o papel, e assim inúmeros escritores tiveram a chance de chegar até o front do eito do poeta. A tudo ele abordou fora da militância modernista, segundo observação de Julio Castanõn Guimarães.
Sem nenhum tipo de amarra, ele se dava o luxo de propor a Vinicius de Morais que não insistisse muito no verso livre, já que ele poderia ser melhor no esquema tradicional da poesia. E puxava as orelhas de Jorge de Lima, do livro A Túnica Inconsútil, pelo excesso do tom bíblico tradicional, exigindo que o autor voltasse ao equilíbrio de seus lançamentos anteriores. Tanta sinceridade deve ter-lhe dado mais do que uma dor de cabeça. Por isso, desabafou nas suas próprias crônicas, chegando a confessar, a certa altura, que era um poeta menor, o que confunde até hoje seus exegetas, que levaram essa declaração ao pé da letra. Num esforço de reportagem, chegaram a dizer que Bandeira seria o nosso “maior poeta menor”, o que é um primor de contrafação crítica. No dia em que um autor como Bandeira for considerado menor, pode fechar o Brasil para balanço.
Em outro desabafo, ele confessou não entender nada de artes plásticas, o que, desta vez, sim, deve ser levado ao pé da letra. Não que ele desconhecesse o mètier. Mas ele chamava a atenção para o que importava. Pois ele entende é de texto, de palavra, de música do verbo. O poeta não pinta, não desenha, não fotografa, apenas escreve. Mas ali no seu território sagrado, ele é mestre do ofício, e as artes plásticas ou a literatura só têm a ganhar com isso.
Manejando a sua máquina Royal, que exigia esforço no ato de teclar, Bandeira nos deslumbra com sua lucidez e talento. É um Mestre, com todas as letras. Precisamos urgentemente deles. Que voltem do Olimpo e reguem novamente o coração seco da nação, entregue aos assassinos.
RETORNO - 1. (*) Resenha publicada neste sábado, dia 22 de agosto de 2009, no caderno Cultura do Diário Catarinense. 2. Imagens desta edição: a principal mostra Manuel Bandeira na exposição de Portinari, na residência da família Nabuco, no Rio de Janeiro, novembro de 1944 (foto de autoria de Carlos Moscovics, pertencente ao acervo Projeto Portinari e reproduzida no livro); depois vem a capa do lançamento e a foto originalmente publicada na quarta página do Cultura deste sábado, ilustrando minha resenha.
21 de agosto de 2009
O QUE NOS DIZ “NO LIMITE”
Nei Duclós
A sociedade de classes, no Brasil, é o inferno. Uma vez, vi num baile infantil no clube Pinheiros em São Paulo, uma criança negra uniformizada de empregada acompanhando uma sinhazinha. Era a “fantasia” real da criada, seu passaporte para o evento da classe média metida besta, pois sem esse hábito jamais poderia freqüentar os salões privilegiados. Vestindo a roupa da servidão, podia. Essa é a radicalidade da nação que não permite ascensão social, a não ser por meio do acesso ao butim, como vemos a canalha petista atualmente se servindo do dinheiro público, assim como fizeram peemedistas no governo Sarney e tucanos no de FHC.
Quem vive nos andares de cima, desconhece completamente o que se passa embaixo. Para isso existe o preconceito de berço, que faz, desde cedo, uma criatura de uma classe social mais alta, ainda engatinhando, torcer naturalmente o nariz quando vê alguém saindo do elevador de serviço. Como desconhecem completamente a vida das classes oprimidas, cria-se uma série de ilusões sobre elas. Essas ilusões são reforçadas por reportagens que reiteram o Mesmo, pois essa é a forma de consolidar a percepção equivocada sobre o Outro pobre, aquele tipo de pessoa que é chamada de “essa gente”.
Pobreza, no Brasil, é relacionada com a sujeira. Nunca viram uma casa de chão batido, varrido até o osso, com panelas areadas e tudo organizado no capricho. Não reconhecem, na pela escura, o asseio. Não imaginam uma refeição saborosa feita com poucos recursos. Desconhecem a dignidade de quem tem vergonha de abrir as portas da sua residência não porque esteja tudo ensebado, mas porque os pobres sabem o horror que é o olhar demolidor de um brasileiro esnobe diante da realidade da má distribuição de renda.
O programa global “No Limite” – e seus clones nas redes circunvizinhas – é exatamente essa visão asquerosa da pobreza. De que se trata o show de brutalidades? De separar pessoas bem nutridas de seus bens, de seus ambientes, de suas casas, suas vidas e confiná-las numa situação de miséria. Não se trata de promover o “contato com a natureza”, mas sim de jogar a classe média (para assustá-la e assim mantê-la no redil) na pobreza, onde terão direto a viver todas as distorções da percepção da sociedade de classes brasileira. Ali as mulheres não se depilam, ninguém passa desodorante, todos comem porcarias e obedecem cegamente a um mestre de cerimônias que representa a opressão tirânica dos velhos feitores, os que se comprazem em humilhar os escravos para exibi-los como troféus.
Qual o prêmio para quem conseguir sobreviver num grupo que depende visceralmente da violência uns contra os outros e do egoísmo? Dinheiro, ou seja, a volta ao status de classe média. Você vai lá, chafurda na lama, come porcaria, fede até não poder mais e se conseguir agir como um pobre, destruindo os outros, então será premiado, poderá escapar do gueto. Não existe talvez algo mais perverso, a não ser sua matriz, o BigBrother, do que essa perda de tempo televisiva, inoculada como vírus mortal na cidadania desarmada.
“No Limite” reflete o estágio atual do Brasil, em que as pessoas, desprovidas de uma sociedade organizada nos princípios da solidariedade e da ética, se jogam como cães no primeiro butim que lhe atiram. Para isso se sujam e rosnam, ferozes, para quem se aproximar. Há também o fator fingimento, os namoros forjados e a exibição de corpos numa arena menos digna do que a dos gladiadores. No Coliseu, os guerreiros escravos tinham alguma chance. Em "No Limite", ninguém vale um real furado.
Até quando? Até quando durar a atual ditadura.
RETORNO - Imagem desta edição: cena de Spartacus, de Stanley Kubrick - a servidão como espetáculo, antes da revolta.
19 de agosto de 2009
O QUE É JORNALISMO LITERÁRIO?
Nei Duclós
Jornalismo literário é a abordagem pessoal de um acervo coletivo. Por ser coletivo o acervo, essa abordagem pessoal tem um compromisso. Tudo o que aparece num enfoque tradicional da notícia está contido num texto de jornalismo literário. Portanto, jornalismo literário não é superficialidade, literatice, romantismo ou alienação. Trata-se da confecção de uma notícia com alta voltagem de criação de linguagem, como acontece na literatura. Não é, como se costuma dizer, “poesia”. É jornalismo para seduzir o leitor, informando-o sem aborrecê-lo e atraindo-o para a essência dos fatos. E qual é a essência dos fatos? É a versão compatível com a lógica, pautada pela ética, que contribui para o conhecimento de quem lê. Não se trata, portanto, de perda de tempo.
Deve ficar claro que o jornalismo literário não é dourar a pílula, enfeitar o bolo com a cereja, mas ao contrário, destrinchar a receita sem cair no ramerrão da mesmice. “Por que você colocou os ovos com casca e tudo na panela?” perguntou o trapalhão Dedé Santana. “Porque eu já sei o que tem dentro”, respondeu Didi. Saber de antemão é a ilusão recorrente da mídia, que repete sem cessar os mesmos fatos descritos todos da mesma forma. É preciso sempre recorrer os colunistas, aos cronistas, aos editorialistas para saber algo mais, ou, para saber do que realmente se trata.
O problema é que muitos autores que usam os veículos diariamente para disseminar suas idéias, furos e opiniões, também costumam cair na mesma armadilha e pouco contribuem para esclarecer os acontecimentos. É porque o grosso da reportagem, em geral, abriu mão dessa composição criativa dos fatos num tecido (texto) que possa não apenas destrinchar os principais elementos, mas de emocionar, impactar, alertar, que são formas de informar. Com poucos repórteres, dito especiais, estão envolvidos em algo mais ou acima dessa média que provoca bocejos, fica difícil para os articulistas darem um passo à frente. Quando o desafio é pequeno, os desdobramentos são igualmente precários.
Se por exemplo, a reportagem é feita por um grande criador, que está no front e usa todo seu arsenal de criatividade para compor sua matéria, um colunista vai ter de caprichar para não repetir o que já foi publicado, ou pagar o mico de nada acrescentar ao que a mais comum das criaturas do jornalismo, a cobertura diária dos fatos, já resolveu de maneira satisfatória. Mas a tendência é anular os repórteres para que colunistas medíocres possam ter vez no cardápio da mídia. Olhando a lista de nomes de alguns luminares dos espaços nobres dos jornais, podemos notar o quanto isso é verdade.
Ao longo da minha vivência nas redações, acumulei alguns exemplos de jornalismo literário que não canso de repetir. Tínhamos militantes notórios nessa área nos anos 60 e 70, que publicavam quase diariamente nos jornais, como era o caso de Marcos Faerman, Octavio Ribeiro, Caco Barcellos, Audálio Dantas. Nas revistas semanais, mensais e também nos semanários, sobravam exemplos desse jornalismo com nomes como Hamilton Almeida Filho, Narciso Kalili, entre tantos outros, apoiados por grandes fotógrafos, de Walter Firmo a J.B Scalco. Mas esses exemplos podem ser conseguidos facilmente na internet.
Prefiro aqui destacar algumas reportagens que considero as que mais tiveram impacto para mim. Uma delas foi “Sabotamos a Central Nuclear”, reportagem de Caco Barcelos publicada na Repórter Três, revista que teve apenas alguns números da Editora Três. Caco inscreveu-se como operário e conseguiu, com uma máquina fotográfica simples, mostrar o secretíssimo canteiro de obras de Angra I, guardado ciosamente pela ditadura dos anos 70. Outra foi a reportagem de Edenilton Lampião para o tablóide de Samuel Wainer, Aqui São Paulo, sobre o psiquiatra que curou Nelson Gonçalves do vício da cocaína e que morava num dos casarões abandonados da Avenida Paulista.
Inumeráveis reportagens do jornalismo literário viraram livros, ou foram concebidas como livros, no rastro dos grandes do newjournalism, como Truman Capote de A Sangue Frio. É o caso de Quarto de Despejo, o diário da favelada Carolina de Jesus, objeto de uma matéria de Audálio Dantas. Sempre acho que tudo o que se produziu de alta qualidade autoral e foi publicado na mídia deveria ser reunido em livro. Hoje se faz compilação de crônicas, como vemos a toda hora. Por que não pegar essas jóias que nos deslumbravam para as novas gerações saberem do que se trata, e as antigas possam reler, emocionadas, o que fez a cabeça há tempos?
Mas o que pega é saber como transformar a notícia do dia, que faz parte do acervo coletivo citado acima, em algo inesquecível. A chave está dentro de você mesmo. Não ceda aos ditames dos manuais, mesmo que você mantenha fidelidade aos fatos. Ser jornalista não significa fazer como eles mandam. É preciso achar a embocadura do texto enquanto os dados são recolhidos, investigados, pesquisados. Não basta empilhar palavras, é preciso articulá-las. Mas isso já está dito em outros textos meus, como O Esqueleto imantado e os demais artigos contidos na seção Edição (ou Redação sem máscara) do meu site.
Nas várias redações onde trabalhei e colaborei, sempre procurei exercer o jornalismo literário: na Ilustrada da Folha de S. Paulo, revista Bravo!, Caderno 2 do Estadão, seção de livros da Veja, IstoÉ, Zero Hora, revista Senhor, entre muitas outras. Aqui no Diário da Fonte, continuo no mesmo ritmo. Além dos poemas, dos contos, das resenhas, dos ensaios, das crônicas mais gerais, existe uma série de textos que abordam os fatos e que trazem essa abordagem pessoal do acervo coletivo que está rodando na mídia. Ou que eu busco por meio da pesquisa e das entrevistas. Do meu trabalho, destaco o texto Eclipse na grande área.
Meu trabalho atual como colunista e ensaista do Diário Catarinense tem esse enfoque, em que a informação, a análise e a criação literária convivem no mesmo texto. Isso se estende para outros veículos onde colaboro, como a revista virtual Cronopios e o Digestivo Cultural. Há também minha coluna no excelente jornal Momento de Uruguaiana, que está sendo editado pelos casal de escritores Ricardo Peró Job e Vera Ione Silva, que se chama exatamente Jornalismo Literário. Momento está dando banho de jornalismo na fronteira: feito com competência e paixão, não cai nas armadilhas da comunicação apartada dos grandes centros e está se revelando um conjunto de acertos.
Todos os recursos da linguagem: esse é o tesouro que precisa ser acessado diariamente no trabalho que exercemos por vocação e destino.
RETORNO - Imagem de hoje: eu numa redação, foto de Raffaelle Sgueglia.
18 de agosto de 2009
DIALÉTICA
Nei Duclós (*)
A convivência dos contrários é a saúde mental do universo e o motivo principal da sua existência tal como o conhecemos. Alternar opostos garante a vida, basta imaginar o dia eterno da face exposta da Lua. Ou a permanência da atual friaca por tempo indeterminado. As estações são o sinal mais explícito do jogo dialético da realidade, que nos impõe uma percepção no mínimo dualista, já que as infinitas gradações geradas pelo confronto dos opostos é algo que faz parte de épocas remotas.
Apesar da fácil manipulação, via rede, ao que se fez de melhor no mundo, nos falta o básico: o ambiente sacudido por inúmeros criadores, que não comparecem mais no imaginário das massas órfãs de luzes. O resultado é o nível raso da indústria cultural, hegemônica na sua agressividade, enquanto camadas profundas das obras do espírito humano jazem em estantes altas, inacessíveis, de bibliotecas de um pesadelo borgeano.
Da mesma forma que a literatura épica inspirou as grandes mudanças do passado, hoje as ações sociais são pautadas pela percepção cevada na ausência da dialética. Quando decretaram o café como o vilão dos alimentos, tive, por experiência própria, de romper com o paradigma e voltar aos expressos, o que me curou definitivamente de persistente dor de cabeça. Não precisei esperar que os luminares da correção alimentar voltassem atrás e pedissem desculpas.
Quando vejo a placidez e a felicidade dos indígenas remanescentes com seus enormes cachimbos, fumando generosamente em rodas e rituais, me pergunto se os sujeitos com rostos pálidos de vampiros que decretam a condenação eterna dos fumantes não seriam criaturas de outros planetas. Eles vieram, possivelmente, de mundos imobilizados nas certezas, brandindo argumentos indiscutíveis, como se a noite não viesse depois do dia e asas não brotassem da podridão das folhas.
Enquanto idéias e hábitos contrários aos nossos se tornam indefensáveis por força de leis, os crimes hediondos encontram cada vez mais flexibilidade nos escaninhos da Justiça. É de se perguntar se o poder que prende o fumante e o bêbado não seria conivente com quem mata e rouba. Talvez, por serem alienígenas, tenham outra lógica. Ou talvez estejam muito à vontade porque não sabemos como jogá-los contra a parede, como se fazia no velho oeste.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 18 de agosto de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: John Wayne acende um enquanto dá aquela olhada mortal para James Stewart em "O homem que matou o facínora", de John Ford. Vai lá e diz que é proibido fumar, diz.