A interpretação e caracterização impressionantes da gaúcha Larissa Maciel (foto acima: ela é Maysa!), a riqueza da produção, a segurança da direção, o roteiro bem escrito: tudo parece impecável na mini-série Maysa, Quando Fala o Coração, da Globo, que estreou nesta segunda-feira. Tudo, menos o principal. Como alguém apresentado como amoroso, dedicado, sensível, atencioso como André Matarazzo poderia merecer um fora como a canção Ouça, composta pela grande artista ("você fez questão de não dar , fez questão de negar")? Onde fica a indiferença, a vida artificial, a pressão familiar dos Matarazzo, já que toda ruptura, segundo vimos na telinha, parte de Maysa? Ela vai ser cantora na vida, beber e fumar a toda, ficar longe do filho e do marido, só porque é artista e não passa de uma ingrata? Arrependeu-se de ter dado o golpe do baú, como fica explícito no primeiro capítulo que foi ao ar há pouco?
Um golpe do baú, pelo que vimos, bem articulado com a família, pois deu a impressão de que os pais deram força, pois a menina era alvo das atenções do futuro marido desde os cinco anos de idade. “Ainda vou morar naquela mansão”, dizia ela. O nome Matarazzo é preservado na fala em que o marido decepcionado diz que toda sua riqueza foi conseguida com esforço (jamais pela exploração da mais valia dos trabalhadores) e as mulheres com aquele sobrenome eram todas honestas, numa clara referência à vida suspeita que Maysa levava no Rio de Janeiro.
Preserva-se assim a boa imagem do Capital e joga-se na vala comum do preconceito a vida de artista, que seria apenas cigarro e álcool. Claro, com algumas músicas absolutamente inesquecíveis no meio, e que ficam bastante deslocadas diante da vida pecaminosa de Maysa. Pois tudo parece pecado e errado. Ela se entrega ao vício da bebida porque é cantora! O autor do roteiro, Manoel Carlos, caiu na tentação de achar que ela era uma mulher “à frente do seu tempo” e que hoje estaria bem à vontade com tanta liberalidade.
Ninguém está à frente do seu tempo. Se a pessoa tem determinado comportamento na sua época, é porque essa época teve todas as condições de gerar uma pessoa como ela, ou seja, um monte de gente como Maysa, só que sem sua notoriedade. Manoel Carlos destaca, na sua entrevista, que Maysa tinha talento, mas não vi sinais, no primeiro capítulo, de que ele tenha seguido essa evidência. O talento não é algo esdrúxulo e absurdo, que serve para as pessoas encherem as taças de champanhe (taças que são o símbolo da mini-série, com espumantes tomando conta da tela).
A arte inigualável de Maysa (voz, letra e melodia, personalíssimas), fruto do seu talento (esse mistério da sabedoria), não era resultado do seu desregramento, mas de sua concentração. Ninguém atinge o nível que ela atingiu tomando todas à toa, fumando desbragadamente e sendo a imagem que fizeram dela e que no fim acabou destruindo-a. Ela foi criada no Brasil soberano, desculpem insistir. Moça de classe média, teve educação de primeira grandeza, garantida pelas políticas públicas. Escutava o que havia de melhor na época, por meio das rádios, discos e reuniões de compositores e cantores. A vida artística fazia parte da nação, não era como hoje, uma espécie de safadeza aguda explorada até o osso.
Ela desenvolveu seu talento nesse ambiente. A elite abria as portas para a cultura popular, prestigiada na mídia, jornais, rádios e revistas. Havia a roda de samba na favela e os serões nas mansões. A arte estava ligada com a emoção, o espírito habitado, a beleza, a grandeza do país. Por que então o Ronaldo Bôscoli aparece na mini-série de maneira canalha e agressiva, ameaçando Maysa em frente ao seu retrato, dizendo que ainda iria comer na mão dele?
Um compositor como Bôscoli, autor de tantos sucessos, não era um escroto que deva ser retratado como um alpinista social. Mas a Globo está, como sempre, distorcendo tudo. Os artistas brasileiros (todos da era JK, Getúlio é proibido de aparecer) tinham o tal “glamúr” e mereciam mesmo a fama de bebuns empedernidos. Dispersavam-se em vidas sem sentido. Como podiam criar tão bela música, tão eterna arte, permanece um mistério. É que falta alcance aos que hoje detém as rédeas da mídia. Eles não conseguem entender direito o talento. Podem até admirar, mas não chegam junto, não focam o principal, não conduzem a narrativa para a abordagem certa.
Maysa não era uma fresca, era uma pessoa autêntica, que lutou pela sua arte, enfrentou a barra pesada, quebrou-se, tentou se levantar, conseguiu, afundou de novo. Não foi alguém que resolveu abandonar a família para se atirar na boemia. E não adianta discursar sobre a importância do trabalho artístico ou pelo fato de ter sido uma mulher que gostava de trabalhar, como foi colocado na mini-série. Discurseira não resolve. É preciso focar a grandeza de quem opta pelo talento e não a "atualidade" de seu comportamento (hoje, vício é virtude). Se vivesse hoje, Maysa certamente se insurgiria contra cantoras que, em vez de cantar, ficam apontando para a genitália, como faz Madonna. Que em vez de cantar, "dão". Que em vez de música, fazem performance. Seria, claro, uma pessoa "atrás do seu tempo", como acontece com a maioria de nós, tão deslocados nesta avalanche de porcarias.
Talvez "Maysa" nos reserve surpresas nos próximos capítulos. Por enquanto, vale destacar a qualidade da produção, e a atriz gaúcha, que o diretor e ator Julio Conte, de Porto Alegre, decifra em poucas linhas.
Um golpe do baú, pelo que vimos, bem articulado com a família, pois deu a impressão de que os pais deram força, pois a menina era alvo das atenções do futuro marido desde os cinco anos de idade. “Ainda vou morar naquela mansão”, dizia ela. O nome Matarazzo é preservado na fala em que o marido decepcionado diz que toda sua riqueza foi conseguida com esforço (jamais pela exploração da mais valia dos trabalhadores) e as mulheres com aquele sobrenome eram todas honestas, numa clara referência à vida suspeita que Maysa levava no Rio de Janeiro.
Preserva-se assim a boa imagem do Capital e joga-se na vala comum do preconceito a vida de artista, que seria apenas cigarro e álcool. Claro, com algumas músicas absolutamente inesquecíveis no meio, e que ficam bastante deslocadas diante da vida pecaminosa de Maysa. Pois tudo parece pecado e errado. Ela se entrega ao vício da bebida porque é cantora! O autor do roteiro, Manoel Carlos, caiu na tentação de achar que ela era uma mulher “à frente do seu tempo” e que hoje estaria bem à vontade com tanta liberalidade.
Ninguém está à frente do seu tempo. Se a pessoa tem determinado comportamento na sua época, é porque essa época teve todas as condições de gerar uma pessoa como ela, ou seja, um monte de gente como Maysa, só que sem sua notoriedade. Manoel Carlos destaca, na sua entrevista, que Maysa tinha talento, mas não vi sinais, no primeiro capítulo, de que ele tenha seguido essa evidência. O talento não é algo esdrúxulo e absurdo, que serve para as pessoas encherem as taças de champanhe (taças que são o símbolo da mini-série, com espumantes tomando conta da tela).
A arte inigualável de Maysa (voz, letra e melodia, personalíssimas), fruto do seu talento (esse mistério da sabedoria), não era resultado do seu desregramento, mas de sua concentração. Ninguém atinge o nível que ela atingiu tomando todas à toa, fumando desbragadamente e sendo a imagem que fizeram dela e que no fim acabou destruindo-a. Ela foi criada no Brasil soberano, desculpem insistir. Moça de classe média, teve educação de primeira grandeza, garantida pelas políticas públicas. Escutava o que havia de melhor na época, por meio das rádios, discos e reuniões de compositores e cantores. A vida artística fazia parte da nação, não era como hoje, uma espécie de safadeza aguda explorada até o osso.
Ela desenvolveu seu talento nesse ambiente. A elite abria as portas para a cultura popular, prestigiada na mídia, jornais, rádios e revistas. Havia a roda de samba na favela e os serões nas mansões. A arte estava ligada com a emoção, o espírito habitado, a beleza, a grandeza do país. Por que então o Ronaldo Bôscoli aparece na mini-série de maneira canalha e agressiva, ameaçando Maysa em frente ao seu retrato, dizendo que ainda iria comer na mão dele?
Um compositor como Bôscoli, autor de tantos sucessos, não era um escroto que deva ser retratado como um alpinista social. Mas a Globo está, como sempre, distorcendo tudo. Os artistas brasileiros (todos da era JK, Getúlio é proibido de aparecer) tinham o tal “glamúr” e mereciam mesmo a fama de bebuns empedernidos. Dispersavam-se em vidas sem sentido. Como podiam criar tão bela música, tão eterna arte, permanece um mistério. É que falta alcance aos que hoje detém as rédeas da mídia. Eles não conseguem entender direito o talento. Podem até admirar, mas não chegam junto, não focam o principal, não conduzem a narrativa para a abordagem certa.
Maysa não era uma fresca, era uma pessoa autêntica, que lutou pela sua arte, enfrentou a barra pesada, quebrou-se, tentou se levantar, conseguiu, afundou de novo. Não foi alguém que resolveu abandonar a família para se atirar na boemia. E não adianta discursar sobre a importância do trabalho artístico ou pelo fato de ter sido uma mulher que gostava de trabalhar, como foi colocado na mini-série. Discurseira não resolve. É preciso focar a grandeza de quem opta pelo talento e não a "atualidade" de seu comportamento (hoje, vício é virtude). Se vivesse hoje, Maysa certamente se insurgiria contra cantoras que, em vez de cantar, ficam apontando para a genitália, como faz Madonna. Que em vez de cantar, "dão". Que em vez de música, fazem performance. Seria, claro, uma pessoa "atrás do seu tempo", como acontece com a maioria de nós, tão deslocados nesta avalanche de porcarias.
Talvez "Maysa" nos reserve surpresas nos próximos capítulos. Por enquanto, vale destacar a qualidade da produção, e a atriz gaúcha, que o diretor e ator Julio Conte, de Porto Alegre, decifra em poucas linhas.
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