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24 de fevereiro de 2009

DISTORÇÕES


Nei Duclós (*)

Quando era proibido ter dúvidas e ninguém podia desconfiar de nada, o mundo se assentava em princípios eternos. Eles foram varridos mais tarde quando Baudelaire publicou suas “Flores do Mal” e Marcel Duchamp decidiu que seu mictório era arte. A diferença entre tradição e ruptura gerou impasses. Uma poltrona antiga foi concebida para sentar, um celebrado banco de design ultra chic é feito para expor. Uma obra de Oscar Niemeyer é um encanto para os olhos, mas vai passar uma tarde de verão nos seus ambientes de concreto.

Na poesia, é infinita a capacidade de produzir coisas sem nenhum significado. O romance chegou a perder a linhagem narrativa, que fazia a cumplicidade entre a curiosidade do leitor e a maestria do autor. Retomou, mas com excesso de pipas e Kabul. O cinema é um espanto. Mata-se milhões em frente às câmaras para públicos cada vez mais anestesiados.

Se o cinema de autor começa a dar sinais de vida, ele chega sem a radicalidade que o definia. Passou a fase de obras-primas insuperáveis, que entrou em descenso a partir do aperto sobre a Sétima Arte, indústria estratégica por excelência. Todos tiveram chances de produzir seus filmes de propaganda, a exemplo do modelo hitlerista. CIA, FBI, Pentágono, Marinha, Serviço Secreto, lobby dos advogados contrataram estrelas, diretores e roteiristas por milhões para provarem como são necessários à humanidade.

Enquanto isso, fica no limbo filmes fundamentais como “O Intendente Sansho”, de Kenji Mizoguchi, ou “O Barba Ruiva”, “Céu e Inferno” e “Cão Danado”, de Akira Kurosawa. A majestade em Luchino Visconti, a erudição em Godard, a grandeza épica em David Lean, a civilização popular em Vittorio de Sica, o mágico realismo em Fellini, tudo ficou para trás. Hoje, arte em cinema é alvo de deboche. Triunfou a nulidade posuda de filmes pomposamente descartáveis e de bilheteria fácil.

Os mestres são esquecidos, enquanto cresce a corrida arrivista. A vanguarda foi clonada pelo oportunismo. Perdeu-se a capacidade de somar, unindo o acervo acumulado e as experimentações. Faz falta sentar num tradicional banco de praça. Haveria algo mais inovador do que usufruir, sem medo e com relativo conforto, uma porção do espaço público?

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 24 de fevereiro de 1009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: Curva dos Amores, Rio de Janeiro, 1950. Vejam que curvas do Rio antigo, infinitamente superiores às curvas da capital artificial construída pela megalomania e que serviu para destruir o perfil do país soberano. Depois me digam se o que vemos aqui é algo a ser esquecido, descartado como velharia. Nunca é demais lembrar: 1950, era Vargas.

Tirei a foto do belíssimo
blog de Carlos Henrique Brack, "Curiosidades cariocas": "Já não se ouve falar desse ponto da geografia carioca (Curva dos Amores). Nem se encontram referências a ele em buscas pelo Google. Talvez porque tenha perdido sua magia com os sucessivos aterros na orla da baía. Por esse nome era conhecida a curva de entrada na Av. Ruy Barbosa de quem vinha pela praia de Botafogo. O apelido decorria do fato de quem, de carro, à noite, fazia a curva para acessar a Ruy Babosa, infalivelmente iluminava pelo menos um casal de namorados, no escurinho, junto à amurada."

Continua Brack: "O local era, de fato, mágico. A amurada sobre o mar deixava vislumbrar a enseada de Botafogo, com o Pão de Açúcar e o Morro da Urca ao fundo. As fotos mostram trechos da Av. Ruy Barbosa e sua bela vista, durante o dia, em 1950; o trecho da amurada que ficava bem na curva, onde pescadores tentam a sorte, fora destruída, provavelmente por um acidente de trânsito, e ainda não reparada; a outra foto mostra um rapaz na posição usual das moças durante os namoros noturnos que deram o nome à curva."

EXTRA: MANGUEIRA DE DARCY RIBEIRO

Na próxima vez em que aparecer a Mangueira com seu samba-enredo sobre Darcy Ribeiro, viu, Cleber Machado, não se encha de dedos nem faça mais rodopios do que ala de baiana na hora de narrar o desfile. No lugar de apenas dizer que Darcy Ribeiro era antropólogo e escritor, diga mais algumas coisas, com todas as letras.

Vou te ensinar: "Darcy Ribeiro foi o fundador da Universidade de Brasília no governo duplamente eleito (nas urnas e no plebiscito) de João Goulart, do antigo PTB, presidente que foi derrubado pelo golpe de estado de 1964. Darcy Ribeiro foi chefe de Casa Civil daquele governo e um dos mais importantes nomes da lista de exilados. Na sua volta, foi senador eleito pelo PDT e um dos responsáveis pela rede de escolas conhecidas como Cieps, que propõe periodo integral para estudantes pobres."

Além disso, Darcy Ribeiro é o nome próprio do Sambódromo, essa obra que acabou com a sacanagem do monta-desmonta do carnaval e que vocês insistem em chamar de Marquês da Sapucapí, num esforço brutal e gigantesco de tapar o sol com a peneira, de negar essa evidência explícita da visão social e de futuro e de cultura popular do trabalhismo. Hoje, às vezes, até falam em Sambódromo, que está completando 25 anos, mas continuam tentando ignorar, sem dar o crédito, uma das muitas obras da gestão Leonel Brizola como governador do Rio de Janeiro e que tinha em Darcy Ribeiro seu braço direito.

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