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18 de abril de 2009
PAIXÃO, NECESSIDADE E FÉ NOS TEATROS DE “LINHA DE PASSE”
Nei Duclós
“Necessidade é a vontade do homem e fé a vontade de Deus”, diz o pastor para a platéia de fiéis em Linha de Passe, de Walter Salles e Daniela Thomas. Entre essas duas pontas - a escassez material e sua compensação, o excesso espiritual - floresce a paixão: do crente por Jesus, do aspirante pelo futebol, do garoto pelo ônibus, da mulher pelos seus filhos, do moto-boy pela independência financeira. O incêndio das vontades no chão estéril da grande cidade define os teatros da vida.
É importante dizer que o filme é cinema de primeira, com roteiro super-elaborado, seqüências de imagens poderosas, cenas ousadas. Ou seja, é cinema mesmo, e nada tem de teatro filmado. Feita essa ressalva, posso abordá-lo como uma confluência de situações teatrais:
1. O FUTEBOL. Nos campos e estádios, lá estão os diretores (os treinadores), os atores principais (os craques), os coadjuvantes (os jogadores do banco), a platéia (a massa de mãos ao alto sob gigantescas bandeiras, que são o teto que lhes falta na vida real). No filme, o garoto (interpretado por Vinícius de Oliveira, que fez Central do Brasil) participa dos ensaios do teatro futebol. Quer ser selecionado para um clube. Aspira ao grande palco, aos clássicos entre times importantes. Luta por uma temporada, os torneios e campeonatos. Sonha em entrar em cartaz.
Mas sua paixão pela bola é também sua perdição: o individualismo aprendido nas ruas não funciona no jogo coletivo, é tratado como contravenção. O protagonista assim, vocacionado pelo talento, entra em desgraça. Sua queda significa mais do que uma exclusão pessoal: é a família inteira que fica de fora, já que a carreira futebolística seria a loteria que beneficiaria a todos. O que sobra é um mercado de trabalho massacrante, com sub-empregos disputados por multidões. É puro teatro de denúncia.
2. A IGREJA – A fé no Salvador costura vidas condenadas pela pobreza. A falta de recursos, explícita nos corpos, rostos, roupas, explode em emoções manipuladas num espaço cênico tosco. Lá está o diretor e ator principal, o pastor, coadjuvado pelo crente, irmão do craque, interpretado por José Geraldo Rodrigues, a platéia (os fiéis), os dramas (a mulher na cadeira de rodas que é pressionada para andar, o salão que se esvazia ao enfrentar a concorrência de outra religião), os roteiros (o batismo por imersão), as falas (a pregação, as orações, os espasmos).
O culto é a peça, que tem seu apogeu nas aleluias e seu desfecho no balanço da bilheteria (quanto rendeu a pregação). É a exacerbação dos dramas sociais, representados pela necessidade de transcendência, quando a paixão atropela a chance da paz do espírito. É puro Glauber Rocha e teatro Oficina, os dramas brasileiros intensificados pela mística dos comportamentos ancestrais, fruto do isolamento e da carnificina.
3. O TRÂNSITO – Teatro de vanguarda. Os protagonistas são moto-boys, o cenário é São Paulo com suas avenidas, edifícios, veículos, poluição, favelas. As peças são o trabalho (o moto-boy, interpretado por João Baldasserini, que é o terceiro irmão da família em destaque), os assaltos, os acidentes. Tem até a cena clássica do teatro de vanguarda, o rompimento das barreiras que dividem os personagens e o público, quando o excluído obriga o classe média a encará-lo, a identificá-lo, a notar sua presença.
É a platéia, a que torce nos estádios, se retorce nas igrejas, se contorce na luta pela sobrevivência, que mostra a cara, único caminho para ser reconhecido como ser humano e não apenas uma ameaça vista através do vidro fumê.
4. O TRANSPORTE COLETIVO – Teatro de periferia, em que o menino (interpretado por Kaique de Jesus Santos ) procura o pai inexistente na figura do motorista de ônibus, que está em movimento, ao contrário da sucata de ônibus que fica depositada na casa da família, que está imóvel e em ruínas. O menino procura uma saída, a auto-estima que nunca teve, um lugar onde não seja ameaçada pelos cães de guarda, uma coletividade que não se trate aos pontapés. No volante, o modelo a ser seguido. Nos corredores, o povo empilhado assistindo o desenrolar do veículo, lugar onde todos passam a maior parte do tempo.
5. A FAMÍLIA – O teatro de costumes revisitado pela dor. A mãe, interpretada por Sandra Corveloni (premiada em Cannes por esse papel), grávida do quinto filho, também de pai desconhecido, sustenta a casa como doméstica e acumula pequenos ódios, amores desesperados, corações partidos, situações-limite, amores eternos (como o Corinthians), esperanças datadas. Cercada por tudo o que o país lhe nega, a mulher é a heroína desses mundos em frangalhos, que revela a perversidade política e social do Brasil, terra do pavor, da linguagem detonada, dos corpos marcados, dos rostos machucados, das gigantescas avenidas desertas e iluminadas pelo desperdício. Um não-lugar da desrazão, que investe sobre os protagonistas fazendo pressão sobre o núcleo familiar que restou, o da mulher com seus filhos para criar e conviver.
Suas paixões encontram enfim aquela linha que será rompida inevitalmente. Cada filho é empurrado para o momento decisivo em que precisa saltar no abismo. E ela mesmo, com as dores do parto, olha em pânico para o cima, iluminada por um cinema que foi buscá-la em seus redutos e a lança para cima de nós, como uma avalanche. O filme passa a bola para a platéia. O jogo está rolando. Cavamos o pênalti.
Vamos fazer o gol? Ou somos parte das arquibancadas, com as mãos para cima, tentando alcançar o que nos parece remoto demais? A necessidade devora a fé? A paixão se extingue? Ou poderemos cruzar a linha do horizonte com as mãos no volante, o lance final decidido com firmeza, o nascimento de mais uma vida, o caminhar longe das obsessões? São perguntas, a bola, que chegam pelo alto, a arte suprema da Sétima Arte e que nos convocam para entrar em campo e evitar o rebaixamento.
RETORNO - Imagem desta edição: Sandra Corveloni: a necessidade de sobreviver, a fé nos filhos, a paixão pelo Corinthians.
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