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25 de agosto de 2009

ESCUTE BELCHIOR, O QUE ANDA SUMIDO



Nei Duclós

Aconteceu de verdade. Eu trabalhava na Ilustrada da Folha de S. Paulo, lá por 1976/77. Estava chegando na redação da Barão de Limeira para mais uma tarde de trabalho quando Belchior, que estava passando na calçada, saindo do jornal, chegou para mim e disse: “Nei, li Outubro em Porto Alegre na casa de uma amiga, gostei muito mas não consegui levar o exemplar, a dona não deixou. Você consegue um para mim?” Eu tinha lançado meu livro de estréia um ano antes e recebia ali, por parte do grande poeta que hoje anda sumido, uma demonstração de apreço, reconhecimento e consideração tão raro quanto improvável. Parece um sonho, mas é fato. Nem lembro direito o que disse para este que é o mais radical artista da música popular, mas enviei um livro autografado mais tarde. E nunca mais nos falamos.

Assim como surge, Belchior vai embora. Tem motivos de sobra. Vá a esse endereço e reviva todos seus grandes clássicos e me diga se não tem razão em fazer o que o Fantástico revelou no último domingo. Belchior deixou imóveis com tudo dentro, com contas a pagar, um automóvel estacionado no aeroporto de Congonhas, que já soma 18 mil em dívidas, não liga nem escreve para ninguém conhecido e, segundo alguns fãs, é visto no Chile, no Uruguai, em Salvador desde quando deixou de aparecer e de atender as solicitações de shows, isso já faz dois anos. Bem que ele avisou em seus versos: “Gente de minha rua/ Como eu andei distante/ Quando eu desapareci”

Vamos imaginar que não aconteceu o pior (não seria o caso de acionar o setor de Pessoas Desaparecidas?), que Belchior não esteja no outro lado nem precisando de ajuda e que apenas cumpriu sua própria profecia, fruto de sua radicalidade em não compactuar com o sistema de ilusões e sacanagens que nos envolveu nos último 45 anos. Em todas as suas letras, Belchior dá seu principal recado, sintetizado nestes versos: “Eu não estou interessado/ Em nenhuma teoria/ Nem nessas coisas do oriente/ Romances astrais/ A minha alucinação/ É suportar o dia-a-dia/ E meu delírio/ É a experiência/ Com coisas reais...” O incrível é que agora querem saber apenas onde anda, para solucionar o mistério e não para decifrar seu enigma. Continuam não querendo saber como ele anda, como é ou foi seu caminho, o que percorreu com sua arte.

Com seu talento ele chamou a atenção de Elis Regina (que por um tempo lhe deu visibilidade), mas isso foi apenas um passo, não resume sua grandeza. Belchior é muito maior do que a percepção que temos dele. Pode ser tarde demais, talvez tenha mesmo desistido de nos falar o que sempre nos disse com todas as letras. Mas não importa. É hora de escutá-lo de novo: “Ora direis, ouvir estrelas, certo perdeste o senso/ Eu vos direi no entanto:/ Enquanto houver espaço, corpo e tempo e algum modo de dizer não/ Eu canto.” Por ser completo, Belchior também não se limitou a essa insistência sobre a necessidade de nos transformar, de nos expressar, de superarmos o passado, de resgatar o que perdemos, de apontar para o futuro. É também e principalmente um cantor do amor e seus desdobramentos: “Deixando a profundidade de lado /Eu quero é ficar colado à pele dela noite e dia/ Fazendo tudo de novo e dizendo sim à paixão morando na filosofia”.

Belchior também carrega nos seus versos, nas suas músicas, nas suas interpetações, as citações do que lhe emociona e faz a cabeça. Ninguém cita tanto quanto ele. Faz referências a Caetano Veloso (seu Outro em negativo), Poe, Lorca, John Lennon, João Cabral. Nascido e criado no Ceará, tendo vindo para o Sul, Belchior não cai nas armadilhas dos lugares comuns da “gente do sertão” e levanta a voz contra a mesmice da nossa percepção, em que colocamos essa dualidade entre uma parte rica do Brasil em confronto com a parte pobre. E debocha, com lirismo e grande metáfora: “Pois o que pesa no norte, pela lei da gravidade,/ disso Newton já sabia! Cai no sul grande cidade”.

É impressionante a quantidade de obras-primas produzidas por Belchior ao longo de sua vida. Para quem, como ele, extrapolou todos os limites da canção, inaugurou um novo canto, alertou sobre os pesadelos que nos assassinaram, que cantou o amor sem fechar os olhos, que carregou esse andor pesado pelo país em ruínas, é compreensível que tenha abandonado tudo e saído porta afora. Só rezamos para que ele continue em algum lugar, vivo. "O passado é uma roupa que já não serve mais".

Mas a verdade, Belchior, é que todos nós sumimos. Fomos soterrados pela incúria, a inveja, a mediocridade, a brutalidade, a dor, a morte da esperança. Fomos destruídos, jogados fora, esquecidos. E agora que estamos sumidos querem nossas pistas. “Anjos mexem nos armários/ procuram pálidos/ o que perdi na aventura trágica” como digo num poema em Outubro. O mesmo livro que te emocionou e que ainda espero conversar sobre ele e sobre a tua poesia. Pois se tudo some pelo ralo, fica a nossa voz e a vontade do reencontro.

Como você mesmo diz: “O que é que eu posso fazer/ com a minha juventude/ quando a máxima saúde hoje/ é pretender usar a voz?/ O que é que eu posso fazer/ um simples cantador das coisas do porão?/ Deus fez os cães da rua pra morder vocês/ que sob a luz da lua,/ os tratam como gente - é claro! - a pontapés.”

RETORNO - Leia também: Encrenca, minha crônica de hoje, como acontece todas as terças-feiras, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.

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