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25 de março de 2009

CAIR DE BANDA


Nei Duclós (*)

Vou embora, desistir, sair. Deixar para lá, pegar um táxi, metrô, ônibus, avião. Vou a pé até a estrada e peço carona. Abandono tudo, abro um restaurante, vou viver numa gruta, uma ilha deserta. Não quero saber de pauta, de lead, de deadline, de cobertura, de tantos caracteres. Não quero ler, ver ou pensar. Quero ficar de olho parado até o fechamento passar. Nem precisa me indenizar, me trancar na salinha, me advertir. Quero outra vida, sem essa pressão de devorar o mundo todos os dias e vomitá-lo para recomeçar no início de novo expediente.

A vida é outra coisa e está fora da redação. Ok, não existem mais redações, elas sumiram junto com a profissão e hoje o que temos é o conteúdo a ser gerenciado, o cliente a ser atendido, a publicidade no miolo do texto, o título sem sentido, mas com o número exato de toques para caber no espaço devido. Ou sempre foi assim? Lembra daqueles títulos de três linhas nas revistas de luxo, em que a primeira precisava ter sete toques, a segunda oito e a terceira onze? Ou será que sonhei com isso?

É provável que eu tenha perdido a razão depois de dez milhões de edições. Talvez tenham me confinado nessa jaula que eu acho ser o mundo real e visível e estou como criatura de Matrix sonhando a liberdade de não pertencer mais à maquina de moer carne da profissão. Talvez meu desejo de abandonar tudo tenha enfim se concretizado e eu esteja numa espécie de limbo, pronto para reencontrar alguns companheiros que cruzaram comigo neste rio de palavras.

As celebridades, tão consideradas pelos estudantes, e que estiveram muito perto por tanto tempo, nem contam. O que pega são os anônimos, os redatores que não assinavam matérias, os diagramadores que jamais chegavam à direção da arte, os repórteres que sumiam de verdade para nunca mais. O que pega são os office-boys, como aquele tão pernóstico que o patrão dizia ser não um contínuo, mas um Editor de Continuidade. Ou o cara que recortava jornal para fazer clipping. Ou o setorista que dedicou cem anos para seu ofício, cobrindo esportes, ou polícia ou necrológios e por fim foi também embora, envolto em brumas de uma literatura que cheirava a biblioteca antiga, submersa em pó e esquecimento.

Não vá fazer poesia com tanta realidade, que de tão absurda parece ficção. Não diga que esqueceu aquelas dobras de corredor onde revisoras passavam com papéis na mão, concentradas em sua difícil arte. Ou o rapaz do arquivo, que fazia parte dos móveis daquele grande jornal do interior e que um dia respondeu o pedido urgente do editor apressado, que bradava: “Fulano de Tal, sabe quem é?”, com a clássica resposta: “Não sei, mas tenho”. Ou o tempo do off-set quando bravos rapazes analfabetos esforçados da paginação (obrigado, Strix, pela correção) colavam parágrafos inteiros de cabeça para baixo, mas no maior capricho, fazendo com que a leitura do dia seguinte fosse festejada com gargalhadas.

No fundo, queres do jornalismo o quem nunca pertenceu a ele. As erratas que se repetiam com os mesmos erros, o foca de bolsa e tênis que chegava com o cerebral “Quatro Quartetos”, de T.S. Elliot, embaixo do braço e arrancava do chefe de reportagem o desabafo: “Pronto, mais um intelectual de sovaco”; a happy hour com o pessoal da oficina; e as despedidas. Sim, quando alguém decidia enfim ir embora e íamos todos na rodoviária ou na estação nos despedir, bêbados, batendo em suas costas como querendo expulsá-lo, mas no fundo sonhando em fazer a mesma coisa.

Partir, ir embora, deixar esta vida. A pior do mundo, mas que não há nem haverá outra igual nem melhor. Longa vida à memória e à loucura: esse tal de jornalismo, profissão extinta, ninho de loucos, que trabalham sob as ordens do destino e tiram de letra qualquer lágrima que venha atrapalhar nossa conversa na calçada, no fim da noite, antes do assombroso amanhecer.

RETORNO - 1.(*) Com esta crônica, me despeço do espaço Literário, do Comunique-se, onde colaborei durante três anos. Como não falhei uma só semana, devem ter sido 144 edições, entre crônicas, ensaios, memórias e poemas. 2. Imagem de hoje: Barco em Ingleses, foto de Ida Duclós.

REPERCUSSÃO NO COMUNIQUE-SE
(Trechos dos comentários no espaço Literário)

Evelyne Furtado [27/03/2009 - 10:22] (Freelancer) - Uma despedida em grande estilo, Nei. Cair de banda ficou bonito demais.Abraços e boa sorte.

Risomar Fassanaro [26/03/2009 - 13:50] -Puxa, Nei, convivi tão pouco com você aqui neste espaço, tão pouco com seus textos, e você não me deu tempo nem de dizer com todas as letras o quanto gosto de você, o quanto gosto dos seus textos. Nem tenho palavras pra dizer o quanto me fez feliz, o quanto aprendi lendo seus textos.

Celamar Maione [26/03/2009 - 11:44] - (Freelancer) - Nei, vai fazer falta. Uma pena não dividir mais aqui seu talento com os leitores....mas a vida segue. E você sabe disso. Grande abraço e até !

Fabio de Lima [26/03/2009 - 07:51] - (Repórter-Supervarejo - SP) -Duclós você é GRANDE e fará muita falta aqui.

Mara Narciso [26/03/2009 - 00:30] - (Profissional Contratado) - Pelo menos o drama terminou de forma poética. Sempre haverá um momento profissional em que queremos fugir, desaparecer com o mínimo de bem material: bermuda, camiseta e chinelo de dedo. Ir para bem perto, em termos geográficos, mas distante em termos de obrigação. Antes do último passo lembramos os tempos áureos--sempre haverá de ter algum--, e reconsideramos, achando que apenas uns dias de férias bastam. Lindo desabafo que serve para qualquer profissão, e uma aula de como a pressa moi carne, e osso, mas que não moa mentes.

Daniel D'Assumpção Dos Santos [25/03/2009 - 18:01] - (Freelancer) - Sim, claro, tudo muito bonito, como sempre. Mas ... não sei ... alguma coisa pinica minha orelha como a pulga da desconfiança. Tá certo que é uma crônica de despedida do "Literário", mas há nas entrelinhas uma dor maior, ou assim me pareceu. Senti uma fisgada no coração. O último parágrafo, então, me arrebentou. Seja o que for, deixo nesta absurda despedida (sim, vc se vai!) meu abraço mais entusiasmado, mais emocionado, mais solidário. O que vier pela frente que seja o melhor para ti, grande escritor, grande poeta, amigo magnífico, jornalista dos graúdos! Té a próxima, Nei.

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