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30 de agosto de 2008

TUDO SÃO NICHOS


O antropólogo Claude Levi-Strauss, em “Tristes Trópicos”, notou que no Brasil não pode existir duas pessoas especializadas sobre o mesmo tema, pois elas se matariam na disputa pelo prestígio e o butim (e também não seriam reconhecidas como experts, pois cada assunto é domínio de apenas um scholar). O ator Eddie Murphy, quando estava no auge, comentou que os Estados Unidos não suportariam mais de um negro. Em cada nicho, só é possível entrar um. O resto sobra. Neste reino da exclusão, é proibido reclamar. Insubordinação é sinal evidente de infelicidade, segundo a mentalidade imperante. A insubordinação, marca registrada dos espíritos saudáveis, ficaria sendo assim como uma coisa de pobre.

Você entra na farmácia e pede um fio para passar entre os dentes (já que hoje fio dental é outra coisa). Tem sabor menta, tem a plus, que é o fio ultra-fino, mas não tem o normal. Dentifrício a mesma coisa. Tem matrix plus, hiper dob, chanty mega, mas não o bom e velho creme dental, sem mais nada. É que cada produto atende um nicho. Se você é chegado numa tronfa, por exemplo, tem o sabonete cor-de-rosa, o esfoliante de ervas climatizadas, o refresh tuboso, mas jamais aquele velho sabonete de guerra, que não soltava escamas nem plumas. Já fez as contas de quanto você gasta com aparelho de barba? Meu pai tinha uma navalha, usou a vida inteira. Eu pago os tubos pelos prestoplex, probak-bloom, bear mash, já que não tem aquela gilete da boa. Cada pêlo na cara pede um tipo diferente de oferta.

Se você é um escritor, então precisa pensar no lugar, no nicho onde pretende atuar, o papel que vai desempenhar nesse circo de cavalinhos que é a indústria livreira. Não pode ser como eu, gaúcho da fronteira com quase 30 anos de vivência em São Paulo e que mora na Ilha de Santa Catarina. Onde está o nicho geográfico? Não é escritor gaúcho, paulista ou catarina, é uma coisa, assim, digamos, inverossímel. É poeta? Então o que está fazendo na crônica, conto, romance, literatura infantil ou juvenil? É muita mistura. Precisa ser primeiro, escritor, segundo, de determinado estado, terceiro, de uma modalidade da escrita. Quem salta em distância não pode jogar vôlei, simples assim.

Jornalista a mesma coisa. Aliás, se é jornalista, como pode querer ser visto como escritor? A não ser que faça biografias ou se especialize em algum tema. Aí pode. Mas se for jornalista, tem que ser ou de cultura, ou de economia, ou de polícia, ou de esporte, ou de política. Não pode escrever sobre futebol e fazer resenha de literatura, por exemplo, a não ser que seja ficção sobre futebol. Não pode ser repórter e editor ao mesmo tempo, pega mal. Ou você edita ou vai a campo. Não pode chutar escanteio e cabecear para o gol, isso não existe. Nichos, foco. Nem tente fazer como eu, que durante anos publiquei textos na Ilustrada, na Veja, na IstoÉ sobre assuntos culturais e de repente virei editor de uma revista corporativa. Isso é crime contra o nichismo.

Cinema, então, nem se fala. Não queira abordar filmes se o teu negócio é jogo de peteca. A crítica cinematográfica está muito bem servida, não pode querer escrever sobre Godard, Spielberg, Fritz Lang, como faço aqui no Diário da Fonte, e ao mesmo tempo publicar sobre música, como fiz no Shopping News, de São Paulo e também na Ilustrada. Como ousas entrevistar a Rita Lee e achar que pode pontificar sobre Orson Welles ou desancar a política econômica? És por acaso renascentista?

As criaturas desta época medonha são todas, por princípio, nichistas, devem ocupar espaços bem determinados. Precisam ser público alvo, target. Precisam, se forem mulheres brasileiras, assumirem o papel de scorts do Michael Pelps ou do Silvester Stalone. Mulher brasileira ocupa o nicho do desfrute internacional, para isso servem, é nicho, é lei. Se for homem brasileiro, é favelado e bandido. Escritor brasileiro? Quá quá quá. E vocês, aí da selva, por acaso, possuem uma linguagem?

Por falar em selva: é cada macaco no seu galho. Senão vem o bwana e dispara seu rifle de mira telescópica.

RETORNO - Imagem de hoje: Claude Levi-Strauss em plena selva, desvendando todos os nichos.

29 de agosto de 2008

COMO DEVERIA SER O DISCURSO DE OBAMA


O noticiário da televisão babou com o discurso do candidato Barak Obama à presidência dos EUA nesta quinta-feira. Para mim, Obama não passa de um Lula americano, um traidor em escala global. Pois faz como todos os candidatos, não toca no principal e apela para o patriotismo que, todos esqueceram, foi a moeda corrente com que Bush comprou a opinião pública mundial para invadir o Iraque e implantar uma ditadura na América. O patriotismo é ao portador, serve para qualquer um. Joga areia nos olhos, pois não toca no que realmente importa. Como deveria ser um discurso de verdade de um candidato de oposição? Algo que contrarie o Império e devolva a dignidade aos países. Algo assim:

“Cidadãos americanos. É costume apelar para os fundamentos da Pátria para desqualificar os adversários e angariar simpatia e votos entre os eleitores. Não vou cair nessa tentação, porque isso seria sinal evidente da minha demagogia. Prefiro atacar o núcleo da questão. Preciso dizer que o governo Bush, como tantos outros, é apenas um instrumento do verdadeiro poder que corrompe a sociedade mundial, que é o poder das finanças sob a tirania da especulação. As grandes corporações multinacionais mandam nos países, inclusive na América. Somos títeres dessa opressão corruptora, que precisa da corrupção para se manter. Não adianta prometer a retirada honrosa do Iraque, pois o que existe lá não é política, é economia, é luta por territórios produtores de energia, sob o comando de dos potentados daqui e de além fronteiras.

Se meu governo não combater essa força tirânica, de nada adiantará fazer discursos vazios a favor da paz. Pois a pressão da ditadura global vai manter a situação e meu governo vai gerar frustração, que será tão intensa quanto a esperança que vocês depositam em mim agora. Ela vai nos empurrar para outras áreas potencialmente em conflito, por qualquer motivo. Se não é Sadam Hussein, será a destruição da floresta, se não é o terrorismo árabe, será o das Farcs. Não podemos compactuar com os propósitos de uma minoria, que invade países e desestrutura seus parques industriais. No lugar de tornar nossas fábricas mais modernas, mais justas e humanas, mais focadas em distribuição de renda e justiça social, migramos nossas indústrias para áreas de escravidão, como China e Indonésia.

Permitimos que isso aconteça pois confundimos nosso meio de vida com a liberdade dos tiranos especuladores. O feito mais recente desse núcleo do Mal é a destruição do agronegócio no mundo inteiro, ou melhor, o desvirtuamento dos objetivos da produção de alimentos, pois vamos especular com terras aráveis para produzir combustível, enquanto deixamos aos sanguessugas o poder de aumentar o preço de produtos agrícolas, que deveriam matar a fome e acabam matando populações inteiras pela escassez. Os países não podem mais se prestar a esse jogo perverso. E nós, América, estamos no centro desse furacão. Devemos ter a coragem de enfrentar essa questão, sob pena de repetirmos os erros e afundar ainda mais nossa economia na miséria.

Quando deixamos New Orleans à mercê do dilúvio, quando não comparecemos de maneira pronta e prestativa para minorar o sofrimento de nossos compatriotas, é porque obedecemos a essa economia de choque, pois tudo fazem para aproveitar as crises e por meio delas inventar novas oportunidades de negócios. Não é possível deixar que os terremotos, os furacões, as inundações sejam motivo de mais lucros, de mais concentração de renda. Precisamos nos libertar, América. Pois se não fizermos isso, surgirão mais e mais Irãs, mais e mais Iraques e mais e mais Venezuelas.

No fundo, por nossa omissão, somos os que alimentam essas insubordinações selvagens. Pois a especulação financeira internacional se confunde com a política imperial americana. Vamos romper com isso. Vamos voltar a ser uma nação, forte, rica, orgulhosa e não essa fonte de sofrimento planetário em que nos transformamos.

Esse é o meu sonho. Se sonharmos juntos, venceremos as próximas eleições. Muito obrigado.”

28 de agosto de 2008

O TRAÇO E O VERBO

Nei Duclós (*)

A realidade não nos foi presenteada por ninguém. É fruto de árdua elaboração, que nossos sentidos, inventados pela vivência e a cultura, orientados pelos ancestrais e os contemporâneos, percebem em camadas superpostas. É idêntico a esses vestígios naturais gigantescos em forma de cálice, pirâmide ou coluna que existem por todo o Brasil: cada camada desses monumentos de terra e calcário conta uma história, revela um dilúvio, um incêndio, uma civilização perdida. Escavar para enxergar melhor é o trabalho arqueológico que ocupa os espíritos livres. Pois viver não é passar em vão pela terra, e sim aprender o que nos precedeu, ler o que existe ao nosso redor e ver o que o tempo prepara em cada curva do vento aragano.

Carlos Fonttes e Daniel Fanti são exemplos dessa linhagem. Historiadores uruguaianenses, acabam, de produzir um livro sobre os fundamentos urbanos da nossa cidade. O livro, “Uruguaiana na Linguagem Plástica e Histórica", é uma obra de percepção coletiva, construída a partir das antenas desses dois conterrâneos dedicados não ao passado, mas à perenidade da obra nacional aqui no sudoeste onde o Brasil começa. Os desenhos, em preto e branco, dos prédios privados e públicos, das principais ruas e praças, dos monumentos, de tudo o que existe ou existiu não são apenas reproduções da arquitetura, do design, dos vestígios. São muito mais do que isso.

O que é um prédio? É o fruto de uma concepção original desenhada, colocada no papel, na prancheta. Uma construção parte de uma planta, de uma arte, de uma idéia. Uma praça não brota como um cogumelo. Uma igreja não surge por acaso. Foi concebida, foi trabalhada. Houve mobilização, negociação, conflito. Até que, finalmente, aparece concretamente para os olhos dos habitantes. Começa a fazer parte da vida delas. Se apresenta de várias formas, sob a chuva, vista de maneira apressada, sob o sol, à noite, iluminada por um poste de luz, um farol, uma lanterna. Fica na memória e seus contornos se misturam. O que é que lembramos, qual era aquele prédio mesmo, onde ficava tal rua?

O que faz o artista? Enxerga essa obra com seu talento e o desenha, como faz Carlos Fonttes, esse historiador que tanto contribui para a cultura local e brasileira. Não reproduz a planta, não imita a concepção original. Simplesmente reporta o que vê e sente e assim se sintoniza com o que vimos ao longo da vida. Foi uma grande emoção reencontrar todos esses prédios, ruas e praças pelo traço de Fonttes e o texto de Fanti. O Clube Caixeiral, o Teatro Carlos Gomes, o Lanziani, o café Moka, a casa da Generina. Tudo faz parte do nosso imaginário, das lembranças, dos parâmetros. Foram esses instrumentos urbanos que formataram nossa vida, enquanto passávamos pela infância e juventude por todos eles, sonhando em morar ali, imaginando como seriam por dentro, criando histórias.

No texto, Daniel Fanti (e também Fonttes) trazem os nomes que formaram nossa cidade, a maioria já de pessoas que se foram, mas que continuam presentes. O livro assim se transforma num documento único, raro, fundamental, para que possamos viajar em nós mesmos, para que possamos mostrar a todos quem somos e do que somos feitos. Somos esses traços e esses textos, somos seres culturais, orgulhosos dessa obra grandiosa que é Uruguaiana, cidade onde moramos eternamente.

RETORNO - (*) Crônica originalmente publicada no jornal A Tribuna, de Uruguaiana. Agradeço aos autores e ao prefeito Sanchotene Felice por terem me presenteado com um exemplar deste livro emocionante. E agradeço ao futuro vereador, jornalista Rubens Montardo Jr., pelo convite de publicar uma coluna fixa na imprensa da minha terra.

26 de agosto de 2008

LASTRO DE VOZES














Nei Duclós (*)

Vejo filme com Morgan Freeman, em que ele encarna o personagem-narrador. Sua voz grave, pausada, representa a lucidez onipresente do autor, que acompanha a vida dos outros tomando partido, engajando-se, aconselhando, arrependendo-se. A trama não importa, mas sim esse lastro que é a voz de Freeman, recentemente acidentado, para desespero de seus admiradores, nesta época pobre de grandes atores e, pior, de vozes que convencem.

O cinema oferece a vantagem do script, elaborado e trabalhado pela respiração com a necessária cautela, o momento exato, a emoção sob medida. Temos poucos exemplos dessa arte cada vez mais complicada de se consumar, na medida em que o ruído ambiente aumenta e a cultura descartável se impõe como natural e eterna. Tanto é verdade que esses poucos são extremamente solicitados, como foi o caso por décadas do ator James Earl Jones, que fez a voz de Darth Wader, vilão de “Guerra nas Estrelas”, entre outros filmes.

Os americanos se defendem porque a locução dramática e profissional é uma escola antiga e atuante e sempre existe alguém que extrapola e fica na memória. No Brasil, os dois Paulos, o José e o César Peréio, dominaram o ofício por muito tempo, mas em geral somos pobres de grandes vozes. As exceções se rendem à ilusão de que são a própria divindade, o que é compreensível, dado o deserto em que vivemos. Qualquer voz que consiga clamar nele se sente, no mínimo, profeta.

Na música temos, para sempre, Dorival Caymmi. Achei excessivo o enfoque dado por ocasião da sua morte, ocorrida recentemente, de que ele era o bom baiano, folgazão, quase uma peça da comédia brasileira. Caymmi era extremamente dramático. Ele canta a pesca. Sua obra é um épico sobre a morte dos que lutam para sobreviver num ambiente hostil, o oceano, que atrai pela necessidade e seduz para uma armadilha mortal quando acena com o lazer em pleno expediente. O bem que o pescador tem no mar é uma ilusão, a substituição do trabalho pelo prazer.

A mulher que fica na espera da jangada enfrenta uma rival, Iemanjá, que rapta o pescador, exausto daquela tragédia. Voltar para quê? Melhor entregar-se nos braços do movimento feminino das ondas, que o leva para longe, para a doçura do afogamento, para fora das necessidades. Caymmi toma partido do pescador que morre pelo peixe, pelo pão. “A jangada saiu com Chico, Ferreira e Bento. A jangada voltou só. Cadê você, cadê você?”

Sua Pasárgada é Maracangalha, uma utopia que transgride a vida doméstica e abraça o coletivo. É um desfile, um passeio, uma fuga, uma busca de convivência plural. Não se trata de gandaia pura e simples, como gostam de celebrar os atuais viciados no anacronismo. É uma convocação, um desejo imperioso de transcendência. Essa civilização de perdas precisa da superação, da celebração, do perdão para continuar em frente. O que chamam de conformismo, é na verdade o superlativo da perda, o sentimento do perdão. Pois é preciso voltar no dia seguinte, sem esquecer os que se foram.

A voz de Caymmi é um berço feito de alecrim num regato limpo, que nos leva para lá da rebentação. Com o passar do tempo será cada vez melhor, como todas as grandes vozes que nos embalam, confortam, alertam. Por isso as canções de Caymmi são sagradas. Elas são como capelas à beira mar, e sua obra, ditada por essa voz, compõe a imponência de uma catedral.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 26 de agosto de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagens de hoje: Morgan e Caymmi: o carisma de quem é eterno.

FILHO DE ANSELMO DUARTE ESCREVE PARA O DIÁRIO DA FONTE

Ricardo Duarte, filho de Anselmo Duarte, escreveu na seção de comentários do Diário da Fonte, a propósito do meu texto "Cinema novo, evolução e ruptura." Trocamos então correspondência publicamente e o resultado está a seguir:

"Meu nome é Ricardo. Ricardo Duarte. Filho de Anselmo Duarte. Meu pai vive comigo já há 4 anos. Administro a agenda social, inclusive entrevistas, do meu pai. Não é verdade que "não gosto" que abordem o fato de que ele "sofre" do "mal" de Alzheimer. Primeiro, ele não sofre coisa alguma. Segundo, Alzheimer não é um "mal". Alzheimer é um estado natural de deterioração celular do cérebro, que vai atingir você, a mim e a qualquer mortal, quando a Providência lhe prover de longevidade. Nã há porque esconder um fato natural. É triste ver uma pessoa que se ama e se sabe ter outrora brindado o mundo com brilhantismo e dignidade de ações relegado a um mundo de penumbra memorial. Nós, da família, vocês, que sabem, hoje, admirar seus feitos, suas conquistas para a cultura brasileira, sentimos uma dor , que só o vácuo da lembrança explica. Ele, o velho Anselmo, nunca foi tão feliz. Compartilho com ele, todos os dias, seu estado angelical de felicidade, honra existencial somente brindado por Deus a poucos eleitos. Anselmo Duarte já é um anjo, nem ele sabe disso. Anjos não sabem. Anjos são.

Só peço respeito e paciência. Os anjos são sempre capazes de nos surpreender com novos caminhos de luz. Anselmo vai continuar a nos surpreender com sua luz eterna, que lhe foi instilado em seu primeiro suspiro e não vai jamais se extinguir, nem com su último."
RICARDO DUARTE 08.25.08 - 4:31 am #

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Ricardo, admiramos Anselmo Duarte e em nenhum momento quisemos deixar de lado essa admiração. Não nos entenda mal. Feito seu reparo, só quero dizer o seguinte: a maneira como foi escrito não significa que estávamos faltando com o respeito, apenas abordando um tema delicado. Se te ofendeu, mil desculpas, não era essa a intenção.
nei 08.25.08 - 11:42 am #

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" Meu caro Nei. Seu texto não me ofendeu de nenhuma forma. Sei do seu carinho pelo meu pai. Achei apenas que devia expor meu ponto de vista quanto ao status quo do "Mal de Alzheimer" e esclarecer aos seus leitores que o Anselmão está feliz e gozando de plena saúde. Não é todo mundo que já conviveu com essa situação no seio da família e tenho observado que, não invariavelmente, as pessoas têm uma leitura equivocada, como se fora uma sentença de morte. Graças a Deus, não é. Frequento um grupo de apoio aos "cuidadores" de pessoas com a doença e percebo que cada caso é um caso. É olenamente possível conviver com a deterioração neuronal por muitos anos e, ao mesmo tempo, gozar de plena saúde. Contudo, é fato que algumas pessoas sucumbem rapidamente, afetando o quadro clínico geral e vêm a óbito. No caso do meu pai, seu estado, o da deterioração neuronal, está estabilizado já há 2 anos. Ele continua absolutamente independente e auto-suficiente em suas necessidades diárias de alimentação e higiene, graças a Deus.
Obrigado pelo carinho,

Ricardo

P.S.: parabéns pelo seu Blog. Sua aguçada percepção dos eventos do dia-a-dia brinda seus leitores uma reflexão bem humorada e inteligente, coisa rara hoje em dia."
RICARDO DUARTE Email 08.26.08 - 5:23 am #

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Ricardo, ganhei meu dia. Muito obrigado. E fico feliz que nosso grande e genial Anselmo Duarte, o cara que foi presença clara, luminosa, talentosa por toda minha infância e adolescência, quando aparecia com seu carisma e charme nas telas daqueles longes da fronteira, esteja gozando de plena saúde. Anselmo colocava a população em fila, que dava a volta na quadra, só para vê-lo. Longa vida ao eterno artista.


Nei Duclós

CONTOS E CRÔNICAS DE MAR E PAMPA


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Sobre o livro de contos e crônicas “O Refúgio do príncipe – Histórias Sopradas pelo Vento”, de Nei Duclós (Editora Cartaz, 2007):

Deonísio da Silva, seção Etimologia, revista Caras:
"Refúgio: do latim refugium, refúgio, asilo, proteção, guarida. De acordo com a etimologia, quem busca refúgio está fugindo, pois o vocábulo radica-se em fugire, fugir. E este é o caso dos milhões de refugiados que hoje abandonam seus países pelos mais diversos motivos e buscam abrigo em outros, sendo as guerras os grandes motivos de maciços deslocamentos em todo o mundo, mas principalmente na Europa, na Ásia e na África. O escritor gaúcho Nei Duclós (56) dá, entretanto, à palavra refúgio um sentido mais ameno em seu livro O Refúgio do Príncipe: Histórias Sopradas pelo Vento (editora Empreendedor). Ao identificar, em Florianópolis, o lugar adequado para viver em paz, diz: “Que o nosso refúgio não sejam as paredes altas, mas a confiança nos outros”.

Rodrigo Schwarz, jornal “A Notícia”, de Joinville:
"Elogiado por nomes como Mário Quintana e Raduan Nassar, o poeta e romancista gaúcho Nei Duclós está lançando a coletânea de contos e crônicas "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento" (R$ 25,00, 150 páginas), pela Editora Cartaz. Abre o livro de Duclós, o sexto de sua carreira iniciada em meados dos anos 70, um conto que narra a lenda de gigantes que teriam habitado Florianópolis, em tempos ancestrais. O escritor redigiu o trabalho em 1983, quando visitou a capital catarinense - cidade na qual viria a fixar residência quase duas décadas depois. Com uma abertura que suspende ao máximo a curiosidade do leitor, antes do vertiginoso mergulho em um universo fantástico, o conto presta-se a uma reflexão sobre o papel cultural de Florianópolis. Outro componente importante da coletânea é o pampa gaúcho, que remete à infância do autor, em Uruguaiana."

Urariano Mota, em Ciência Hoje:
“Ei, leitor, você aí, acorde: você pensa que a crónica brasileira parou em Rubem Braga? Ei, desperte, você precisa conhecer crónicas de Nei Duclós”.

Marcio Renato dos Santos, no jornal Rascunho:
"O Refúgio do Príncipe reúne contos e crônicas, sempre com histórias sobre o sul do Brasil, das praias catarinenses ao pampa gaúcho. Escritos numa linguagem lírica, os textos falam do velho que vê cardume de tainha em noite sem lua, da ascensorista que lê escondida, do músico que resgata o carnaval numa solenidade em pleno frio. O livro está dividido em duas partes: Mar e Pampa.

Moacir Japiassu, nos sites Comunique-se e Observatório da Imprensa:
"O poeta Nei Duclós, que também é Mestre da prosa, acaba de lançar, pela Editora Cartaz, o best-seller O Refúgio do Príncipe -- Histórias Sopradas Pelo Vento. Janistraquis lê e, encantado, esquece-se até de trabalhar."

24 de agosto de 2008

BEIJING, BEIJING, TIAU, TIAU


O problema do Brasil é a vocação para o latifúndio. Vejam os casos de Galvão Bueno, Edson Arantes do Nascimento e Bernardo Rocha de Rezende. Foi patético acompanhar a fome de ouro e glória do locutor monopolista da Globo, que resolveu narrar tudo, de sinuca de bico a porrinha. Ficou rouco de tanto querer gritar o nome do país que o alimenta. Deu com os burros nágua. As medalhas vieram de atletas marginalizados pelo enfoque obsessivo da mídia. Eu nunca tinha ouvido falar em Cesar Cielo ou Natalia Falavigna (parabéns, André, por essa vitória da família!). Quanto custa para o patrocinador um monte de jornalista sugando recursos que deveriam ir para os atletas?

É super concentração de renda: colocam tudo nos ombros da Daiane, do Hypólito, do Tiago Pereira, da Jade e acontece que acabam sucumbindo diante de tanta pressão. No lugar de espalhar recursos para que muitos possam estar competindo, resolvem concentrar tudo em meia dúzia. No lugar de minifúndio, latifúndio, o que pede Casa Grande e Senzala. Os atletas viram escravos dos narradores. Quantas vezes vemos Galvão Bueno dando ordens para o técnico e os jogadores? Ele fala no bem bom do camarote para pegar carona nos acertos e tirar da reta nos erros. É como o feitor que coloca toda culpa no escravo.

Foi só o cidadão Edson Arantes do Nascimento chegar em Pequim para perdermos tudo no futebol. Por pouco nem ficamos com o bronze no masculino e no feminino foi aquela tragédia prateada. “Se eu tivesse participado das Olimpíadas, eu traria o ouro para o Brasil”, disse Edson, esquecido que um dia foi Pelé, o rei generoso do Brasil soberano, que nos deu tantas glórias e foi colocado de lado em função dos interesses de Edson. Quando vi Edson nas arquibancadas, lembrei que foi ele o introdutor do futebol nos Estados Unidos. Sempre torceu para as americanas. O problema é que Edson quer tudo para si, não tem para ninguém.

Para começar, ele não é tricampeão do mundo. Na Copa do Chile ele saiu devido a uma contusão. Quem segurou a onda foi o Garrincha e o substituto de Pelé, o Amarildo. Na Copa da Suécia, só entrou no meio da rodada, quando a coisa tinha andado. Foi fundamental, claro, mas não pode colocar tudo nos ombros de Pelé. Copa da Suécia é mais Didi e Vavá. E nas duas copas citadas, sempre, Gilmar. Na de 70, sim, Pelé foi o maior, participou de tudo e saiu de lá coberto de honras. Mas isso não significa que deva achar que tudo foi obra dele. Não foi. A glória é do Brasil. O problema é que Pelé quer vastos latifúndios de glória. Divida, cara. Não caia na tentação de dizer que você traria o ouro olímpico. Deixe um pouco para Marta.

O tal Bernardinho transformou-se num arrogante insuportável depois que ganhou o ouro nas olimpíadas anteriores. Demitiu craque, colocou o filho no lugar, xingou todo mundo, arrotou que era ele quem mandava. Perdeu a cabeça e o título. Desestabilizou a equipe, que só chegou à final por ser ótima, não porque ele, Bernardinho, seja o único responsável por tantas vitórias. Não deixa nada para seus jogadores? Quem sabe agora ele muda o nome do seu best-seller (desculpem, não resisto), para “Transformando suor em prata?”

O mais triste foi sair com tão pouca medalha carregando tantas justificativas e choros. Não, não somos a oitava equipe de ginástica olímpica, somos o último lugar das finais dessa modalidade. Não, o bronze não nos sustenta, queremos ouro e no mínimo prata. Não, não precisamos de força mental, isso é coisa de débil mental, precisamos é de condições físicas adequadas, um país bem resolvido e alimentado. Precisamos do fim da ditadura por aqui.

As Olimpíadas de Pequim ofereceram o pior anfitrião de todas as competições. A ditadura que, faminta, é capaz de selecionar geneticamente bebês para ganhar ouro, tomou conta do quadro de medalhas para provar ao mundo sua hegemonia. Que sumiu com a vara da nossa atleta, que poderia ter vencido. Que sacaneou com o lutador cubano, que perdeu a cabeça e deu um pontapé no juiz. Que censurou a imprensa, tirou sites e blogs do ar. Que proibiu o livre andar obstruindo tudo que é passagem. Por oferecer megalópoles pobretonas poluídas e infernais como Pequim e Xangai, maquiadas como centros de um império que não existe. Por ter águas cheias de limo. Por ter substituído a cantora feinha por outra mais bonitinha na abertura. Por simular grandiloqüência de fogos de artifício virtuais.

Descobri, ou redescobri, que Pequim é Beijing. Tiau pra ti, China.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Natalia Falavigna, do anonimato para o pódio. 2. Ok, Cielo tinha vencido no Pan, é conhecido no ramo e pelos leitores do noticiário esportivo. Mas como é que eu, que não acompanho o noticiário sobre natação, sofri uma overdose de Tiago Pereira enquanto Cielo jamais foi citado nessa superexposição?

23 de agosto de 2008

FILMAÇOS


Tenho milhares de leitores. São quase 200 visitas por dia, o que dá umas 6 mil por mês, média de 70 mil por ano. Tem dia que visitam 300 páginas desse blog. Portanto, não vou cair no lugar comum de me dirigir aos meus 15 leitores, porque não é verdade. Tenho casa cheia todos os dias. Pode ser que a maioria só passe por alguns segundos, não importa. Procuraram um assunto, caíram aqui, na minha caçapa de caçar neutrinos. Foram fisgados pelo escriba compulsivo. Essa plêiade de olhos que correm pelas letrinhas aqui expostas sabem que há tempos não falo sobre cinema, embora eu veja mais de um filme por dia. A safra tem sido escassa, mas quando tem filme bom, é filmaço. Vou comentar alguns (como sempre, leiam a ficha técnica nos sites especializados, aqui é só viagem na maionese).

UM BEIJO ROUBADO (My blueberry nights)– Road-movie (filme estradeiro) dirigido pelo chinês Kar Wai Wong e que é um travelling sobre a cultura americana, do café cult novaiorquino ao deserto de Las Vegas, do blues ao rock, da lanchonete à mesa de pôquer, do Jaguar ao metrô. O elenco humilha: Norah Jones, Jude Law, David Strathairn, Tim Roth, Natalie Portman, Rachel Weisz. As histórias se cruzam, mas existe uma espinha dorsal, o amor entre o dono do bar e a moça de coração partido. Por que o filme é estupendo?

Porque parece ter sido desenhado e pintado por um artista americano clássico. Porque a trilha sonora foi bolada por alguém que depois se recolheu às montanhas para meditar, de tão forte e impactante que é. Porque os personagens, todos, são carismáticos, graças ao texto primoroso e ao trabalho de atrizes e atores, com destaque para David Strathairn como o policial que não se conforma com a separação, para Natalie Portman, essa atriz que nos conquistou de cara, aos 13 anos, quando fez aquele filme inesquecível com o matador interpretado por Jean Rennó, e agora nos deslumbra como a jogadora que perde o pai. Por tudo isso e mais um pouco. Veja, e depois veja, veja de não esquecer de ver. Vá ao cinema ou traga-o à sua casa. O cinema é Deus que bate à sua porta.

PONTO DE VISTA (Vantage Point) – Filme americano que tem tudo para ser uma porcaria: assassinato de presidente, luta anti-terrorista, Dennis Quaid. Mas surpreendentemente, é ótimo. O argumento é baseado num filme de Akira Kuroswa, Rashomon (1954): um crime é reconstituído quatro vezes, de acordo com o ponto de vista de quem a estava contando (noiva, ladrão, espírito do samurai e um lenhador). Como notou Giba Assis Brasil, roteirista/escritor/autor/cineasta, que prestigia o Diário da Fonte com sua leitura, "a idéia original de Rashomon não é do filme, mas de um conto homônimo publicado em 1914 pelo escritor japonês Ryonosuke Akutagawa, adaptado pelo Kurosawa e seu co-roteirista Shinobu Hashimoto em 1950." Claro que o diretor Peter Travis e o seu roteirista Barry Levy apertam os olhinhos (sabem como funciona: o cara quando fala em criação aperta os olhos para sugerir que a coisa está saindo do bestunto ali na hora), dizendo que eles bolaram tudo, sem dar crédito à Kurosawa. Mas isso é comum nesta época de vampirismo cultural e político.

Por que o filme é bom? Dennis Quaid explica: "Você vê o filme, acha que já viu tudo e quando ele acaba diz uau!" É verdade. No mínimo, tem a mais espetacular perseguição de automóveis de todos os tempos. Grande coisa? Pois veja para ver o que é bom para a tosse. É absolutamente magnífica. A grande lição dos americanos é que eles não desistem de fazer o que sabem fazer bem, de maneira melhor, maior e mais intensa. Aqui não. A gente faz uma coisa e acha que deve pisotear em cima. Depois fazemos de novo, de outro jeito, errado, claro. É preciso insistir e crescer até a coisa tomar conta do universo.

Além de Quaid, que tem aquela caratonha manjada mas que funciona na tela, há o careteiro Forrest Whitaker, que é excelente, mas é um ator que não confia na inteligência e na percepção do espectador, pois usa de todos os truques e artimanhas para repassar emoções. Filmaço. Com William Hurt, o minimalista, fazendo papel duplo.

BANQUETE DE AMOR (Feast of Love) – Bem, é um filme com Morgan Freeman. Vejo todos, sempre. Neste caso, o cara extrapola como o protagonista narrador de uma série de relacionamentos amorosos, de todos os tipos, que o rodeiam ao longo de uma história trágica e emocionante. Vale a pena. Gostei demais. O grande pecado de Freeman foi ter rolado no barranco recentemente, numa acidente de carro. Pirou de vez. Está com apenas 71 anos. Tem que fazer mais uns trinta filmes, no mínimo. Senão não dá.

RETORNO - Imagem de hoje: Jude Law e Norah Jones comem torta, roubam beijos, se apaixonam e te levam América adentro, num lance espetacular do cinema deste início de século.

22 de agosto de 2008

CONCEITOS RADICAIS

Chega de frescura, vamos dar o nome aos bois. Dois itens importantes dessa tomada de posição:

JORNALISMO DE COMADRE

A cobertura que substituiu a notícia sobre os fatos numa celebração de eventos de interesse das empresas de comunicação, e que se serve da vida pessoal de personagens para encobrir a gravidade da situação social e política, e que prefere a fofoca ao texto elaborado, e que adora se abraçar com a periquita da vizinha no lugar de investigar a bandidagem que impera nos negócios e nas vidas comunitárias, esse é o jornalismo de comadre. Irresponsável, sorridente, filhodaputa.

MILÍCIAS, AS FORÇAS ARMADAS DA DITADURA CIVIL

As milícias, formadas por ex-policiais e policiais, que tomam conta das comunidades pobres expulsando os traficantes, e cobram pedágio para tudo, além de dominar os negócios locais, e que agem a mando de um político, como acontece no Rio de Janeiro, são as forças armadas da ditadura civil. Já fomos alertados pelas autoridades do Rio que esse esquema está se espalhando pelo Brasil inteiro. É porque a ditadura civil, o regime que de fato nos governa, à sombra do estado de Direito (que é apenas um discurso, um verniz sobre a realidade, já que faz água por todo o canto, desde a falta de segurança até a corrupção em todos os níveis da vida pública e privada) precisa de uma força organizada fora dos esquemas tradicionais para se sustentar. Isso contamina o voto, transformando-o em voto de cabresto, como tínhamos na República Velha.

Não pode viver indefinidamente às custas do poder público, é preciso criar algo paralelo, que funcione. Um pouco das empresas de segurança, que cuidam dos negócios da classe alta e que a toda hora oferecem defasagens perigosas, com assaltos a condomínios de luxo a cargo de ex-agentes, sem falar nas tungas em carros fortes e outros expedientes, são apenas uma parte desse esquema, em estado pré-natal. O amadurecimento, o esplendor é agora com as milícias.

Tanto tentaram desmoralizar o Exército, tanto empurraram as Forças Armadas da nação para o limbo, o ostracismo, vilanizando-as por todos os excessos do regime ditatorial, que foram compartilhados com o poder civil, mas só a farda levou a culpa, tanto destruíram a identificação da nação com suas Forças Armadas, que abriram caminho para que haja hoje essa novidade que tiraniza bairros e populações inteiras. No lugar de reconhecer nas Forças Armadas o valor da palavra empenhada de não intervenção na política, totalmente cumprida, resolveram gerar uma campanha infinita de achincalhe, que culminou com o triste episódio dos três rapazes que foram entregues por soldados à sanha dos traficantes, uma história muito mal contada.

Para agravar a situação, se locupletaram em verbas milionárias de indenizações para pessoas que nada sofreram durante o regime, como foi o caso dos colaboradores ( e não fundadores) do Pasquim, o jornal fundado por Tarso de Castro, que morreu depois de ser completamente censurado por todos. Pois agora muitos militares estão reivindicando 300 milhões de reais de indenização pela luta contra a guerrilha do Araguaia. É esse tipo de retaliação que é gerada por uma política suicida de soberba, a mesma que deságua nas milícias, resultado natural dos dólares na cueca e dos mensalões, sem falar nos escândalos bancários.

A ditadura civil precisava das suas forças armadas. Agora tem.


21 de agosto de 2008

O MAU USO DA CRÍTICA


Quando a Argentina foi eliminada da Copa de 2002 e o Brasil venceu a Inglaterra e, contra todas as maldições dos comentaristas vendidos, passou pela invencível Alemanha e conseguiu o pentacampeonato, a imprensa portenha disse: “Viu, Argentina, é assim que se faz.” Não disseram: “Veja, Argentina, você é uma porcaria, não serve para nada, não tem espírito de seleção, está de salto alto, nunca prestou mesmo, não vale nada, nasceu para perder.” Os argentinos, assim como nenhum outro povo, nega a nacionalidade na hora da derrota, como fazemos por aqui. Num dia Ronaldinho era o rei, no dia seguinte era capitão de um time de cornos, como insinuou o Casseta e Planeta.

A seleção foi mal contra Argentina? Foi. Mas foi ótima contra Camarões, time forte despachado por dois a zero. Foi avassalador contra China e Nova Zelândia, times fracos, mas bem que poderiam oferecer perigo, principalmente a equipe da casa, se os ventos soprassem ao contrário. E foi bom contra a Bélgica, ganhando apertado de um a zero, num jogo em que a mídia vendida caiu em cima dizendo que era um timeco. A Bélgica quase chegou à final, foi firme em frente, provando que era uma adversário forte na nossa estréia. Quando vencemos a Bélgica, fui o único a defender a seleção. O resto caiu matando.

Mas como perdemos por três a zero dos argentinos, estão tudo volta à vaca fria. É de ver a arrogância do chamado “povo fala”, as falsas entrevistas, armação da mídia para reiterar conceitos. “Brincadeira, isso não é seleção, Dunga pede para sair” e por aí foi. A competição foi difícil, nossa seleção era boa, mas deveria estar melhor preparada. Isso podemos dizer. O que não podemos é cagar em cima da camisa canarinho, é xingar jogadores. Gostei do Rafinha, que tem toda a vocação de ponta, apesar de não existir mais essa bela posição, hoje chamam de volante ou sei lá o quê.

Gostei do Hernanes, firme no primeiro jogo, mas irregular nos outros. Achei que Pato deveria ter mais uma chance e não ser cortado como foi, e que Diego poderia render mais, assim como Ronaldinho Gaúcho, que, apesar de tudo, fez seus gols. Gostei do goleiro Renan. Mas não achei Marcelo isso tudo o que Galvão Bueno disse. Parecia coisa combinada. O Marcelo tocava na bola e o Galvão exultava. O que foi aquilo? Achei que combatemos o bom combate e notei como a seleção faz bem em tocar a bola (nem sempre com acerto, infelizmente) para manter a posse do jogo e tentar furar o bloqueio adversário. Por que vaiar quando tocamos a bola? A verdade é que todo mundo quer colher e ninguém plantar.

Caem em cima do Dunga dizendo que temos outros treinadores melhores. Temos. Mas vejam só. O Luxemburgo não teve que sair nas eliminatórias porque o Brasil estava perigando? Quando tínhamos o Felipão, todo mundo xingava de burro. O cara teve que fechar o time para a imprensa, se concentrar ao máximo para sair de lá campeão. Não combato aqui a capacidade da crítica, o direito à crítica, mas o mau uso do espaço da crítica para negar tudo o que somos, para fritar profissionais. Quando vejo a seleção feminina chegando na final lembro que só o Luciano do Valle dava força no início, o resto, Globo principalmente, ignorava olimpicamente, com todas as letras. Agora o Pedro Bial (sempre ele) dá entrevistas sobre o time feminino, dizendo como ele acredita nas meninas. Ora, cate-se. Quero ver se não vencermos hoje o que não vão dizer. Se ganharmos, e acho que sim, todos vão querer pegar carona nesse ouro.

Posso falar porque há tempos abordo o futebol feminino revelado a mim pelo Bolacha, o Luciano do Valle. Se as mulheres vencerem, imagino a quantidade de abobrinhas que vão falar sobre o gênero, sobre o fato de serem mulhéééérrr. Não tem nada a ver. Marta é uma coisa, Marília Gabriela outra.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: o que mais falta para Ronaldinho, campeão do mundo, provar alguma coisa? Acontece que se alguém brilha, fica fácil fazer cobranças, só para tentar deslmoralizar o talento. "Viu, não é de nada, viu?" Ora, ora. Vão chutar pedra. 2. Perdemos para as americanas na final. Boa a dúvida da Marta: "Não sei o que acontece nas finais. A bola não entra." Talvez falte o país dar uma mãozinha, não deixar que brote craques do nada como Marta, ajude a termos um futebol de massa, fundado na rede escolar pública, nas universidades. Sei lá.

19 de agosto de 2008

NETTO CONTRA OS IMPERIAIS


O ator Werner Schunneman, numa entrevista, matou a charada: Netto e o domador de cavalos, de Tabajara Ruas, não é o único filme gaúcho da mostra competitiva do Festival de Gramado, que acabou no último domingo com um apoteose de Kikitos para três filmes cariocas. “É o único filme não carioca”, disse ele. “Netto representa Minas, Espírito Santo, Piauí, Pernambuco, Rio Grande do Sul. Somos nós contra os imperiais.” Werner, junto com Tarcísio Filho, protagoniza esse drama em ritmo de blues, que o talento de Vitor Ramil, tocando ao fundo, ajuda a tornar memorável .

Acompanhei um pouco o longo processo que gerou este filme, desde a época em que foi a campo, depois editado na casa da Lagoa, aqui na ilha, de Ligia e Taba, com quem compartilhei maravilhosas horas de convívio, quando aprontávamos a trilogia de Diogo e Diana. Acompanhei a luta, o cuidado, o carinho, o esforço, a seriedade, a emoção que foi fazer este filme primoroso, que vi em primeiríssima mão, ainda no copião, e espero ver em breve no que ele se tornou. Mas o trailer já dá uma idéia da grandeza do filme.

Não conversei ainda com o diretor depois de Gramado. Portanto falo por mim. Fiquei absolutamente chocado com a brutalidade com que “Netto e o domador de cavalos” foi tratado, sendo completamente esquecido na quantidade de prêmios diponíveis, que foram distribuídos fartamente para outros cineastas. Fica na cara que se trata de uma exclusão pura e simples, fundada no preconceito e em outras coisas que imagino mas não ouso dizer. Cinema exige muito investimento e tem muita gente querendo financiamento. Tentar queimar não apenas um filme, mas toda uma proeza, uma empresa, uma equipe enorme, neste país sem estrutura nenhuma, em que tudo é feito a partir do nada, se trata realmente de uma grossa e gigantesca sacanagem.

Acuso os responsáveis por essa violência, sejam eles quem forem. Parece ser consenso que há um cansaço do chamado gauchismo, mas no fundo há cansaço de arte, de sofrimento, de suor, de História, de Brasil. O que temos é a frescurada de todo o tipo dando as cartas. O mais trágico é que os chamados politicamente corretos, como notou Daniel Duclós numa carta para mim, falsamente defendem a diversidade, mas são tirânicos na sua mesmice. Diversidade é o filme do Taba, que se alista na luta da negritude, na luta por um país, na luta contra a escravidão, até hoje vigente. Que luta pelo talento!

Vejam no filme Julio Conte, esse grande ator e dramaturgo, no papel do fazendeiro, Miguel Ramos, dividido entre a proteção ao seu afilhado e a saraivada de açoites que é obrigado a dar nele. Vejam essa ator magnífico que é Sirmar Antunes tomando conta da tela. Vejam esse menino, grande revelação, Evandro Elias no papel do Negrinho do Pastoreio revistado. Vejam a dança insubmissa de Fernanda Carvalho Leite. Vejam Tarcísio Filho no impressionante papel do Índio Torres. Quando o Índio Torres aparece amarrado junto a um Nico Nicolaievski sádico, cru, triste, cínico, acontece um dos grandes momentos do atual cinema nacional. Os diálogos sussurrados, a ação que se desencadeia depois de tensões represadas, de perspectivas sombrias. Tudo filmado num cenário espantoso, de gaúchos montados a cavalo na areia, de pampa infinito, de seres humanos cercados pelo drama da paisagem.

Luiz Carlos Merten notou referência a Visconti e John Ford, dizendo que ninguém se importa mais com isso. Deve ser. Não se importam se filmes como “Quando meus pais saíram de férias” não passa de um plágio do filme argentino Valentin, ou “Central do Brasil”, apesar de ótimo, é apenas uma refilmagem de Gloria, de John Cassavets. Enquanto copiam, Taba faz referências aos clássicos, numa obra original, profunda, fecunda, libertária.

Taba reinventa o conceito de clássico ao cruzar a mitologia do faroeste com a ficção histórica gaúcha. Compõe um drama à altura do melhor cinema. Seu novo filme terá o reconhecimento devido. Não precisa desses imperiais, fadados ao esquecimento. Fora e chega!

RETORNO - Os imperiais do cinema e da TV não podem esquecer que a televisão brasileira deve à mitologia cinematográfica de Netto uma nova estética, uma solução audiovisual poderosa. Produziram, a partir de Netto, uma nova dramaturgia televisiva sobre o Sul, já que a obra gerou cineastas especializados em batalhas, novos rostos para a tela, personagens magníficos nunca antes explorados, novas histórias, novos enfoques, entre outras coisas. Precisam dar crédito, respeitar e não torcer o nariz. Aproveitaram, ou seja, se ajoelharam. Agora rezem.

EM NOME DO TEMPO


Nei Duclós(*)

Deveria haver um mandamento para não tomar o nome do tempo em vão. Evitaria um massacre, gerado por vícios como achar que existem pessoas à frente do seu tempo, como se o passado sofresse de um pecado original que não o habilita para o gênio. Ou dizer que o tempo atual é definido pelas celebridades, como se o interesse excessivo por elas passasse um atestado de idiotia ao presente. Ou sustentar que não sobreviveremos a este século, por força do aquecimento global, ou da nova era glacial, dependendo da moda, o que é uma forma de enterrar o futuro, que ficaria assim excluído da esperança, sua velha moeda corrente.

Não faz sucesso contrapor a esses maus hábitos a lógica e o bom senso, atributos desmoralizados pelo pragmatismo, cada vez mais envernizado pela pose e a má assimilação das ideologias. Não convenceremos se dissermos que cada tempo produz o pacote completo e que, merece, portanto, figurar ao lado de outras épocas igualmente generosas em produzir o que existe de melhor e pior na humanidade. Ou que o comércio das celebridades é apenas uma perversão da sociedade do espetáculo e não pode definir a multidão mal servida de fama, mas dedicada ao talento, à vocação, ao suor e à grandeza. Ou ainda que seria muita pretensão achar que as próximas décadas vão se comportar conforme os interesses hegemônicos de hoje.

O previsível é que os jargões alimentados pelos equívocos voltem sucessivamente às manchetes, num círculo mal-assombrado de esqueletos que empurram a Terceira Idade para níveis gigantescos de irritação e impaciência. Passar uma vida inteira ouvindo abobrinhas serem incensadas pela mediocridade no poder é mais do que uma pessoa normal consegue suportar. Especialmente quando essas palavras de ordem se voltam para o divertimento favorito de enquadrar as pessoas em modelos hierárquicos da aparência e da massa muscular.

Como a cultura e o conhecimento entraram no ralo da indiferença, tendo sido substituídos pela performance e a reportagem “humana” (a que arranca sorrisos melosos dos apresentadores), caímos no leito anunciado pelo nazismo. “O jovem alemão precisa ser magro e forte”, disse Hitler num discurso. Isso eliminaria os gordos, os fracos, os avessos aos exercícios. Sabemos o que provocou essa eugenia de resultados, que negou a diversidade e tentou impor as certezas raciais. O perigo é que temos exemplos passando por nossos olhos a todo instante, insuflados pelas manipulações perversas de nível planetário.

O anacronismo, que é ver o passado com os olhos do presente, é uma pandemia, que se espalha à medida em que cresce a ignorância sobre a ciência histórica. Como não há vacina contra isso, a não ser o estudo árduo, é costume anexar países usando escudos como sabedorias e provérbios milenares. Ou manter feroz ditadura convivendo com manifestações da indústria do espetáculo, que dublam cantoras mirins ou inventam fogos de artifícios inexistentes, exatamente para reiterar a falsa imagem de potência. Ou projetar um perfil de gigante enquanto aumenta a produção de lixo industrial, as quinquilharias que sugam recursos enquanto sucateiam fábricas nacionais.

É proibido falar dessas coisas quando há deslumbramento pelo que não existe de fato. O que temos é um vasto painel de seduções variadas, enquanto a escola humanista da arte e da cultura, a que desdramatiza, desaliena, denuncia e liberta, continua sob feroz garrote.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 19 de agosto de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: um urso polar à frente do seu tempo. 3. O Brasil perdeu para a Argentina: podem voltar ao normal. A seleção é isto, é aquilo e tudo o mais. As vitórias vão para o saco. Vale o que já se sabia.

18 de agosto de 2008

A RESISTÊNCIA DOS GIRASSÓIS


Logo no início da partida, quando a Alemanha estava ganhando de um a zero das nossas jogadoras da seleção, os comentaristas da Globo (a única emissora que pega direito por aqui, em TV aberta, sem antena externa) elogiavam a “atitude” das germânicas, que estava se comportando à altura da decisão. Não eram como essas brasileiras que estavam perdendo e, pelo andar da carruagem, deveriam somar mais uma frustração à cesta de derrotas nacionais. No final do jogo, quando dávamos de quatro a um na atitude branquela, Galvão Bueno insistia em tirar a Marta porque senão ela pegaria um cartão amarelo e ficaria fora da final. O técnico manteve a Marta, que não ganhou nenhum amarelo.

E na vela? É Scheidt, Scheidt, Scheit. Pois deu Fernanda e sua companheira de equipe, que ganharam bronze. Ninguém tinha falado nelas. Não vi uma só reportagem. Desconfio que os orgasmos anais dos comentaristas diante das concorrentes estrangeiras na ginástica olímpica tenha sido o motivo de tanto mau agouro. Caímos de todas as formas, mas dá para entender. Essa cobertura, que orienta a percepção da massa pra quem seria infinitamente melhor, faz com que o peso do Mal recaia sobre nossos atletas. Não estou justificando nada. Apenas reportando o que vejo e tirando minhas conclusões. “Nossa, a atleta americana não derrubou um fio de cabelo na hora de saltar, que coisa”. Ora, vão tomar no cu.

Essa postura faz sentido. Num país sugado de sua soberania, os oportunistas ficam querendo colher ouro quando não plantam nada. No fundo admiram as outras “raças” e desprezam os brasileiros. Num dado momento, a comentarista elogiou o gol da Pretinha. Depois se corrigiu, tinha sido da Formiga. É que ambas se parecem, entendem? Vistas de longe, são todas iguais, é o que eles pensam. Lembram o verso da Tropicália, de autoria de Caetano Veloso, “os urubus passeiam a tarde inteira entre os girassóis”. As camisas amarelas são os girassóis que carregam o peso do mau olhado dos falsos patriotas, que sobrevoam os jogos com suas garras milionárias.

É possível que tenhamos ouro no futebol feminino. Mas os inimigos têm uma arma secreta: Pedro Bial. Ontem, domingo, quando o grande agourento ficou brincando de Big Brother com Marta e Cia., temi pelo pior. Lembrei quando ele se envolveu naquele caso de intriga entre Ronaldo Fenômeno e sua namorada, evento que teria influído no resultado do final da Copa de 1998 na França. Ou quando chafurdou de quatro na lama ao babar no ovo de Zidane Zizou em 2006, pisoteando na seleção, que perdeu de apenas um a zero, acusando nossos jogadores de omissos, relapsos, preguiçosos, brasileiros enfim. Quando tudo parece dar certo, o animador de pessoas malhadas, confinadas e saradas, que fazem todas as baixarias para disputar um milhão de reais, vem para fazer estrago.

Precisamos que saiam de cima dos rapazes e das gurias. Como explicar o sumiço da vara da Fabiana Murer no salto? Zica, claro. Pode ter sido boicote, o escambau. Mas fundamentalmente é zica, mau olhado. Vi a apresentadora melosa entrevistando a moça dias antes de saltar. De mulhééérrr para mulhééérrr, entende? Aquelas entrevistas nada a ver que perguntam a cor favorita de unha. Para mim, estava zicando. Chamaram a guria de tudo, até de musa. Funciona.

Xô, urubu.

17 de agosto de 2008

CLEPSIDRA


Nei Duclós

Há tempo não via a Lua
Esqueci que se escondia

Atrás das casas flutua
Redonda e lisa de luz

No fim de agosto sem nuvem
O que será que anuncia?

Enigmas de clepsidra
Eclipse, redondilha?

A primavera impassível
A tecer sua armadilha?

Qual gruta forçou a fuga?
Foi uma briga em família?

Qual verso não repetido
Gerou esse longo exílio?

Estava espessa de nuvem
Estava prenhe de escuro

Foi um passeio de escuna
Longe dos seus domínios

Deixou-me só sobre a areia
Num deserto em calmaria

Era eu que estava oculto
Sob o manto da rainha

RETORNO - A imagem acima é foto de Miguel Duclós.

MIGALHAS DEFINEM MEDALHAS


Olimpíada não tem refresco. Os melhores brigam por um grão de areia. Um passo a mais, um tombo, um toque na rede, um bilionésimo de segundo e lá se vai o sonho, embalado por um chororô sem fim. É duro enfrentar-se depois da queda, dar explicações, baixar a cabeça. Vimos a chinesa que tropeçou na sua prova no solo, vimos Daiane de novo colocando o pé onde não deveria, vimos Diego Hypolito cair como jamais deveria, e vimos a dupla americana do vôlei de areia, super entrosada e com jogadas decisivas, tirarem Larissa e Ana Paula da reta.

Não adianta tentar se compensar e achar que, na ginástica olímpica, somos a oitava equipe melhor do mundo. A verdade é que na prova final tiramos o último lugar. Isso não é desonra, mas não devemos tentar dourar a pílula, já que o ouro da medalha fugiu. O que falta ao Brasil? Além de aumentar o volume e a massa de quem compete, para que possamos eleger o que temos de mais competitivo, devemos saber disputar essa quirera que define a grandeza. Porque é isso que se trata: a espessura da pele de um dedo pode definir o campeão quem toca na parede ou rasga a fita antes de todos.

Desta vez, o vôlei de areia acabou me conquistando, eu que costumava chamar esse esporte de peteca de praia ou cuspe à distância. Continuo achando que o futevôlei teria mais motivos para virar modalidade olímpica (até cama elástica entrou na parada!), mas vá lá. A dupla americana é impressionante, elas bloqueiam todas, estão sempre bem posicionadas, não perdem saque, não precisam se falar, se entendem como ninguém. Um giro do punho, como notou a comentarista da Globo (a única emissora que pega direito aqui no ermo) e lá vai a bola beijar o retângulo fatal no campo adversário.

Ainda implico com o handebol e, desculpem os entendidos, o judô e a luta livre. Acho muita covardia. Como será possível segurar o pênalti do handebol, por exemplo? Você pega a bola com a mão, faz várias ameaças e acaba colocando onde quer. No judô nunca sei quando há pontos e quando alguém vence. Fico pasmo que todo mundo entenda e vibre com o resultado antes que eu enxergue o lance. A luta livre deveria dar cadeia para quem participa. Vi duas gigantescas criaturas se digladiando. Uma amassava com a pança dura a cabeça da coitada da adversária. Acham isso normal?

Perdemos quase tudo, numa sucessão mortal de derrotas. Pelo tamanho do país, pela riqueza que geramos, tão mal distribuída, deveríamos desempenhar melhor nessas provas fatídicas. Mas continuo vendo reportagens sobre a garota que não tinha dinheiro para o ônibus para poder treinar. Assim é brincadeira. Não dispomos nem de trocos para gerar um campeão? Enquanto alguns atletas ganham todo o destaque da mídia (Tiago Pereira foi um deles e não ganhou nada), o resto pasta no anonimato, recebendo o mesmo tipo de atenção dos atletas de países minúsculos. Somos seres exóticos para a imprensa do nosso próprio país.

Grossa grana em instrumentos olímpicos, uma quadra, uma raia, uma reta, uma cesta em cada bairro, vila, região. Milhões espalhados pelo país, mantidos pelo poder público, com tudo em cima, segurança, orientação técnica. Empregar os milhares de formados em educação física, fazer um programa nacional de disseminação do esporte, sem essa merda toda da publicidade em cima. Economizar em imposto para eleger alguns privilegiados não é o caminho. A pobre Daiane salta majestosamente no comercial da Samsung, para quê? Precisamos de dez mil Daianes.

Precisamos de um monte de atletas disputando o pózinho de traque que define uma medalha. Só assim deixaremos de ser o Brasil, país exemplar, milionésimo-quinto lugar.

RETORNO - Imagem deste post: foto de B.J. Duarte, o grande fotógrafo brasileiro, irmão de Paulo Duarte, figura importante da história paulista. Ele registrou todo o trabalho do poeta Mário de Andrade na Secretaria de Cultura de São Paulo, nos anos 30, claro, em plena era Vargas. Era a disseminação em massa do esporte, por meio da educação, dos estudantes, dos colégios. Acabaram com Mario de Andrade porque ele fazia parte de um governo estadual indicado por Getúlio Vargas. Os falsos politicamente correto, na verdades inimigos do Brasil, acabaram expulsando o poeta para o Rio de Janeiro, onde veio a morrer de desgosto.

Entrevistei J. B. Duarte quando ele estava bem velhinho, com mais de 80 anos. Tinha publicado quatro livros de memórias de suas andanças por Paris nos anos 20 e 30, quando conviveu com todo o grand monde cultural da época. Seu acervo serviu de base para a memória iconográfica da cidade, hoje sob a guarda do governo estadual ou municipal, não lembro. Fotos deslumbrantes, como esta que encontrei na Internet.

Já tivemos um país, precisamos recuperá-lo.

PESADELO AUTOMOTIVO


Nei Duclós (*)

A publicidade de um carro zero quilômetro omite o mundo enigmático das oficinas. Logo que sai da fábrica, o bicho anda como se fosse mágica. Parece até que se movimenta orientado pelo esgar malicioso de bocas dos motoristas que se retorcem de prazer ao dirigir. Pelo menos é o que vemos nos comerciais. Mas olhinhos apertados, braços estirados no volante, companhias femininas banhadas de ouro e prata são apenas poeira nos olhos, porque a realidade muda rapidinho. Em pouco tempo, aquele organismo tão cobiçado, que trafega para a inveja dos contemporâneos, oferece um espetáculo de ruídos rascantes, fumaças fora de hora, luzes que jamais apagam.

Peça de automóvel é como célula: já vem programada para pifar, depende do modelo e da marca. Se os artífices das montadoras são capazes até de inocular cheiros específicos nos estofamentos, para aumentar o poder de sedução na hora da compra, se pesquisam até o barulho da porta quando se fecha para sugerir poder, ou simplesmente carícia para quem ouve, como não iriam decidir o mais importante? Ou seja, o momento exato em que você terá de livrar do seu pé de borracha favorito e desembolsar mais dinheiro, se quiser manter seu status de feliz proprietário de um zero.

Essa é a hora em que o sonho acaba e, se não dispomos da quantia exigida pelo resgate, ou teimamos em manter a mimosa baratinha adquirida na juventude, vamos cruzar o umbral das palavras enigmáticas. Aos poucos elas vão ficando mais familiares, na medida em que a conta do banco é esvaziada para mantermos o privilégio da locomoção movida a gasolina ou a álcool. No início, parece que não vai doer. O mecânico, ou o auto-elétrico da esquina, talvez resolva. Você aprende que não deveria ter deixado de dar doses maciças de hidrocarbonetos (ou algo parecido) para evitar que o carro acumule cracas e entupa as passagens de óleo.

Sim, ele é capaz de sofrer um enfarte. Se o cara que arrancou uma nota para obrigar a vítima a cumprir seus compromissos a pé não conseguir resolver, é melhor não insistir e partir para o estabelecimento mais próximo. Pois fica difícil engolir explicações do tipo da já desmoralizada rebimbeca sueca. Sobram exemplos. O carro apresentou o mesmo defeito depois que o freguês se separou do dinheiro para o conserto, por um motivo simples: “Ele é eletrônico”, diz o solícito especialista, “então o que acontece é a memorização do erro. Por mais que a gente conserte, ele volta ao estado anterior”.

Isso pode até colar, quando há uma capacidade gigantesca de se acreditar em tudo o que dizem. Mas a ficha acaba caindo e parte-se para a ignorância: contra todos os conselhos, entramos ressabiados numa autorizada. Gasta-se então os tubos na troca de pneus, válvulas, estofamento, limpa-parabrisas e outros supérfluos. Parece que saímos no lucro, pois é bem melhor colocar tudo na mão dos sabichões do que jogar grana fora em empresinhas de fundo de quintal.

Pois em menos de duas semanas o mesmo defeito dá as caras novamente. Os pneus estão tinindo, mas o carro não anda, ou não pega de primeira ou simplesmente se recusa a sair de casa. Carro ensinado não deixa ninguém na rua, mas também costuma ficar emburrado na garagem até que o proprietário tome uma atitude e chame um interventor.

O cara chega, faz uma chupeta, no bom sentido e leva novamente o insubstituível para longe. Até que um dia, depois de tantas experiências, o coitado resolve arriar no meio da estrada com a biela em pandarecos, fazendo o barulho de um matraquear assustador. O motor fundiu, era previsível. É preciso que a retífica tome conta e descubra, alarmada, que as camisas estão gastas. Sim, existem camisas no motor. E elas custam o dobro do inimaginável.

Por isso, quando os pobres sofredores vêem os astros estrangeiros de cinema passeando com as beldades brasileiras, em campanhas milionárias de carros do ano, movidos a esgares maliciosos, dá vontade de gritar uns palavrões: Biela! Virabrequim! Injeção eletrônica! Rebimbeca!

É justo. Há limites para o ser humano.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neste domingo, 17 de agosto de 2008, na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: ciclovia em Amsterdam, um exemplo de anti-pesadelo automotivo. Foto de Daniel Duclós.

16 de agosto de 2008

ESSE ESTRANHO AMOR


Nei Duclós

O amor à Pátria é um sentimento estranho. Não faz sentido amarmos algo que não tocamos, já que nação é mais do que paisagem geográfica, é um pedaço inacessível de pano, longe, ao vento. É um começo de hino, um sotaque, um andar, um reclame. Não implica rebento, não faz parte do mundo animal, não tem ligações de sangue. País é como um parente distante, sobre o qual desconhecemos a origem, não reconhecemos laços, desconfiamos. Não está incluído na natural proteção que damos ao objeto amado, quando agarramos, beijamos, suamos, lambemos o que gruda e arranha .

Pátria não tem corpo, é mais um acordo, uma idéia, no máximo duas cores (as outras são coadjuvantes). Então, que estranha compulsão é essa que nos inunda quando abraçamos a bandeira e gritamos o nome do país que imaginávamos não amar mais? Talvez porque o amor à Pátria, ao contrário do egoísmo dos amantes, seja aberto, amplo, generoso, que se espraia pelo tempo, praias, horizontes. E volte, sempre que houver motivo ou o dever nos chame.

O amor à Pátria é o primeiro a ser negado quando nosso representante, no lugar de evitar o gol do adversário, contribui com ele por omissão ou soberba. Quando a reiteração dos crimes compõe a identidade do país que deveríamos amar. Basta o galo cantar uma só vez para trairmos a devoção cívica que deveria nos nortear. No varejo, nos dias que se sucedem sem nenhuma graça, vemos o amor à Pátria escoando pelo ralo. É o Brasil, dizemos, e damos o assunto por encerrado.

Chegamos até a admirar os outros, que por suas pátrias possuem um amor sem dúvidas, já que vivem batendo no peito as heranças, como se o sentimento fosse invisível e precisassem, a cada momento, confirmá-lo diante de todos. Nós somos diferentes. Nosso amor à Pátria é muito mais estranho. Perdemos a pista de suas fontes. Não há o que amar, pensamos, num país tão próximo e distante. Por isso, talvez, emigramos. Queremos esquecer a exclusão, a violência, o vexame.

Mas basta um garoto desconhecido, vindo do Brasil profundo, com família tão comum, como a nossa, um garoto pouco explícito, já que a mídia aposta sempre no mesmo, que rompe a barreira com sua musculatura de escamas, ganhe um suado ouro no mais extremo Oriente, para que, pronto, o estranho amor volte à tona como um náufrago dado por perdido. Tínhamos esgotado a cota de esperança. Estávamos mortos, abraçados a poucos bronzes. Veio César, de um céu limpo, para chorar o que negamos.

Talvez pelo peso excessivo dessa responsabilidade, que a nação inteira, com um pé atrás, torta de tantas derrotas, tenha colocado sem querer em seus ombros, fez com que César Cielo Filho desandasse a chorar sem consolo. Como se recuperássemos as cachoeiras que matamos, como se voltassem os rios que se tornaram espaços sedentos. Foi a água limpa do seu choro o sintoma de algo maior que nos transcende. Foi vergonhoso, reconhecemos. Onde se viu um país chorar por um pedaço de ouro, depois de tanto que tivemos em nossas entranhas e que foram espalhados pelos esgotos da História e do mundo?

Nem devíamos estar escrevendo essas coisas. Não merecemos esse ouro. Essa medalha pertence ao garoto e seus pares, sua modalidade, sua família. No máximo à sua cidade, jamais ao país que, no entanto, amamos. Estranho, é possível que não seja a Pátria o algoz que tememos. Talvez tenha conserto, e seja bom e certo bater no peito e nos insurgir quando ameaçam berço e destino, o único lugar do qual jamais escaparemos. Será esse o caminho, depois de tanto erro?

Não sabemos, César, Cielo, Filho. Saberemos quando tivermos tua garra e chorarmos a alegria de sentir esse amor estranho, o amor ao Brasil, a nação soberana. Queremos fazer parte desse ouro. Acolha-nos, César, com teu poder mutante. O que chora quando a bandeira, majestosa, sobe e o Hino Nacional nos toca, como um tiro certeiro.

RETORNO - 1. No dia do nosso primeiro ouro, o gênio de Dorival Caymmi deixa a vida terrena e ocupa, em definitivo, seu lugar na eternidade. Sobre Caymmi escrevi há tempos. Vale o escrito. 2. Passamos pela retranca de Camarões, que tentou recair no mesmo expediente, o de descer o sarrafo para nos desestruturar, o que fizeram com sucesso no passado. Desta vez, não. Ganhamos de dois golaços a zero. Ué, a seleção nem era considerada um time! Não foi o que disseram na estréia? Haja.

15 de agosto de 2008

ARTE É FORÇA

Por falta de concorrência (a opinião pública livre, com espaços para se manifestar, o que é comum em democracias de verdade, e não no nosso sistema de ferozes monopólios) a crônica esportiva vive de conceitos que se excluem. Chegaremos aos cem anos escutando o mesmo tipo de abobrinha, pois não há como puxar as orelhas de quem professa as barbaridades. A mais recorrente bobagem é que, no futebol, arte é supérfluo, que a força é que decide partidas e gera resultados favoráveis. Ficam batendo nessa tecla até a exaustão. É uma bobagem tão intensa quanto a de medir altura dos atacantes na hora do escanteio, como se futebol fosse vôlei ou basquete. Não adianta os baixinhos fazerem mil gols de cabeça na área minada, sempre vai ter um comentarista que verá nisso uma exceção: “Puxa, ele conseguiu, mesmo com pouca altura”. É de matar.

Quando um adversário tenta impedir o avanço do atacante, o que faz o centro-avante? Ou um ponta? Dá um drible nele. Isso é arte, a única maneira de passar pelo adversário. Não adiantaria dar-lhe um encontrão e sair disparando, isso faria com que a bola se perdesse. É preciso a arte do drible. Quando você quer atingir o arco e está de costas para o goleiro adversário, o que faz? Dá uma bicicleta, que é a única maneira de conseguir fazer o gol sem ter condições para isso. Se o ponta fica no mato sem cachorro e sem ângulo, como ele sai dessa? Com um giro de corpo e batendo com a parte certa do pé, ele consegue achar um espaço antes inexistente para a bola beijar a rede. É assim que funciona.

Perdemos a Copa de 82 não porque jogamos o fino, mas porque o imbecil daquele jogador pateta, o Toninho Cerezo, tocou três vezes a bola para o Paolo Rossi completar. E porque nosso goleiro, o Valdir Peres, deixou passar todas, exatamente todas as bolas que atingiram sua meta. Dois jogadores ruins e fomos para o saco. O resto era maravilhoso, a começar pelo treinador, Telê Santana, o cara que entendia ser a arte a força do futebol e a única maneira de vencer. Jogar bonito não significa dar sopa para o azar. Esse é um equívoco que gera, paradoxalmente, argumentos favoráveis ao preconceito, pois sempre tem um idiota que fica fazendo embaixada diante do adversário para tentar humilhá-lo. Isso serve de pólvora para a arma carregada da imprensa. "Veja só, ele quis fazer arte e perdeu a bola". Isso não é arte, é firula, imbecil. Arte é outra coisa, é encontrar a solução criativa para um impasse do jogo.

A cobertura das Olimpíadas nos oferece exemplos notórios de idiotia consagrada. "Acabou de acabar, apresentou a apresentação", são só alguns exemplos supérfluos. O pior é o Galvão Bueno (sempre ele, acho até que existe mais de um Galvão Bueno, assim como devem existir uns quatro Michael Kelps) malhar a Marta um minuto antes de a grande e imortal cracaça dar um sufoco na norueguesa no jogo em que vencemos esta manhã por dois a zero. Enquanto os gols não vinham, sobrava elogios para as gringas. Uma delas jogou a bola para fora quando houve uma contusão de uma brasileira. Galvão se desmanchou em elogios, tipo que coisa civilizada, como são mangíficas. Mas quem inventou o fair play no futebol foi o Garrincha na Copa do Chile em 1962. Mané, generoso, jogou a bola para fora para que o médico antedesse um adversário. Não foram as loiras que inventaram isso.

O mais trágico é ouvir outro apresentador, o mesmo que todo ano assume o papel de gigolô de gente malhada e confinada, se desmanchar diante dos americanos do basquetebol. Primeiro, elogia a “atitude” dos caras na hora de tocar o hino. Patriotismo, coisa que ele não tem, haja vista sua participação na última Copa, quando abriu as pernas para o Zidane e chafurdou na lama contra o Brasil. Ele confirmou sua posição ao celebrar (ninguém me contou, eu ouvi) a testosterona dos jogadores americanos. Vai ser bundão assim lá na China.

Queria saber o seguinte: o que era mesmo a seleção masculina de futebol? Selecinha? Não joga nada? O que mais? Cinco a zero foi pouco? Três a zero qualquer um fazia?

RETORNO - Imagem de hoje: Marta, a imortal.

12 de agosto de 2008

VIOLÊNCIA PLANEJADA


Nei Duclós (*)

Há tempos o Brasil está por um fio. A grande quantidade de eventos da violência define o perfil de uma guerra interna. Hoje sobram exemplos de assassinatos em família, entre padrastos e filhos, irmãos e irmãs, parentes próximos e distantes. Não se resolve mais os conflitos pelo diálogo por vários motivos. Um deles é porque vivemos em plena “ascensão do capitalismo de desastre”, como denuncia a jornalista canadense Naomi Klein no livro “A Doutrina do Choque” (Nova Fronteira, 590 páginas). Uma ditadura global trabalha as grandes tragédias sociais, econômicas e ambientais a favor da superconcentração de renda, a galope do sucateamento das nações. Isso tira o espaço mínimo de sobrevivência da cidadania.

O quadro é alimentado pela força, via imposição econômica e políticas maquiadas. Substituir o desenvolvimentismo dentro das fronteiras pela interdependência e a especulação financeira serviu para aplainar o terreno rumo à derrocada. Foi praticamente eliminado, em regiões periféricas, um dos instrumentos básicos, como o ensino da língua culta, longe dos maneirismos datados da gíria e das ancestralidades obsoletas dos regionalismos. É preciso que saibamos falar antes que o país seja destruído. A língua culta, disseminada em massa, contribuiria para uma ação cooperativa capaz de operar milagres.

Como está, a violência é a resposta à pobreza crescente cevada no vazio do verbo. Quando as palavras perdem o poder, parte-se para a ignorância. Uma das panacéias mais comuns é o fundamentalismo. As pessoas recorrem aos textos sagrados para encarnar o poder que não possuem. Não basta a exacerbação da espiritualidade, já que a linguagem religiosa peca pela mesmice e muitas vezes o fanatismo.

Dispomos de profundos antecedentes para esse quadro complicado. A privatização da violência está nas raízes da formação do Brasil. O senhor de engenho era obrigado, por lei, a ter determinada quantidade de pólvora e armas, tudo armazenado num depósito com dimensões definidas no papel. Como a violência não é exclusiva de um poder maior, que transcenda a todos, qualquer um se acha no direito de exercê-la. A prova são as matanças e linchamentos. Em terra de escravos, todo mundo é senhor.

Vejam no trânsito. O sujeito liga o pisca-pisca e entra, já que sua vontade é a lei. Você está numa estrada e precisa pegar à esquerda. O que vem atrás sobe na sua retaguarda como se estivesse num campo de caça. Ele não vai permitir a manobra, a não ser que a vítima jogue o carro no acostamento de maneira abrupta, para que o algoz possa passar com seu séquito de razões.

As pessoas não costumam emitir uma opinião, preferem ditar uma ordem. O dedinho levantado, o nariz empinado, o tom deliberativo compõem a reação oposta a qualquer manifestação alheia. Toda frase reativa começa invariavelmente com um “não”. Escutar é submissão, dizer é mando (por isso todos falam ao mesmo tempo, já que ninguém se submete). A violência amplia assim seu império. Como perdemos o hábito de prestar atenção nos outros, o tiroteio atinge a todos, crianças, velhos, mulheres grávidas.

Qual seria a verdadeira revolução? A paz, que só se consegue com algumas providências. Primeiro: o monopólio do exercício legal da violência por parte das instituições nacionais, sob a guarda da correção e a ética. Segundo: o fim do capitalismo de desastre e a volta da luta em favor do equilíbrio social. E terceiro: a língua comum afiada na criatividade, no conhecimento e na experiência.


RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 12 de agosto de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Naomi Klein, que matou a charada.

NARRATIVAS PARALELAS NA TELEVISÃO


A Globo colocou os apresentadores e repórteres a imitar os internautas, fingindo que estão interagindo com as imagens e notícias, por meio de toques que lembram um pouco a navegação na internet. É uma coisa falsa. Primeiro, porque tudo o que vai ao ar é planejado, portanto não existe a natureza on-line da ação. Segundo, porque não é você, caro espectador, que manipula os sinais e faz as coisas se movimentaram, na tela, são eles. Ou seja, eles tomaram o teu lugar e acham que estão inovando. Isso é um tipo de convivência de narrativas paralelas – a da internet e a da TV – que dá com os burros na água. Mas existem outros, que são interessantes.

Por exemplo: o programa “Faça sua história”, que os escritores Geraldo Carneiro e João Ubaldo Ribeiro criaram e vai ao ar sempre depois do Fantástico. São três narrativas paralelas. Uma, a do motorista de taxi contando a história para o passageiro. Outra, a ação narrada, que se desdobra em ambientes fora do táxi e envolve vários personagens. E a terceira, a imaginação do narrador, que acaba sendo o escape de uma vida conduzida pela necessidade, apertada pelo trânsito e com hora marcada para voltar para casa, onde uma esposa ciumenta o aguarda.

A imaginação é sempre sobre traições amorosas que caem no vazio, pois as vertentes narrativas jamais se encontram. A corrida de taxi é limitada em si mesma, tem a entrada do passageiro, o interesse pela história e o fim, quando o motorista volta a ficar só. A ação narrada segue o ritmo da comédia urbana, que tem um pé nos filmes da Atlântida e outro nos especiais cômicos de comportamento da própria emissora. Mas é também reduzida a um círculo vicioso, pois é quando o motorista se vê às voltas com sua condição precária de homem de poucos recursos, amarrado pelo casamento com filhos e que acaba não aproveitando as oportunidades de fuga que se apresentam.

A parte imaginada jamais se consuma de verdade, não há uma ligação entre o sonhos e o desenrolar da história. É a maneira de manter a verossimilhança e o interesse, pois o espectador acaba querendo saber como o motorista vai escapar do embrulho na dita vida real. Quando escapa, é sempre para reforçar os laços do casamento. A tradição é seduzida pela transgressão, mas jamais cede. Os motivos têm pitadas de sonho: o fogo do casamento jamais diminui, o amor compensa qualquer sacrifício e a gostosa que tenta o motorista não passa de uma armadilha, que se revela no final.

As narrativas não se cruzam, convivem uma apartada da outra, como no caso da internet fake dos apresentadores e repórteres. Existe a tabula rasa, ou seja, todas no fundo não passam de representação, ficção,desde o noticiário até o especial dos domingos. Mas isso não pode ficar claro nem ser denunciado. É preciso amarrar bem as histórias, as reportagens, as entrevistas, os casos, as brigas, para que tudo pareça como na vida real que ninguém tem: um pouco de aventura, de possibilidades, de distração.

Há perversidade no processo, mas isso não pode ser atribuído a um plano ambicioso de manter todo mundo na linha. Acho que os criadores dessas coisas acreditam no que fazem e têm uma visão diferente da que foi apresentada aqui. Não importa. O que vale é pensar alto, para que haja um pouco de sabor no fato de ver TV neste país de multidões confinadas em suas celas.

11 de agosto de 2008

MORO NA BOSSA NOVA


A bossa nova é como espuma, passa leve por nós e some no ar, mas volta eternamente. “Ah, meu amor tudo voltarias e de novo cairias a chorar nos braços meus”, diz Vinicius de Moraes, embalado por Baden Powel, na música Apelo, cantado por Dick Farney e Claudete Soares. O cd de Dick Farney vem junto com outro, de Tom Jobim, e é um presente da Folha, que está aos potes nas bancas, apresentados em caprichados cadernos escritos por Ruy Castro. Não comprou? Compre, custa só uns 14 pilas. Depois falamos.

Comprou? Colocou para escutar? Cocapabaaana princesinha do maaaaar. Essa música, interface com a mais sofisticada música do mundo, cantada em português nos claros dias do Brasil Soberano, pertence ao país que perdemos, mas que é o lugar onde decidimos morar. Quero morar na Paris libertada de Cartier-Bresson, quero morar no Rio de Janeiro da Bossa Nova. Não se trata de utopia, de sonho, de realidade virtual. É moradia mesmo, areia do tempo, onde pousamos a sorte de sermos vivos e profundos.

Não vou falar mais. Escutem. Deixem-se guiar pela civilização do som supremo, pelas mãos talentosas de Ruy Castro, pelo veludo da voz de Claudete Soares e Dick Farney, pelas letras de Tom Jobim, pelas melodias do maestro soberano. O Brasil destruído pela incúria, por 1964. Esse é o país que gerou a bossa nova. O mar, quando abandona Copacabana, sente o baque, a perda e descobre ser eternamente apaixonado por ela. Somos como o mar. Perdemos tudo, mas não nossa decisão de morar aí onde canta o país construído com a sabedoria de quem veio antes de nós.

Hoje abri o portão e pedi para desligarem o som do rádio de um carro, de portas abertas, envolto em nauseabundo baticum. Me atenderam. Aí coloquei Dick Farney. O dia se iluminou. More conosco.

RETORNO - Atenção para dois links permanentes no Outubro aí ao lado. Um é para o blog de Miguel Duclós, com posts mais freqüentes, sempre um banho de análise, informação e cultura. Outro é a estréia do Blog do Meu Saco, de André Falavigna, autor de inúmeras obras-primas. André é definitivo. Quando ficar ainda mais famoso do que já é, certamente lembrará dos velhos amigos.

10 de agosto de 2008

ORKUTÍADA


Nei Duclós

O Orkut é feito de despedidas
(Bom finde, boa noite, até a próxima)
De mensagens não solicitadas
(Jesus te ama muito, viu?)
De comunidades bizarras
(Adoradores de melão em fatias)
De fóruns militantes
(vocês são todos de direita)

O Orkut vive inacessível
(No donuts for you)
Com fotos ocultas
(Só para os amigos)
Perfis clonados
(Cool and nerd, baby)
Nacionalidades tortas
(Ilhas Fiji, Tuvalu)

O Orkut é feito de convites
(Venha mastigar conosco)
De pura espionagem
(passeei nos teus scraps)
De auto-celebração
(Convença-se que sou foda)
De tópicos de esculacho
(vai aprender a ler)

O Orkut só dá dor de cabeça
(quem será o anonymus?)
Mantém no ar os mortos
(esteja onde você estiver)
Provoca mal-entendidos
(vi você ontem na Argélia)
Atrai inúmeros encostos
(me adiciona, vai)

O Orkut é para solitários
(postagens às duas da manhã)
Alma em busca de si mesma
(search meu nome completo)
Coração fechado para balanço
(é que você não me conhece)
Corpo imóvel na cadeira
(quis sair, mas havia trânsito)

Mas às vezes vem um testemunho
(o que dizer de você?)
Um poema já esquecido
(lembrei do que me escreveste)
Uma amizade perdida
(você não é Ô, não é Á?)
E tudo muda no Orkut
(quem será que me visitou?)

O Orkut se repete como os dias
Deveríamos abandonar o Orkut
Mas como saberíamos da existência alheia?
Como repartiríamos a amargura da distância?
Como evitaríamos tantos reencontros?
Como abriríamos mão da vida?
Como seríamos fora das paredes?
Como deixaríamos perguntas no ar?

O Orkut nos mantém afastados
Com todo mundo de tocaia
Em busca de algumas vontades
De retomar os quintais
De subir em árvore
De cruzar o rio a nado
De escorregar no parque
De ler um livro

Seria bom, depois de uma trilha
Voltar ao Orkut para contar como foi
Mas aí correríamos o perigo
De nos perguntar: para quê?
Se tudo acaba em frente à tela
Mesmo que a gente dê a volta ao mundo
Mesmo que a gente suba no Himalaia
Mesmo que a gente engula o mar oceano

O Orkut, como a vida, não serve para nada
Por isso me deixe fazer uma pesquisa
Pedir socorro, encontrar o que não devia
É por isso que passo horas no Orkut
Horas, não, segundos
Mas são tantos ao longo do tempo
Que se fossem unidos num só comboio
Daria para ir até a Lua e voltar

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Pés, ilustração de Juliana Duclós. 2. Hoje, Dia dos Pais, procure no Blog do Meu Saco "Uma lição de democracia racial", obra-prima de André Falavigna.

9 de agosto de 2008

CENAS DE UMA TRILOGIA

Nei Duclós (*)

(Resenha publicada neste sábado, dia 9 de agosto de 2008, nas páginas centrais do caderno Cultura, do Diário Catarinense)

Infância, Ganhando Meu Pão e Minhas Universidades revelam toda a maestria narrativa de Máximo Gorki

Sim. Podem dizer o que quiserem de Gorki. Que ele passeava com Stalin na sua casa de campo, que foi o fundador ou o guru do realismo socialista e outras coisas. É moda desmerecer o gênio. Tudo isso não importa. Tudo o que enterra ou celebra Gorki politicamente não passa de firula, lantejoula. O que vale é seu texto, magistral, enxuto, conciso, mortal, deslumbrante na sua trilogia autobiográfica, sob todos os aspectos uma obra-prima. A edição dos três livros, Infância, Ganhando Meu Pão e Minhas Universidades, é da CosacNaify. Tradução, apresentação, ensaios e informações valiosas sobre o autor são de Rubens Figueiredo e Boris Schnaiderman.

Quem lê Máximo Gorki, não precisa ler mais nada. Algumas cenas nos deslumbram pela contundência, pela precisão dos detalhes, pelo fragor da narrativa, pela atualidade. Fellini deve ter lido, pois a literatura de Gorki revela que estamos cercados pelo surrealismo, que a realidade é hiper-real, que os seres humanos são um mural de exceções, o que chamariam hoje de diversidade.

A primeira cena de Infância é a morte do pai do narrador, que coincide com o nascimento do seu irmão, parido pela mãe de luto e em desespero. Há o funeral paterno (em que Gorki se preocupa com duas rãs que são enterradas junto com o caixão) e a viagem imediata para a cidade natal da mãe. A criança morre e é carregada numa pequena caixa no camarote do vapor que singra o Rio Volga.

No recinto sinistro, estão a avó, a mãe e ele, o menino Aléksiei, mais tarde "Máximo, o Amargo". A Rússia gelada e chuvosa, o povo em tremendo sofrimento, a família partida e enlouquecida pelas brigas internas começam, então, a desfilar no livro onde cada frase é um punhal e cada parágrafo contém a grandeza do humano.

Gorki ofereceu livro de contos de estréia para várias editoras e foi recusado por todas. Quando conseguiu publicar, houve um estouro. Tornou-se popular e fez amizade com os maiores escritores da época, como Tchecov e Tolstoi. Nas páginas de Infância, vemos como se formou esse caráter onde a inocência duela com a culpa, a vítima dos açoites afia sua capacidade crítica, a travessura prepara a independência e a paisagem hostil inspira um escritor admirável.

Outra cena impressionante é a morte do ciganinho, agregado que fora encontrado ainda bebê na frente da casa dos avôs de Gorki, e que foi esmagado por uma cruz pesadíssima, quando esta era carregada do quintal para a igreja. A morte coroa uma série de eventos que definem o perfil do cigano e têm o impacto de uma bala perdida. Não sabemos de onde vêm. Pois vêm desse texto certeiro, esse estopim de chumbo grosso, atirado com fina pontaria.

Os personagens desfilam como num filme. A avó gorda e com imensa cabeleira, ágil como uma gata e que sabia todas as lendas da Rússia de memória. O avô horrível, que o açoitava todas as semanas e que o ensinou a ler. A mãe ausente, que o deixou para trás, viúva que casou com um agiota e morreu de fome e desgosto. Os irmãos nascidos mortos. O mestre tintureiro cego, que era perseguido pelos tios e primos de Gorki, que deixavam os dedais em brasa para ele se queimar. O químico, que foi seu primeiro amigo e que acabou expulso pelo avô. A mãe do padrasto, que se vestia toda de verde e tinha, também, a cara e os dentes da mesma cor. E assim por diante.

Quando o livro parece ter esgotado sua capacidade de nos surpreender, algumas cenas sobre a adolescência do narrador nos trazem novos personagens, igualmente inesquecíveis. O filho do guarda-noturno do cemitério, que fazia parte de uma gang juvenil de ladrões, o filho espancado pela mãe alcoólatra quando não levava alguns copeques para casa, entre outros, empurram o leitor para a situação-limite do narrador, testemunha da morte da mãe (que o espancou no dia do desenlace) e da queda financeira de toda a família.

Em Minhas Universidades, a mulher gordíssima que faz sexo com a vítima, amarrada a uma mesa, de um ritual satânico num covil de mendigos; o mujique que teve partido o crânio com uma marretada e jaz na beira do Volga com os olhos virados para o céu; os estudantes bizarros que convivem com a miséria do povo e fazem parte dela; os intelectuais ágrafos que orientam o autor sobre a morte e a fome: tudo em Gorki tem a grandeza do humano e enche de vergonha a literatura atual, tão metida a vanguarda, tão intimista e tão oca, tão sem nada a dizer, tão anêmica e cheia de maneirismos.

Em poucas linhas, Gorki descreve sua tentativa de suicídio aos 19 anos, quando deu um tiro no coração e acertou o pulmão, tendo que pagar o mico de voltar ao trabalho um mês depois (um atentando que provocou nele a tuberculose; mais tarde, quase aos 70 anos, morreu de pneumonia). O que o salvou na juventude foi sua força física, já que ele mesmo era fruto da seleção natural promovida pela pobreza e o inverno russo. Condoído do jovem leitor de livros que tentara o suicídio, um revolucionário o leva para o interior do país e o engaja num projeto de preleção catequista aos camponeses. O tiro sai pela culatra, pois eles tentam eliminar os intermediários da produção de alimentos e acabam tendo que fugir da aldeia.

O grande ponto de inflexão na vida de Gorki foi conhecer um professor que prestou atenção no que ele realmente era e que soube relevar seu espírito rebelde de adolescente, concentrando-se no que o garoto tinha de mais significativo. Esse contato com um adulto que o entendeu profundamente mudou sua vida e redirecionou seu rumo. Não fosse esse cruzamento de duas personalidades, a alma indômita e o mestre prudente e sábio, não teríamos, talvez, o grande escritor que emergiu da Rússia profunda.

Em Ganhando meu pão, há o destaque para a relação entre o autor e os livros. Qual a Rússia reportada por Máximo Gorki nesse inesquecível rio de palavras? Aparentemente, é um país mergulhado na miséria e na barbárie. Rodeado por pessoas ágrafas, o adolescente Gorki, órfão e sem recursos, sobrevive à custa do seu esforço físico. O que o diferencia é a leitura de livros, que lê à luz de lampiões, apartado de todos, e às vezes compartilhando com operários e velhos exaustos. É tocante cada cena em que os autores russos, lidos pelo jovem autodidata (que foi encaminhado para os livros pelo cozinheiro de um navio que singrava o Volga), emocionam aquela humanidade brutalizada.

Às vezes, chegam a roubar um livro favorito do rapaz para escondê-lo numa gaveta fechada a chave. O que isso nos diz? Que a Rússia produzia uma literatura, no século 19, que se disseminava em rede por todo o tecido social, chegava até os confins da população de todas as formas, seja em sebos onde se alugavam livros, seja por meio de alguns leitores que liam para a coletividade. Por todo o trajeto de sua narrativa, Gorki esmiúça essa relação complicada entre o povo russo e sua própria literatura.

Trata-se de uma sucessão de comentários sobre livros e autores, o que cada um produziu e a referência que eles tinham entre comerciantes, camponeses, operários, entre o povo recém-saído da servidão e às voltas com a rudeza do tzarismo décadas antes da Revolução. Não tente detectar qualquer vestígio do chamado realismo socialista nessas palavras de Gorki. Ele as escreveu e publicou antes de 1917. Sua principal observação é que as pessoas reais não estavam reportadas na literatura que conhecia, não apenas estrangeira, mas nacional. Ele sabia do que estava falando. Convivia diretamente com o povo, fazia parte dele e era seu olho consciente.

Como pode ter saído, de tanta miséria, um escritor como Gorki? Ele mesmo responde. Diz que é importante escancarar as misérias do povo russo, que assim mesmo consegue se superar. Vindos de uma realidade rural, se aglomerando em vilas e cidades, a população criada nos ermos tinha a auto-suficência da sabedoria empírica, que despreza o que estava impresso, considerando-o fantasia. Tudo pode ser publicado, observou um dos personagens que conviveram com Gorki, portanto, não preste atenção nisso que você lê. Mas Gorki encontrava nessa relação com os livros o ambiente suportável para trabalhar suas perplexidades. O que mais o invocava era o sem sentido das vidas entregues à maldade. Considerava particularmente nojento o jeito como eram tratadas as mulheres.

Como a grande formadora do seu caráter foi a avó, paradigma de bondade e generosidade, e de alma caridosa e cheia de fé, Gorki se insurgia com a violência que se abatia sobre prostitutas, operárias, e até mulheres da nobreza. Era um mistério que os homens as tratassem daquele jeito, falando mal pelas costas, açoitando-as e, como aconteceu com sua própria mãe, levando pontapés do marido, padrasto de Gorki.

As pessoas não são boas nem más, são incompreensíveis no seu comportamento, segundo Gorki. Ele tenta decifrar o enigma compartilhando suas dúvidas para quem estiver perto. Ressente-se do deboche e das perguntas evasivas. Acha que todos escondem algo dele. Por isso insiste e cada personagem é crivado de perguntas até a exaustão. É uma pesquisa profunda que desenvolve sem as veleidades científicas, mas como literatura de primeira água, saindo dela enriquecido. Acumula sabedoria, ao mesmo tempo em que enche sua cabeça de mais dúvidas.

Gorki se engajou mais tarde no projeto cultural stalinista, pois esse era seu tempo e seu país. Mas sua literatura sobreviveu porque está resguardada de qualquer superficialidade ou artificialismo. Ele descreve o povo sem os equívocos de percepção que infletem sobre as pessoas miseráveis. Veio do ventre da velha Rússia, foi chibatado quando menino, recolhia lixo junto com outras crianças, como mostra a obra do cineasta Mark Donskoy nos anos 1930.

Hoje, vemos como a miséria é aproveitada pelo pensamento dito politicamente correto, em que a escassez é mostrada como exceção a um ambiente asséptico. A própria reportagem (com jornalistas engravatados) representa o mundo clean e justo dos bem-nascidos, enquanto a câmara foca as paredes roídas, os seres humanos carcomidos, as falas partidas, os rostos em pânico. Em Gorki, o narrador faz parte da paisagem, não está acima dela, é gerado nesse ninho. Não há escape na literatura monumental do gênio.

As universidades de Gorki são as pessoas. Nelas tenta decifrar os enigmas. Gente o invoca de todas as formas. Acha que estão escondendo algo, perdem o tempo e a vida em rotinas autodestrutivas. Por toda parte onde vá, ele é o homem que lê, que tem chance de se livrar daquelas amarras. É tratado com pena pelos seus contemporâneos, que vêem nele o maior desperdício da nação rota que a todos devora. Mas ele conseguiu se superar. Não graças à revolução, do qual foi também crítico quando achou necessário e da qual, dizem, talvez tenha sido uma das vítimas, pois teria sido eliminado por Stalin. Mas graças ao seu talento, que nos subjuga como um sol recém-nascido e nos leva para a grandeza da arte incomparável que é a literatura de quem sabe o que faz.

Tchecov, o mestre absoluto, quando lia Gorki, tinha vontade de dançar de alegria.

(*) Escritor e jornalista, autor de Outubro, No meio da rua, No mar, veremos (os três de poesia), Universo Baldio (romance) e O Refúgio do Príncipe (contos e crônicas), escreve às terças no Variedades e, aos domingos, na revista Donna do DC.