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24 de fevereiro de 2009

LUDWIG, DE LUCHINO VISCONTI


Nei Duclós

Arte, conhecimento, cultura são os palácios mais permanentes da realeza, que sobrevivem à decadência, ao esquecimento e à morte. O rei esclarecido, o mecenas de autores e artistas, garante a sobrevivência do criador para que seu reinado usufrua do prestígio da produção que cresce sob essa sombra generosa. Mas há uma clara diferença entre o nobre que detém o sustento e o cortesão escolhido e pago para pintar, compor, escrever. Um rei ocupa lugar de destaque na platéia, mas jamais pode ser palco, espaço exclusivo de seus protegidos. Ou protagonista, concorrer com a obra que nasce sob sua guarda.

Essa divisão radical de papéis colocou os protetores como coadjuvantes dos seus apaniguados. Goya é mais importante que a Corte espanhola, Leonardo da Vinci suplanta a presença do Papa, Machiavel ofusca o príncipe. No fundo, a verdadeira realeza pertence à criação. O Príncipe Ludwig (1845-1886), da Baviera, sabia disso. Tinha noção exata da falsidade de sua função, herdada pelo sangue numa família interminável, que dominava a Europa e onde medrava o fratricídio. Colocado no miolo desse drama aos 19 anos, Ludwig quis legitimar seu mandato real convidando para ficar debaixo de sua asa o maior criador do seu tempo, Wagner, que compôs duas obras primas enquanto foi sustentado pelo rei: Tristão e Isolda e O Anel dos Libelungos.

Ludwig queria a permanência, não apenas como criatura (o distribuidor de benesses para os gênios), mas como criador. Desiludido dos negócios de Estado, ferido por um amor não correspondido (a rainha Elizabeth, da Austria), entregou-se às fantasias lúdicas cevadas no que ele chamava de enigma, sua identidade sexual e pessoal. Aprofundou-se no convívio com a orgia, o estuário onde desaguava o assassinato de sua alegria de viver, que lhe foi negada pela situação em que foi convocado ainda adolescente; e com a repetição das diálogos das peças que amava, como se fosse possível negar a ficção e encarnar em seus aposentos a realidade produzida pelo talento. Manteve-se imóvel na idade em que não precisava assumir responsabilidades, enquanto crescia nele a imperiosa necessidade de romper o dique que separa poder de beleza, delírio de realidade.

Luchino Visconti encontra em Ludwig sua própria representação. O filme (1972) de quase quatro horas que fez sobre o Príncipe da Baviera foi mutilado, esquartejado, desvirtuado exatamente pelo gabinete dos poderosos, os mesmos que, em mais esta obra- prima de sua lavra, aparecem todos de preto, portando guarda-chuvas sinistros em meio ao aguaceiro para cercar, aprisionar e depois levar à morte o rei que queria um lugar entre os criadores. Visconti filma o deslocamento de Ludwig diante de seus algozes e sua determinação em permanecer fiel a si e a seu reinado de imaginações, apesar de toda oposição e maledicência.

O filme é uma sucessão de castelos suntuosos, as cinco partes em que foi dividido na restauração da obra original feita após sua morte. Cada castelo é uma maneira de tornar eterna a vida dedicada à criação. É também, cada uma, o capítulo do lento e fatal mergulho terminal do príncipe maldito. O cineasta é a majestade que não se entrega e vai até o fim, usando seu poder para construir algo que fique e que não sucumba às pressões da mediocridade, da inveja e do medo. Um rei sem poder a não ser a própria criação. Confinado em salas estreitas depois de ter construído espaços monumentais. Levado à destruição porque não há solução para o impasse gerado pela sua radicalidade.

Um rei não se dobra e lega à posteridade os monumentos de sua grandeza aprisionada e ferida. Não que Ludwig (interpretado por um intenso Helmut Berger) seja um modelo de ética, comportamento, política. Tudo nele é exagero, desde o amor platônico pela prima, rainha austríaca (interpretada pela atriz perfeita, Romy Schneider), a aversão à noiva, irmã do seu objeto de desejo, a atitude voluntariosa nas decisões importantes, o auto-confinamento em palácios inabitáveis, a dispersão de recursos nacionais em favor de golpistas de todo o tipo etc. Mas é nessa precariedade humana de alguém com mandato divino, esse impulso numa pessoa que deveria, pelo cargo que ocupa, se pautar pela prudência, esse afastamento do que é razoável e previsível que faz o encanto do personagem de Visconti.

Mais do que o encanto: a expressão de uma vida voltada para a arte por parte de alguém que não foi talhado para ela é a tragédia dessa busca obsessiva pela criação em território estéril. O mestre, no fundo, lega ao futuro seu inconformismo contra a sacralização das funções, a cristalização dos papéis, a definição prévia dos destinos. Alguém com poder, diferente dos despossuídos que também procuram a transcendência, intensifica esse drama pessoal e coletivo de vidas talhadas para serem subjugadas por leis imutáveis e que acabam reinventando algo maior.

Não se trata, portanto, de um filme sobre “a decadência da aristocracia e da nobreza” como querem os que vêem no Maestro uma eterna repetição de Il Gattopardo, outra obra magnífica e imprescindível. Em O Leopardo, o nobre se alia à burguesia para ter uma sobrevida. Em Ludwig, o rei é a representação da mortalidade que tenta ocupar um lugar no Olimpo. São, portanto, temas absolutamente diversos. Em ambos, Visconti trabalha o estranhamento, insumo fundamental da arte que provoca a sabedoria.

Isso acontece na escolha dos atores, na dublagem. Em O Leopardo um atleta americano, o clássico Burt Lancaster, encarna um nobre siciliano. Em Ludwig, temos personagens falando em italiano na mais profunda pan-Germania. Essa paralaxe nos mantém atentos, expectantes, esforçados. Nada nos é proporcionado como se alguém servisse um jantar com finos talheres. Somos ascetas assistindo a execução de uma pena de morte. Vivemos uma vida inteira no longo espetáculo do Maestro inigualável, aquele que ficará eternamente como prova de que a Sétima Arte um dia produziu alta cultura.

Poderemos dizer, então, onde estivermos, no futuro: no tempo em que nos foi dado viver na terra, vivíamos sob o impacto de Luchino Visconti, o gênio que alcançou a majestade.

RETORNO - Agradeço a Ricky Bols por ter me recomendado este filme. Bem no momento em que eu assistia o "Obsessão", também de de Visconti, e que será tema de futura edição aqui do Diário da Fonte.

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