Páginas

14 de agosto de 2006

LUZ DE INVERNO





No terminal do Centro da cidade, o assunto brandido por pessoas escandalizadas é o esforço permanente dos furadores da fila. Para alguns, ficar atrás de alguém e esperar sua vez é um ato de humilhação suprema. A pressa e a esperteza possuem álibis perfeitos para dar razão aos que atropelam os que se postam numa ordem lógica, agarrados ao que resta de consenso. Todos estão no mesmo barco, remoendo a impaciência e suspirando a expectativa de chegar logo em casa. Quem não se submete ao ritual, forjado pelo mau planejamento, se acha no direito de não obedecer. E os que sofrem com a transgressão alheia soltam o verbo, enquanto rugem os motores e a fumaça sufoca o ar gelado do Inverno tardio.

Voltar do trabalho se transforma assim num pesadelo, como se vivêssemos numa megalópole. Há uma capacidade extrema de experimentar o caos. Onde quer que exista um aglomerado de pessoas convivendo no país continente, o óbvio expõe suas vísceras. O noticiário é uma procissão de erros cometidos pela nação que perdeu seu rumo. Há uma exaustão, fruto da certeza de que não temos condições de resolver problemas básicos. Estamos tão desunidos que até mesmo um gesto de boa vontade acaba sendo engolido pela espiral da infâmia. As exceções são gotas no oceano. Sobra espaço para a demagogia bem remunerada.

Mesmo a indignação se volta contra nós. Nada mais desconfortável do que uma pessoa xingando a situação em que todos são responsáveis, pela omissão, pela truculência ou pela falta de canais adequados para se levar uma reivindicação a bom termo. Fazemos aquela cara que olha intensamente o vazio enquanto o próximo se esgoela. Sim, concordamos que a razão está do nosso lado, mas o que fazer com a razão se o absurdo plantou raízes em todas as manifestações da vida? Queixar-se é algo mal visto, pois a reclamação acaba se somando às dores de cabeça que precisamos enfrentar. Ficar calado, que tudo isso passa, pelo menos até chegarmos ao destino, é a opção mais evidente, e aparentemente razoável.

Mas o círculo se fecha no Inverno que pressiona a cidadania contra o muro. Num relance, vejo os rostos transidos de frio, enrolados em mantas, com o olhar duro. Estamos exilados das promessas de Verão, e das amenidades da meia estação. A luz que chega pela manhã dourando pássaros sob o céu azul, com cheiro de casca de laranja, não se sustenta até o final do dia. Há um ocaso de temores no trânsito cada vez mais denso. O noticiário espalha os sons na varanda. Montamos uma rede de promessas, porque o dia seguinte estará nos aguardando com sua dança.

Também procuro alguma coisa nas primeiras notícias antes da chegada do sol. Vejo pessoas bem postas, com suas roupas graves, seus rostos de pedra, sua dicção oblíqua, falando de problemas que parecem pertencer a um outro planeta. O recorrente desse conteúdo são leis que se confundem e depois se negam, são vontades nunca resolvidas. Nos livros, mergulho em textos impressionantes de talentos que jamais dão as caras na televisão. Por que há esta compulsão de mostrar sempre as mesmas figuras, enquanto a grossa lava da nossa inteligência queima as entranhas da nação silenciosa?

Nas programações noturnas e milionárias, ou mesmo nos fins de semana, é raro encontrar um programa cultural visitando a sala das famílias. Há gente demais dançando, tanto na ficção quanto nos palcos diante de auditórios em febre. Por que dançam de maneira tão intensa, sempre da mesma forma, a transbordar quadris e rostos de risos programados? Por que há tantas perguntas sem importância para respostas que nada nos dizem? Por que perdemos tempo, se o país fabricante da ruína pede socorro? Desconheço os motivos. Talvez seja esse silêncio, talvez esse Inverno que é véspera de voto, talvez aguardemos o Verão com sua grandeza.

Seria uma injustiça ao Inverno depositar nele toda nossa dor. Por isso lembro as manhãs de nevoeiro e geada, quando, à espera do sol, resgatamos o amor que salva, o sonho que jamais nos abandona e a força que carregamos não como um fardo, mas como sopro sobre a vela desta viagem que é pura convocação da divindade. Talvez, calados, aguardemos um milagre. Mas não será a palavra, habitada e livre, que irá nos redimir antes que seja tarde?

RETORNO - 1. Imagem de hoje: "Paisagem", de Ricky Bols. Artista da pesada, Ricky Bols tem blog de primeira. 2. A crônica acima foi publicada no caderno Donna DC, do Diário Catarinense, em 13 de agosto de 2006.

Nenhum comentário:

Postar um comentário