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12 de agosto de 2006

O POETA ABSOLUTO





Pela mão do soneto, Bruno Tolentino leva a poesia brasileira contemporânea ao esplendor em A Imitação do Amanhecer .(Resenha publicada neste sábado, 12 de agosto de 2006, no caderno Cultura, do Diário Catarinense).

Nei Duclós

O melhor poeta do Brasil contemporâneo são três: Ferreira Gullar, Mario Chamie e Bruno Tolentino. Suas obras possuem o mais precioso instrumento da língua: a espiral iluminada e infinita em torno da criação, que semeia e deveria alimentar a produção literária do nosso tempo. Escrever, hoje, passa, obrigatoriamente, pela senda aberta por eles na selva escura da dúvida e do horror, caminho que redime a nação sufocada pelo ruído e a decadência. Gullar, pelo mergulho crítico na vanguarda a partir dos anos 1950; Chamie, pela construção de uma poderosa arquitetura da linguagem, fonte do avanço que nos liberta de múltiplas amarras; e Bruno Tolentino, por gerar um renascimento a partir da mimesis dos clássicos, tanto no seu monumento, O Mundo como Idéia (Globo, 2004), quanto no seu mais recente lançamento, A Imitação do Amanhecer (Globo, 328 páginas), conjunto de 538 sonetos onde a filosofia, a história e a poesia se completam para recompor a essencial armadilha do instante, a eternidade.

Todos os três possuem a maldição de ficar à sombra, apesar da notoriedade. Não são autores de versos sorridentes, de que nos falava Torquato Neto. Jogam pesado, no melhor dos sentidos. Tanto o Poema Sujo de Gullar, a Lavra lavra, de Chamie, quanto a desconhecida e polêmica poesia de Tolentino compartilham uma espécie de esquecimento no país martirizado pela indiferença, a ditadura e a ignorância. Bruno é o exemplo maior desse exílio. Inconformado com a destruição do Brasil, ele voltou de longa temporada na Europa (para onde foi depois de se destacar, em 1960, como brilhante autor estreante) com o verbo solto e caiu no redemoinho de infâmias soprado pelo vendaval ideológico, cultural e político. Foi acusado de retrógrado, direitista, megalômano e, para intensificar sua indignação, tornou-se pessoalmente insuportável, pelo menos para seus adversários. Mas nada disso tem importância diante do que ele nos apresenta agora, este livro soberbo, que precisa não apenas ser lido e relido, mas estudado, compreendido, letra a letra, sob pena de ficarmos alheios ao resultado supremo gerado pelo talento.

Como um só poema sinfônico em três movimentos, A Imitação do Amanhecer parte do encontro de um par de amantes em Alexandria, ponto nodal da cruz Oriente-Ocidente, e se derrama sobre o mistério que a memória apascenta como pastora de um caos temporal. Seria injusto, pela perfeição da obra, que não admite tropeços, destacar versos, partilhá-los como se estivéssemos numa vitrine a expor uma caixa de ressonâncias ocultas. Tudo é claro, equilibrado e profundo no desdobramento dessa perseguição que o autor comete diante da sua presa. O poeta são as mãos do gato a enovelar-se no sem-fim, e seu pulo, apesar de previsível (por ser anunciado por ele mesmo), salta sempre sobre o abismo. Mesmo correndo o risco dessa imperdoável injustiça, podemos iluminar, como um spot no palco nu, algo que ele nos traz:

"Existe sempre, estátua a estátua, nesse amor, como um exílio incontentado que alucina a boca seca e vai secando, como a cor desabrigada, o lado agreste da colina. Lado lunar do sol que tudo contamina com a iridiscência, o fogo-fátuo do esplendor sem sombra, sem depois nem antes, sem supor a seqüência do grão, a esmola peregrina que há de morrer para doar. Esse prazer, dom do beijo de estátua, euforia do mármore e capitel da dissonância que há no ser, atem-se à alma apenas, desdenha ser a árvore e, lenha ainda, acende só por acender, Alexandria, a imitação do amanhecer".

Essa falsa alvorada, que existe por força da vontade humana, tanto no gesto quanto na voz que o escala, que o aborda sem jamais desistir de tentar decifrar (ou pelo menos sugerir) o mistério, é a liga de uma poesia que presta tributo ao clássico, mas não se omite ao lidar com as ruínas do discurso.

Bruno Tolentino se assume carioca e gruda, assim, sua origem e identidade ao estro canônico, de origem camoniana, crestado pelas lições de mestres como Borges, Pessoa, Machado de Assis (entre muitos outros), e abraçado à erudição da melhor poesia inglesa e dos parâmetros filosóficos e literários da Grécia antiga. Uma resenha, não só pelo espaço exíguo, mas pela natureza frágil de ser escrita logo após a leitura, é apenas um aceno na noite estelar de tão portentosa poesia. O que encanta é que Bruno Tolentino não optou pela palavra avara nem sucumbiu às enchentes da leitura fácil. Ele temperou o aço do verbo na sua forja, que é mistura de número e cristal, e que tem de fluido apenas os trajetos da luz, da alvorada ao ocaso e, principalmente, essa chama inventada pela exata noção do desaparecimento humano, fonte de sua perenidade.

Esgrimindo, com elegância, o equilíbrio entre o rigor e a ambição poética desmedida, Bruno se sai bem da batalha e exibe o design ao mesmo tempo limpo e ardente de um especialista. "Abandonei Alexandria e a vida toda ela me andou buscando, convidando-me à boda de um par indistinguível perpetuando o enlace em que às vezes eu via, vislumbrava uma face, um gesto, e, de repente, como a cabeça roda, não via nada, ou via a desaparição, o impasse..." No fundo, todo livro é um jogo de sedução. Você é arrancado do seu lugar confortável, em que as coisas estão no lugar, distribuídas mais pelo desconhecimento e a preguiça do que pelo esforço, e é jogado no vórtice de uma paixão sem limites, que tanto pode ser o verso urdido pelo gênio, a metáfora que se desfaz no momento em que é enunciada, e a evocação de um espírito livre que se recusa a morrer.

Muito mais pode ser dito dessa viagem sem fim nem volta que começa pedindo para o leitor reparar "como crescem espigas entre escombros humanos", e termina com a constatação de que "se algo perdeu-se foi como o grão, entre a seara e a colheita". Mas o que deve ser destacado é que este é um divisor de águas. Ficou impossível ignorar Bruno Tolentino e sua obra, que se espalha por outros livros além dos citados. Se alguém usá-lo como medalha para exibir cultura, ou como penduricalho ideológico, releve. Insuportável não é o poeta, mas o que se faz com sua obra atualmente. Para virar essa maré, só partindo do porto de Alexandria como Odisseu em busca do sagrado. Pois se o Belo foi deixado de lado pela sordidez do mundo transformado em mercadoria, A Imitação do Amanhecer prova que ele continua vivo e pronto para o bote. Era preciso que um poeta viesse resgatá-lo, raptando a alma como um souvenir e voando pela janela como um pássaro de luz.

RETORNO - Marco Celso Huffel Viola, o Grande Poeta Oculto, mostra definitivamente a cara com sua nova editora Alegoria. Está lançando seis livros de poetas como Affonso Romano Santana, Adelia Prado e Arnaldo Antunes. Um dos livros é do próprio Celso, Viver a paixão de cada passo. Celso agita o mundo cultural com seu talento, sua radicalidade, seu fôlego e sua ética.

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