Nei Duclós
A cara refletida no espelho era grande, pipocada, grossa. Um bigode exagerado grudava-se às costeletas, algumas mechas caíam da cabeleira, as orelhas eram enormes e flácidas. Os olhos pretos tinham se tornado foscos, quase não se distinguiam naquela ramaria de linhas e pêlos.
O espetáculo do seu rosto, imóvel diante do espelho que cobria toda a parede, era apenas o primeiro plano de um vasto painel, formado pelo movimento da rua e da calçada em frente à sua barbearia. Sentado na cadeira gasta em vinte anos pelos fregueses que ele custou a conquistar — e que depois desapareceram - ele via, ao fundo daquela paisagem de vidro, os carros cruzarem, de maneira desigual, o espaço refletido. Pois, bem no meio, havia um a divisão que repartia a realidade em cascas diferentes do mesmo ovo.
No outro lado da rua, na calçada escondida pelos ônibus, automóveis e caminhões que passavam a toda velocidade, estavam os elementos novos do seu bairro: a lanchonete, onde operários e colegiais disputavam os poucos bancos para almoços rápidos ou refrigerantes; a boutique, que tinha substituído o açougue, exibindo, em vez de carnes e donas de casa angustiadas, as jovens senhoras que alugaram os apartamentos recém construídos; e também a padaria luminosa e sempre lotada, erguida há dois meses no terreno baldio do falecido coronel Beregaray, que no começo do século era dono da metade do bairro.
Desocupado compulsoriamente pelos novos hábitos, o barbeiro recusava-se a abandonar seu posto, antigo local de encontro dos companheiros de bermudas, chinelos e camiseta, que esticavam uma conversa no banco em frente à sua porta, nos dias de verão, ou que se aglomeravam dentro do estabelecimento com casacos e opiniões sobre futebol e política nos longos meses de inverno e chuva.
Naquele tempo - e não faz muito - era o encarregado de negócios espontâneos, como vender um revólver de estimação, cabo de ouro, ou automóveis antigos, entre aposentados excêntricos. Guardava também recados e chaves de senhores respeitáveis, para pedreiros que chegariam um pouco mais tarde, ou domésticas envolvidas em compras ou namoros demorados.
Era ele também que se ocupava - antes de surgir a banca da esquina - dos 20 exemplares do Correio do Povo vendidos religiosamente entre os mais tradicionais habitantes da rua. Na sua barbearia, havia uma valiosa coleção de exemplares antigos da revista O Cruzeiro, no tempo em que a política tinha graça e as pessoas famosas matavam por amor.
Agora, sentado no seu trono, usava o tempo para desvendar os mistérios dos novos habitantes - já que os antigos tinham se mudado, morrido ou simplesmente cortado relações. Observava os grupos adolescentes que atravessavam a rua para esperar o ônibus, tentando, todos os dias, fixar algum rosto para reconhecer no dia seguinte. Ou então apostava consigo mesmo se poderia acertar a hora em que Dona Laura, a nova dona do casarão, passava em direção ao escritório de advocacia na esquina.
Mas nada fazia sentido. Os adolescentes se pareciam, Dona Laura ficava meses sem mostrar as curvas (teria achado outro caminho?) e os velhos, esses não existiam mais. Talvez tivessem fabricado um asilo gigante, longe da cidade, onde eles eram alimentados com pirão de batata e antigas valsas em álbuns oportunamente reeditados.
Do vasto enigma, sobrava seu rosto e a cumplicidade do espelho que, assim mesmo, gostava de pregar suas peças, graças ao racha que o dividia em dois e fazia os automóveis e as pessoas desaparecerem para surgirem em planos diferentes. E também havia aquelas "rugas" no canto do vidro, que diluíam as imagens e obrigavam o barbeiro a desistir e voltar sua atenção para o ponto seguinte, para a velocidade incômoda da vida, que lhe atrapalhava a visão, os hábitos e o bolso.
Um dia, cansado da nova rotina, já que o movimento excessivo do seu "cinema" particular lhe enchia de perguntas em vez de lhe apresentar soluções, resolveu cochilar na cadeira. Para pessoas como ele, acostumadas ao trato dedicado com os fregueses, à tradição de bom relacionamento pessoal que existe nessas velhas profissões, cochilar era faltar o respeito consigo mesmo. Mas o sono repentino era a prova de que ele já se habituara ao vazio da sua vida nova, que lhe consumia o rosto e a vontade, obrigando-o a permanecer em estado de apatia permanente, jogado fora como um mendigo de praça.
Era uma tarde de sexta-feira e o vento norte enchia as ruas de uma névoa de poeira, sacudindo os eucaliptos dá avenida e levantando monotonamente as saias e os casacos dos passantes. Nada lhe obrigava a ficar acordado, a não ser suas dúvidas, que pesavam demais naquele início monótono de primavera. Longe de si mesmo, aprofundou-se no esquecimento, apesar do barulho da rua e da gritaria da natureza, aparvalhada com a mudança brusca da humanidade e das estações.
Súbito, um berro distante atrapalhou seu sonho formado por lentas procissões de casarios e velhos endomingados. Um ruído vinha como um alfinete gigante, perfurando o mundo, penetrando em seu corpo desmaiado e que aos poucos começou a sacudi-lo na cadeira. Pensou que fosse ele mesmo que estivesse gritando, pedindo pelo amor de Deus que o tempo voltasse, que o piano do cinema tocasse para trás para acompanhar as aventuras sonâmbulas de algum casal envolvido numa trágica e melosa história de desamor.
Abrindo os olhos, seu pensamento custou a acompanhar o que se passava na sua frente, refletido no espelho, bem acima de sua testa suada de susto: alguém, na calçada do outro lado tentava escapar de uma faca empunhada com fúria por um homem alto e musculoso, tão forte que não deixava nenhuma chance para o autor do berro e do seu despertar apressado.
Para seu desespero, o sinal, recém aberto, despejou um volume de carros que ocupou todo o espaço do espelho. Grudado na cadeira, ele ainda esperou alguns segundos para ver a continuação do seu pesadelo, como se o desfecho pudesse decifrar aquele momento confuso. No intervalo entre um ônibus e um carro, viu a faca sendo enterrada na barriga da vítima, que antes de tocar no chão foi encoberta por nova rajada de automóveis.
A cena custou a se manifestar com a transparência exigida pelo pavor da testemunha. Pelo efeito da rachadura, cada estocada avançava aos saltos, e tremia enquanto arrancava os berros da vítima, não reconhecível por também estar situada naquela fenda que encobria o crime. Era como se o filme, muito antigo, fosse interrompido pela incompetência da projeção, enchendo de impaciência os espectadores.
O barbeiro sentiu que suas mãos estavam grudadas na cadeira não pelo suor, mas pelo sangue que deveria estar chegando já na sarjeta da calçada em frente. Poderia ter visto o final do crime, mas como conseguiu se levantar, o rosto imenso cobriu o campo visual, lhe deixando novamente só, cara a cara consigo mesmo.
Essa visão, entretanto, já não lhe interessava mais. Seu rosto já não fazia mais sentido, apenas lhe atrapalhava o pânico e a curiosidade. Não queria mais ver seus olhos sem resposta, aquela confusão de pequenas cicatrizes e linhas disformes. Precisava descobrir o que se passava por trás da sua cabeça cansada e além da sua expressão de espanto. Por isso, voltou-se demoradamente para enxergar a vítima ensangüentada.
Foi seu único gesto de liberdade, o de virar-se para interromper uma vida vivida pelo avesso. De costas, abandonava ali o mundo repartido que refletia assassinatos. E deu um passo decidido para alguém que pedia socorro, enquanto pegava sua navalha no fundo da gaveta, para enfrentar o destino mal intencionado, que lhe pregava peças.
RETORNO - Este conto foi escrito há décadas, quando eu morava no bairro de Ipanema em Porto Alegre (anos 70). Uma cópia estava na mudança que trouxe de São Paulo. Publico pela primeira vez, com pequenos acertos em relação ao original.
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