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11 de dezembro de 2007

GUERRA TOTAL


Nei Duclós (*)

O Brasil sempre esteve em guerra. No início, havia a obrigação de todo senhor de engenho dispor, por lei, de determinado número de armas e munição, devidamente guardadas em depósito definido em suas dimensões exatas. Essa e outras informações, contidas no trabalho da historiadora Nanci Leonzo, da USP, sobre as Forças Armadas da América Colonial portuguesa, são pouco conhecidas, porque o livro jamais foi publicado devidamente, numa editora importante e com tiragem decente. Junto ao conflito permanente, foi construída, a ferro e fogo, a versão do país pacífico.

Um fato como o bombardeio da cidade de São Paulo por duas semanas, que colocou em fuga metade da população de 700 mil habitantes em julho de 1924, coincidiu com a polêmica de que nunca houve bombardeio. Os livros da época reproduzem esse debate, totalmente absurdo diante das evidências do canhoneio e da metralha. Esconder batalhas e mortandades e só se referir a elas como acontecimentos isolados serve a vários interesses inconfessáveis.

Mas o assunto guerra está, aos poucos, saindo do amadorismo e dos limites do memorialismo, para alcançar status de ciência, graças às pesquisas e o fim das resistências em reconhecer que somos um país como os outros. Se você juntar Pernambuco em 1817, Cabanagem e Farrapos em 1835, Paraguai em 1865, Federalista em 1893, Canudos em 1898, Chibata em 1910, Contestado em 1912, Copacabana em 1922, as guerras de 1923, 1924 e a Coluna Prestes na agonia da República Velha, a Revolução de 1930, a Paulista de 32, a Intentona em 35 e somar os atuais índices de violência urbana e rural, chegaremos à assombrosa conclusão que adoramos nos tirotear sem descanso.

No início da República, os acordos existentes vieram por água abaixo com a expulsão do Imperador. O resultado foi a guerra total. É comum colocar a chamada Revolução Federalista de 1893 como o embate entre dois campos bem específicos, os pica-paus e os maragatos. Mas a trama é bem mais complexa. Num conflito que tinha como um dos seus slogans “Não damos nem pedimos quartel”, a mortandade, até hoje pouco dimensionada, se alastrou pelo país, já que todo o território nacional esteve conflagrado.

No filme “O mundo secreto das palavras” (2005), de Isabel Coixet, a refugiada Hanna, interpretada por Sarah Polley, conta como foi torturada pelos soldados sérvios, povo ao qual pertencia. Os Bálcãs, depois do esfacelamento da Iugoslávia, mostraram o que acontece quando um acordo político e social, ao ser rompido, explode em carnificina generalizada. E não era apenas por motivos étnicos ou posições políticas. Uma vez, na televisão, vi um oficial de um país africano denunciando que as pessoas saqueavam sem inspiração alguma de ideologia ou raça, era apenas a barbárie se manifestando.

É importante estudar a guerra no Brasil. Dizer que nos libertamos de Portugal de forma incruenta, por exemplo, é se render à versão do diplomata Oliveira Lima, veiculada no final do século 19. A versão fazia parte dos negócios de estado. Mas a verdade é que de 1821 a 1823 o Brasil lutou para se separar, com batalhas no Nordeste com mais de 400 mortos, segundo o historiador José Honório Rodrigues.

Mergulhar na guerra serve para revelar as feridas ainda abertas, redimensionar o papel do heroísmo, e lançar alguma luz na surrada identidade nacional.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 11 de dezembro de 2007, no caderno Variedades do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Sarah Polley e Tim Robbins em "The secret life of the words". O exemplo citado vale, pois a personagem fala da guerra total nos Balcãs. Mas o filme peca por algumas impropriedades do roteiro. Por que deixar o cara moribundo na plaforma de petróleo em vez de levá-lo imediatamente para o hospital, como no final, acontece? Esse tipo de barra forçada irrita. Deixaram o cara lá para se encontrar com a refugiada de guerra, é isso. Só que a situação não cola.

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