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9 de dezembro de 2008

UM LANCE DO BRASIL PROFUNDO


Um dos vícios do jornalista é achar que está a cavaleiro da realidade, por cima da carne seca, por dentro do movimento, conhecedor dos detalhes da coisa como um todo, o que o torna, em tese, uma espécie de rei da cocada preta, pontificador absoluto sobre tudo. Um jornalista metido a coisa acerta todas as previsões, pois ele confunde sua profissão, que é procurar saber, em achar que sabe tudo de antemão (ou por meio de fontes super exclusivas, dessas que acabam em CPI).

Jamais se entrega ao acaso, tanto é que vive a repetir “não é por acaso”, como se a sorte, o incomensurável, o mistério, o sonho, todas essas coisas que fazem parte dos fatos, não existissem. Ainda mais quando surge um lance que tem tudo para ser, arrá! te peguei!, marketing, sacanagem, apelação. Ou seja: a volta de Ronaldo para o futebol brasileiro, nos braços do povo, a torcida corintiana.

Precisamos navegar no significado desse acontecimento, que nasce pelas contingências e talvez nem tenha sido imposto por comerciantes vis ou algo que o valha. O que há de comum entre Ronaldo e o Corinthians? Óbvio, a segunda chance. Tanto o timão quando o cracaço estão chegando de momentos complicados. Corinthians ficou um ano na segundona, enquanto Ronaldo imobilizava-se, machucado. Um, felizmente, com a faixa de campeão, agora em escala ascendente depois de ter amargado a humilhação de sair da série A. O segundo, fora de forma, afastado dos gramados há tempos, saindo de episódios pessoais lamentáveis. O que pode acontecer quando há essa sintonia de situações?

Acho que o futebol é capaz de nos surpreender quando tudo parecia se repetir indefinidamente. Pode-se argumentar: o cara está no fim da carreira, gordo, flácido, lento, bobo, preguiçoso. O que vai fazer no timão, que está a mil, cheio de jovens talentos, pronto para dar um salto? Não vai atrapalhar, não vai afundar de novo a equipe que está tinindo? Por que sacrificar o certo pelo duvidoso? E se ele claudicar, como enfrentará a Fiel? E se não fizer gols, se machucar novamente? Essas considerações seriam até pertinentes, não fossem fruto da falta de fé. Ora , fé, dirão, que bobagem. Fé não ganha campeonato.

Não falo em fé fundamentalista, aquela que diz fica com Deus ou distribui beijos no coração (bleargh!). Mas na fé do Brasil profundo, soberano, que existe à revelia dos ditadores, dos pessimistas, dos derrotados, dos vencedores, dos espertos, dos desonestos, dos gente boa. O Brasil é uma criatura tão poderosamente real que acaba ditando suas leis por mais que tentem desmoralizá-lo. É possível que não aconteça nada do previsto, nem para o bem nem para o mal.

Mas se não houver vitórias, haverá derrotas, pois não? Não acho isso importante. O que pega é o sinal que esse acontecimento emite. O que acontece no futebol brasileiro? Caos absoluto. Nossos craques estão sendo levados ainda no berço, ou seja, o extrativismo está levando o veio de ouro, a mina, a terra arável, não mais o produto. Estamos nos desfazendo de território, patrimônio, talento, futuro. Tem craque nosso encostado na Eslobóvia Meridional, que aluga para nossos clubes a riqueza construída aqui. Já importamos estrelas de outros países, como se precisássemos. Entregamos tudo para a bandidagem e depois vamos garimpando alguém que saiba chutar a bola.

Ronaldo se revelou muito menino e cedo se foi. Faz parte desse gigantesco movimento de entrega do país. Mas Ronaldo é um grande e fenomenal craque. É responsável por pelo menos uma Copa do Mundo. Criou lances de gênio ao longo da carreira. Sua volta ao futebol brasileiro, mesmo depois de tantos anos, sem o físico adequado, cheio de incertezas, significa que podemos sonhar com o grande talento entre nós. É como uma história de aventura contada ao redor do fogo.

O herói partiu, tornou-se um mito e voltou depois de muito tempo, amargurado por tantas injustiças. Rico, realizado, mas ainda falta o último lance. Exatamente aquele que cria o desfecho de uma narrativa. Seu retorno costura um texto, já que futebol é linguagem e cada jogador é uma biografia que se cruza nessa peça infinita de um teatro de massas. O cara voltou. Ninguém sabe o que acontecerá. Mas se trata de Ronaldo. Estamos falando do Corinthians.

É verdade, acabou o longo licenciamento. Voltei ao timão. Volto, junto com Ronaldo.

RETORNO - Imagem desta edição: um lance do futebol corintiano dos anos 30, quando o Brasil inventou seu destino.

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