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30 de julho de 2006

À SOMBRA DE GETÚLIO

Diário da Fonte



Há coisas melhores a fazer neste inverno que enfim se instalou entre nós. Ficar embaixo das cobertas ou tomar sol no quintal, quando há quintal. E deixar um pouco para lá não apenas o micro, mas o que ele nos traz de bizarro. Como, por exemplo, a declaração de Lula sobre o Getúlio Vargas. De que ele, atual presidente, só fez menos pelos pobres do que o grande estadista (Lula assim finge que dá crédito ao trabalhismo, só para tungar os votos getulistas). A diferença é brutal e por isso, com os dedos enregelados, estou aqui para dar o troco, dentro da minha limitação de cidadão trabalhista irado. Esse negócio de que Getúlio era pai dos pobres é invencionice da direita: do imperialismo (que jamais aceitou o Brasil soberano), do entreguismo (que levou surras sucessivas nas urnas até apelar para o golpe de estado em 64) e dos falsos acadêmicos, que inventaram o populismo varguista para que o poder (o dinheiro) caísse no colo deles, via FHC e Lula. O que tem de acadêmico que encheu os bolsos de grana de maneira vil a partir da tese do populismo varguista não está no gibi. Getúlio nunca fez nada pelos pobres. Fez pelos trabalhadores, o que é outra coisa. Subsidiou empregos reais por meio do subsídio às indústrias, já que não havia parque industrial de fato antes dele. E abriu empregos por meio das instituições do Brasil soberano, como a limpeza pública, o sistema de saúde, a malha ferroviária, que no seu governo teve grande incremento.

CANALHA - Getúlio não fazia caridade para manter-se no poder. Ele agia na base, na infra-estrutura da nação. Os empregos vinham por efeito de sua visão de estadista. Seus adversários, que o derrubaram em 1945, forçaram seu suicídio em 1954 e finalmente se instalaram no poder em 1964 (e de lá ainda não saíram), é que inventaram a bobagem de que ele ficava dando esmola para pobre, só aparecer como o paizão. Isso é o que disseram dele e por que disseram? Simples, porque eles, os adversários de Getúlio, é que são assim; eles apenas projetaram em outra pessoa o que trazem dentro de si. O populismo é uma invenção da direita. Esse negócio de comprar voto com óculos e cesta básica, de inventar programa social só para desviar recursos públicos, tudo isso vemos por todo o canto no país retaliado em grotões e dominado pela casta de sempre, agora incrementada com essa canalha que se grudou no poder público para fazer o que a mídia não cansa de denunciar.

RASTEIRA - Lula é a representação dessa contrafação, dessa rasteira conceitual no trabalhismo: nasceu e se criou politicamente à sombra de Getúlio (que foi erradicado do país pela direita), para negá-lo, trair (insuflado pela estratégia entreguista)seus sucessores legítimos, empalmar o poder e agora tentar ludibriar o voto clonando sua memória. Na época de Getúlio, o povo brasileiro tinha dignidade, tinha chances de educação e emprego de verdade. Vejam quanta coincidência: a maioria dos grandes gênios brasileiros são da Era Vargas. Façam o balanço. Hoje, descobrem os especialistas tardiamente, de cada dez empregos, nove são de passeadores de cachorro, os tais subempregos. Essa é a obra das atuais personalidades públicas, que toda vez que abrem a boca nos fazem lembrar Tarso de Castro: "dá vontade de pedir a cidadania de cachorro paraguaio".

FERROVIA - O cidadão trabalhava na ferrovia por toda a vida. Depois se aposentava e morria dignamente. Sofria dificuldades, como sempre, nesta vida em eterno conflito. Mas não era obrigado a enfrentar a polícia para vender porcarias chinesas no farol, como hoje. O governo atual, que eliminou as últimas chances de uma vida mais ou menos viável ao escancarar (em troca de esmolinhas pífias de programetes populistas) as pernas da nação para a linha dura chinesa, que hoje não apenas inunda o mercado de quinquilharias, como ainda fornece insumo para o que resta das nossas indústrias, é o exemplo da tal política internacional do governo petista. E ainda vem esse traidor falar em Getúlio Vargas, bem no momento que libera alguma bufunfa para o estado que ele ignorou durante todo o seu mandato, que, esperamos será o último da sua vida.

EXAUSTÃO - Morrem de ódio e inveja do presidente Vargas, jamais esquecido, que mora no coração do povo, não por ter sido populista, não por tê-lo enganado, mas porque o incluía na sua política pública de soberania. Tanto falei essas coisas aqui no DF que chego a ficar exausto da repetição. Mas o noticiário apenas confirma o que este espaço de jornalismo autoral disse com todas as letras todos esses anos. É sempre bom cobrar a conta e dizer: não falei? Aí está o cara que sempre atacou o trabalhismo com esse gesto demagógico de ir lá no Rio Grande do Sul mentir sobre Vargas. Arre, égua.

RETORNO - 1. Faço parte, com muita honra, da Academia Uruguaianense de Letras -AUL, agora reativada. Recebo o balanço da primeira reunião: "Na quinta-feira, dia 27 de julho, às 18h, na Secretaria Municipal de Cultura, Juventude e Esportes, localizada na rua Tiradentes 2801, foi realizada a primeira reunião com integrantes da Academia Uruguaianense de Letras (AUL). Na oportunidade, por consenso, foi escolhida a Diretoria Provisória da AUL, que ficou assim composta: Presidente ? Vera Ione Molina Silva, 1º. Vice-presidente ? Colmar Duarte, 2º. Vice-presidente ? Daniel Fanti, e Secretário-Geral ? Ricardo Peró Job. Também, participaram da reunião os acadêmicos: Gelsa Soares Verdum, Fernando Pereira da Silva, Carlos Fonttes, Rubens Montardo Junior e Rafael Ovídio Gomes da Costa."

2. Miguel Duclós envia nova mala direta sobre atualizações no site Consciencia: "Informo a todos que adicionamos à Biblioteca do Site um ebook: "Aristóteles - A Constituição de Atenas". Texto único do estagirita, pois não faz parte do Corpus Aristotelicum. É um texto perdido que foi descoberto somente em 1890 por um missionário americano em um antigo papiro no Egito. Sua autenticidade tem sido objeto de controvérsias - alguns comentadores consideram que se trata de trabalho de um dos estudantes do Liceu, e não do mestre. De qualquer forma, trata-se de uma fonte inestimável para todos os que se interessam pela história e cultura da Grécia Antiga e de Atenas no período clássico - o farol do universo. Neste texto consta a explanação de vários costumes e leis gregas, bem como um levantamento de suas origens até a época em que foi redigido.Disponível na Biblioteca do site a primeira tradução brasileira para a obra, com uma atualização ortográfica do português".

28 de julho de 2006

NÃO HÁ LIMITES PARA A CARA DE PAU






Vi ontem a Condoleezza Rice sentadinha ao piano tocando algo muito triste de Brahms em homenagem aos mortos da Guerra do Líbano. Sinal de que a direita nos impõe um outro tipo de reação, pois não adianta mais a emoção, a indignação e a arte para denunciar a barbárie. Eles também usam isso e com vantagens, pois estão no centro do palco. É preciso algo mais. Política, talvez. Mas aí você se entrega à arena onde eles dominam. O fato é que a cara de pau tomou conta do mundo e parece não haver remédio.

ARTIGALHÃO - Li dias atrás o Jarbas Passarinho fazendo o balanço de um século no seu artigo da página 2 do Estado de São Paulo, lamentando a atual situação do país, que no fundo foi gerada por ele (e seus comparsas do golpe de 64) ao sucatear a educação brasileira destruindo o Primário, que nos alfabetizava de fato (hoje, 53% dos alunos da quarta série do Primeiro Grau não sabem ler e escrever), o Ginásio, que nos ensinava línguas, álgebra e alta literatura, o cientifico, que nos preparava para a matemática superior, os fundamentos da física e da biologia. Colocou no lugar essa coisa amorfa de Graus sem nenhum rito de passagem, ou seja, aparentemente sem conflitos. Você tinha que enfrentar a barra logo na quinta série: o exame de admissão ao ginásio. Hoje se passa todo mundo por decreto. Ginásio e científico se misturaram, ou seja, não existem mais. Ficaram algumas matérias, mas sem a profundidade com que eram ensinadas. Se você reprovava numa das 11 matérias, repetia todas. Quem não queria estudar saía ou era expulso. Não tinha colher de chá.

DESESPERANÇA - E temos a televisão. Ontem, o Domingos Meirelles apresentou uma reportagem sobre o massacre da Candelária, abordando o assunto como se fosse um fato em si, sem nenhuma ligação com a situação brasileira, como se fosse um acerto de contas entre policiais e menores, e não um episódio da militarização da sociedade implantada em 1964, da impunidade da ditadura civil, consolidada em 1985, da escalada da violência e da destruição do sistema de segurança, do qual o PCC é um dos resultados. Foi algo muito específico, claro. Assim fica mais fácil dar o recado no final do programa: deposite uma grana no Criança Esperança. O problema não é de caridade ou bons sentimentos, é de políticas públicas, de estratégias nacionais, de engajamento sério das lideranças, de programas efetivos de distribuição de renda, que atinja o coração do sistema econômico e não apenas sua periferia. Mas é assim: ficou assustado? Ligue, que a Globo saberá o que fazer com seu dinheiro, ou melhor, com a sua culpa ou o seu pânico.

ROTEIRO - No meu artigo sobre os roteiristas, não tinha citado o Charlie Kaufman, dos filmes Quero ser John Malkovitch e Adaptação. O primeiro eu já tinha visto e achei bizarro e uma celebração do ego desse ator asqueroso que é o Malkovitch (aquele ar esnobe, aquela boquinha túmida, aquelas frases ditas em tom de duquesa para mordomo). Mas o roteiro é criativo e até mesmo espantoso. Mas o segundo é absolutamente primoroso, pois, serpente que morde a própria cauda (imagem usada pelo próprio Kaufman), é um filme sobre roteiros e roteiristas. O próprio se divide em dois, gêmeos. Um quer fazer algo forte e importante, como os roteiros que citei no meu artigo. O outro usa uma série de clichês. O artista dividido entre a arte e o comércio se envolve numa barra pesada, no fundo fruto de sua própria rendição ao sistema. Foi-se o tempo do trabalho autoral, em que Fellini e Bergman nos deslumbravam com suas obras-primas. Agora estamos no meio do tiroteio, ao som de Brahms tocado pelos próprios algozes que decidiram tacar fogo no mundo.

DESCONFORTO - O problema é que o mundo oferece muito conforto. É muita tecnologia e alimento à disposição de quem tem alguma renda fixa. É muito acesso à cultura e à informação, basta você querer. Então ficamos sós, achando que estamos sendo acompanhados. Ninguém liga para ninguém. Não há interesse em prestar atenção nos seus pares, saber o que os outros estão fazendo. Atualmente, estou lendo um livro de poesia que é um assombro e sobre o qual farei uma resenha. É um livro poderoso, que alguns seres desumanos da direita estão usando como penduricalho, como troféu, sem ler, claro. Para ler é preciso concentração, determinação, pesquisa. Esforço árduo que o mundo de hoje, com todo o seu conforto para as minorias, não permite, por meio da política suja, da escalada da direita, do terror crescente. Como assim, destruir pessoas pacíficas no Líbano? Tudo vai ficar por isso mesmo? Deixem Brahms fora disso.

RETORNO - Imagem de hoje: Merryl Streep em cena de "Adaptação", roteirizado por Charlie Kaufman e dirigido por Spike Jonze, que tem ainda no elenco Nicolas Cage (sempre ele) e Chris Cooper, que ganhou um Oscar de melhor ator coadjuvante com este filme.

26 de julho de 2006

PRIMEIROS PASSOS DA NOVA VIAGEM





Nei Duclós

Estes três poemas inauguram meu livro ainda inédito, Partimos de Manhã , que é dividido em três capítulos: Liberdade, resgate da viagem inaugural de um sonho compartilhado; Terra, a busca da identidade temporariamente perdida; e Paz, um canto em homenagem ao sacrifício da boa vontade em confronto com a barbárie. O livro foi enviado, a pedido, para uma editora e aguarda a decisão há mais de um ano.

PARTIMOS DE MANHÃ

Partimos de manhã
quando a lua, sol
noturno, jogava sal
sobre a neblina

O passo trazia
a luz pelo punho
A surda cidade
recompunha-se

A rua recolhia
o lixo da fuga
A ponte puxava
a dor para o abismo

O lábio da bruma
espumava na mansa
loucura. A estrada
prometia o rumo

O frio tocava sino
O sangue emboscava
o medo. A infância
fazia um filho

O susto virava sorte
O destino abria um túnel
A mochila dava adeus
ao exílio

LETRA

Talvez
escrevendo
alguma coisa amanheça

Talvez
o poema
desperte o pássaro

Talvez
a palavra
te incendeie

Talvez
a sílaba
grite

Talvez
a letra
crua

Talvez
soletrando
amor
a noite se despeça

NA MADRUGADA

No primeiro vento
o tempo cobriu
o espelho

O raio comeu
a cama do som
noturno

O mistério calou
teu corpo ainda
úmido

O amor gelou
a parte mais funda
do forro

Ouvimos um baque
no escuro. Uma estrela
pediu socorro

RETORNO - 1. A edição de hoje reproduz minha colaboração semanal no espaço Literário do Comunique-se. Ela recebeu o seguinte comentário de Urariano Mota: "Chego primeiro, mas não sou nem serei o único. Letra é um poema que vou copiar e transmitir como se fosse escrito por mim. É como um princípio de fé na literatura. Não é bem como se fosse. É mesmo um princípio de prática e fé. Aquela fé religiosa, que perdemos, e que substituímos pelo amor à literatura". Na edição da semana passada, publiquei três poemas sobre poesia (Um poema por ano, Idade da pólvora e Limpar o poema). O importante ensaista e escritor de primeira água, Luís Antônio Giron, também editor da revista Época, disse o seguinte no espaço dos comentários: "Estava com saudades dos poemas sintéticos de Nei Duclós, que leio desde os anos 70. Para mim são letras de músicas cujo compositor ainda está para existir. Estes metapoemas calam fundo em quem vive para escrever e escreve para viver, como nós, jornalistas, companheiros e inimigos na vitória e na falência".2. A imagem de hoje é um clássico por-de-sol de Anderson Petroceli.

25 de julho de 2006

A REVOLUÇÃO DOS ROTEIRISTAS


Há uma reação cada vez mais intensa contra a babaquice da chamada indústria do entretenimento, braço ideológico da era Bush. A idiotia reinante é a retaliação ao que de melhor se fez nas décadas anteriores. Veio em forma de roteiros robôs, clonados e multiplicados ao infinito. E da destruição do trabalho autoral dos cineastas, que hoje são apenas funcionários de megaproduções (pessoas como Roman Polanski e Woody Allen são exceções; mesmo que o primeiro também faça parte de altos esquemas, ainda consegue imprimir sua marca neles). Todos hoje podem adivinhar o desdobramento de um filme a partir dos seus momentos iniciais, mas isso não goza mais da mesma impunidade de anos atrás.

Não que Hollywood volte aos tempos em que contratava escritores de verdade para roteirizar seus filmes em série, como Faulkner, Brecht, John Fante (que jamais ficavam satisfeitos com o resultado). Hoje o roteirista é um free-lance, que usa um esquema fatal para concretizar seu trabalho: envia o roteiro para os atores consagrados, e também diretores com passado autoral, que caem como loucos nas boas histórias, especialmente as que fogem da padronização e da celebração dos crimes do Império. Mas há um perigo: não se pode dar bandeira, fazer oposição descarada, já que cinema sempre foi uma atividade estratégica, monitorada pelo macartismo vencedor.

Então se fazem grandes roteiros, que geram filmes importantes, mas o making off acaba jogando areia nos olhos de todo mundo, pois é importante preservar o espírito americaninho de ser, não dar sopa diante das ameaças da criminalidade imperial. No máximo, esse tipo de filme, que tem exemplos notórios especialmente de 2002 para cá, faz denúncias pesadas às pressões que a cidadania não consegue mais suportar. O contraponto é apostar na imagem original do estado americano, capaz de gerar justiça, o que às vezes produz um happy end (precário, mas feliz).

Syriana é o exemplo mais forte. Roteirizado e dirigido por Stephen Gaghan, encheu-se de astros que imploraram uma ponta. Atores famosos como Matt Damon e George Clooney dizem que a grande estrela do filme é exatamente o roteiro. É uma denúncia grave sobre os interesses e ações americanas no Oriente Médio, já comentado aqui no DF. O álibi, no caso, foi usar as memórias de um ex-agente da CIA, o que deixa tudo em casa, pois a denúncia viria do ventre do monstro. Mas é incontestável que o filme expressa o que a oposição do país pensa sobre os conflitos que hoje destroem o Líbano e o Iraque, entre outros resultados. É, como disse no meu artigo, o petróleo segundo a CIA, mas é também uma forma de dizer não ao horror imposto pela corrupção e o poder de fogo.

O Senhor das Armas, com Nicholas Cage, e roteiro de Andrew Nicol, é uma comédia sinistra e irônica, com os dois pés no drama, que aponta os responsáveis pela matança em todo o mundo: os países membros do Conselho de Segurança da ONU. Antes que se diga que isso faz parte da tradição da América, denunciar os excessos do Império, parece que há algo de novo no ar: uma exaustão da exterminação em massa, que extrapola a revisita às histórias da Segunda Guerra. Começou por aí, pelo que os alemães fizeram, mas agora chega ao centro do horror, colocando a responsabilidade nas mãos deles mesmos, os arautos da democracia e da retidão de caráter.

Quem vê e ouve Condoleeza Rice, com seus olhos de abutre, suas maçãs salientes no rosto (o que lhe dá o ar de uma bruxa niquelada) dizer que a atual guerra do Líbano são as dores do parto de um novo Oriente Médio, sabe que ela tem uma visão bem distorcida do que seja um parto. No lugar de gerar vida, promove a morte. Condoleeza é o ápice do cidadão que manipula tudo a seu favor, como fica explícito no filme Fora de Controle, roteirizado por Chap Taylor e Michael Tolkin. A imoralidade profissional, a ansiedade, o medo de perder status, a pressa e o egoismo fazem a festa no país sanguinário, que resolveu tacar fogo no mundo.

Há ainda refilmagens como Sob o Domínio do Mal (com Denzel Washington e a maior atriz do mundo hoje, Merryl Streep, em performance magistral como a senadora/Jocasta), que clonou o clássico de 1962 de John Frankenheimer, ambos feitos a partir de uma livro de Richard Condon. O novo, de 2004, foi roteirizado por Daniel Pyne e Dean Georgaris e livra a cara dos soldados no Iraque, mas não deixa de denunciar a guerra. É sobre o uso do subconsciente das pessoas para impor um estado de terror na América e no resto dos países. Coisa que já aconteceu, com o títere que governa a mando dos traficantes de armas, dos donos do petróleo e de seus aliados nas elites asquerosas dos últimos mundos.

O cinema americano está vivo, apesar de tudo. É possível encontrar nas locadoras filmes desafiadores. Mesmo exibindo a bandeira estrelada em quase todas as cenas (parece que é obrigatório), nos faz ter alguma esperança. Talvez estejamos todos fartos dessa guerra sem fim. Talvez o atual presidente caia por seus erros e que o próximo seja alguém gerado no coração desse movimento de libertação das velhas fórmulas. Isso lá é possível? Sempre que a esperança dá um aceno, precisamos responder. Alô, esperança, você diz alô e eu não digo adeus. Cante comigo.

RETORNO - Imagem principal: Frank Sinatra e Lawrence Harvey no clássico de 1962, The Mandchurian candidate (Sob o domínio do mal). As contradições da América sob a paranóia total geram filmes poderosos, mesmo que mantenham ligações profundas com o Império anti-cidadania. Nas imagens menores, Damon e Clooney em "Syriana", Nicholas Cage em "O Senhor das Armas", Ben Affleck e Samuel L. Jackson em "Fora de Controle" e Merryl Streep em "Sob o domínio do mal" .

24 de julho de 2006

GUARNIERI: A VERDADE PROFUNDA




Eva Wilma disse uma frase fundamental no enterro de Gianfrancesco Guarnieri, que se foi no sábado: "O mais importante é que ele amava o Brasil, amava o povo". Disse isso fazendo uma expressão que interpreto como exaustão de ter de lembrar algo tão óbvio, mas que se torna quase inédito (e desconfortável) na atual fase da vida nacional. Disse com uma gravidade reveladora da nossa orfandade, pois verdade tão profunda já nos escapa, nós que abrimos mão do Brasil soberano. No funeral do grande dramaturgo, coluna mestra da insurreição cultural contra o arbítrio que desceu sobre nós em 1964 e ainda não nos abandonou, Eva Wilma também nos lembra, com sua frase, o quanto as pessoas aprisionadas pelo sistema de televisão que nos oprime sabem como estamos longe de uma nação livre. Exatamente por termos virado as costas para o país que nos acolhe e abriga, o país que atualmente traz de volta seus filhos colhidos pela guerra no Líbano, filhos que vieram de uma outra nacionalidade para a qual prestam tributo no sotaque e nos costumes, mas que são brasileiros, assim como Gianfrancesco Guarnieri, trazido aos três anos da Itália e que aqui assumiu o país que defendeu até a morte.

EQUILÍBRIO - Como repórter em São Paulo, tive a oportunidade de visitá-lo um dia na sua casa no Morumbi, ampla e despojada de qualquer ostentação. Ele estava num sofá, meio confuso com minha pauta, que era um ensaio sobre o palco, invenção desse editor magnífico que é o Fernando Poyares, na época na liderança da revista Santista. Eu já tinha falado com Antunes Filho, que me recebera com generosidade, e tentara o Diogo Pacheco, que no dia da entrevista, por também não entender a pauta, me mandou embora. Com Guarnieiri aconteceu o esperado: fui recebido com gentileza e receptividade. Eu mesmo não sabia o que queria fazer com aquelas entrevistas, por isso nem tinha por onde começar. Lancei um briefing mais ou menos louco, fruto da conversa que tivera com Poyares. E Guarnieri, o cara que em 1955, com vinte anos deslumbrou a todos com sua peça Eles não usam black tie (imagem de hoje), que foi o maravilhoso roteirista dessa obra-prima de Roberto Santos que é A Hora e a vez de Augusto Matraga, falou comigo por uma hora. Viabilizou o texto que publiquei numa reportagem de capa da revista. Disse muitas coisas e sobre sua vida usou de uma imagem, que traduzo mais ou menos assim, filtrado pela memória: nós, artistas brasileiros, somos surfistas, precisamos saber nos equilibrar na onda. Explico melhor: não na onda da moda, mas na onda avassaladora que a tudo carrega.

CONTENÇÃO - Sabemos o quanto foi longa e árdua sua vida, tendo que fazer novelas sem parar, e ao mesmo tempo lutando pelo seu teatro e os filmes dos quais participou. Como ator, ensinou a todos como fazer. Fundado no exercício da autenticidade, jamais deu bola para essas besteiras com que a profissão foi cercada, como carisma ou glamour. Ele era o personagem sem abrir mão de si mesmo. Era didático sem ser piegas, moderno sem ser superficial, de vanguarda sem ser espalhafatoso. Tinha uma contenção clássica que projetava escassez humana. Sua voz parecia trêmula, desfocada, sem empostação, mas não havia presença mais marcante no palco ou na tela. Era o criador que estava ali, apascentando suas criaturas e nos mostrando o caminho das pedras para nos desvencilhar da alienação. Ele desdramatizava, como Brecht, e ao mesmo tempo encarnava a fúria diante da injustiça, a luta permanente contra o descaso. Buscava a lucidez coletiva a partir de suas luzes próprias. Convencia quando atuava, por ser um ator de primeira grandeza, um professor da dramaturgia libertária, que foi colocada na sombra pelo besteirol e outras bobagens comerciais.

COMETA - Guarnieri professava a verdade profunda; o amor ao país e ao seu povo. O povo com o qual se identificava no interminável drama da escravidão. Sonhou a liberdade na prática, no front. Equilibrou-se na maré alta da destruição do país, como a voz que veio de longe, do levante, do confronto, da época em que estava claro o que iam fazer com o Brasil. Daquele tempo, destaco ainda a cena em que Eva Wilma grita com Walmor Chagas em São Paulo S.A., de Luiz Sergio Person: Vamos acabar com esta palhaçada! Esse grito ainda vale, por mais que nos sufoquem com uma dramaturgia de araque nas produções televisivas, por mais que nos afastem de teatro, por mais que eliminem o cinema sério e desafiador. Guarnieri deixa seu recado com a própria vida, a que nos iluminou como um grande cometa, que por ser surpreendente, gigantesco e tomar conta de todo o céu, se transforma num acontecimento inesquecível. Somos cria dessa luz intensa e sabemos o quanto foi traída nos anos que se seguiram à sua luta. Mas Guarnieri, ator, dramaturgo, poeta, é a resistência que fica, ao nosso lado, como um punho cerrado.

22 de julho de 2006

PAMPA EM 23: UM ROMANCE FUNDADOR


Romance fundador pode ser comparado a um marco de pedra na fronteira seca. É linha divisória e parâmetro num ambiente que foi riscado pela guerra. Quem passa por ele aprende a se situar, reconhecendo assim a identidade de algo que está oculto num lugar onde tudo parece ser idêntico em qualquer quadrante ao seu redor. O marco faz parte da região, no caso, a literatura, mas dela se destaca porque define algo profundo. Esse contorno não se esvai na chuva, não é colhido pelo tempo. Fica de pé, a exemplo de um acordo entre povos que se respeitam por gerações. E serve de guia para os viajantes, os leitores, que sabem, a partir dele, o lugar onde estão pisando. Assim é o romance Pampa em 23, de Ubirajara Raffo Constant, lançado em 2004 e até hoje cercado pelo silêncio e a solidão, apesar da sua presença definitiva como obra de referência na cultura brasileira. Trata-se de um romance fundador, que extrapola sua condição de obra literária e se transforma, ao fim da leitura, num lugar onde podemos morar.

Com quase 500 páginas, a obra encerra os fundamentos de uma nação soberana, o Brasil que lutou por gerações por vasta porção de território que agora nos pertence. Como camadas de alicerces que se somam para que haja permanência do que revela, podemos destacar três abordagens, que se misturam na narrativa, composta de vários vetores da linguagem. Vamos utilizar a divisão escolhida por Euclides da Cunha (terra, homem, luta) sem ter a intenção em descobrir na nova obra alguma semelhança com o clássico sobre Canudos (com o agravante de que qualquer obra sobre a luta fraticida, comparada com Os Sertões, desempenharia um papel coadjuvante). Trata-se apenas de homenagear o cânone, usando, nesta resenha sobre um romance que desponta agora, apenas uma de suas vestes.

O objetivo é revelar os mecanismos do ofício engendrados no romance, sem despojar a criatura dos seus encantos. E descobrir nele a sua originalidade, que é o resultado do talento misturado com suor, já que a ampla pesquisa abusa tanto do plano geral (a História) quanto do detalhe (o cotidiano resgatado em suas minúcias). A contribuição de Ubirajara Raffo Constant vem mesclada numa tormenta de discursos, numa saraivada de palavras típicas da região (o sudoeste gaúcho), numa alternância de estilos e gêneros e em algumas cargas pesadas de cavalaria, tanto no início, quando se despejam miles (para usar uma palavra recorrente na obra) de personagens, quanto no final, quando as batalhas inundam o pampa de sangue. Antes que os apressados desistam de saber do que se trata, por desconfiarem que todo romance com essas roupagens tem o mesmo rosto, é preciso adiantar que em qualquer país civilizado é permitido ousar em assuntos aparentemente já conhecidos. Há lugar para inúmeros criadores na mesma estrada por onde trafega a mesma terra em conflito e a mesma humanidade em luta por seu destino.

Constant não se apega às versões consagradas quando levanta cada palmo de chão onde pisam seus personagens, reais ou inventados. Ele vai fundo para descobrir a origem de cada palavra, de cada episódio da história próxima ou distante e instaura um debate permanente sobre a geografia e os desdobramentos históricos. Sobram exemplos sobre sua inquietude, que é a marca registrada dos habitantes da cidade onde nasceu e se criou, Uruguaiana, na fronteira oeste gaúcha. Os uruguaianenses são, antes de tudo, polêmicos. O conflito faz parte de cada momento da conversa e quando ele está ausente, acaba sendo provocado, só pelo hábito. Constant faz jus a esse perfil, e toma partido sempre, tendo o cuidado de esmiuçar as posições em contrário, pois também faz parte do ethos local o senso de justiça, o reconhecimento do valor dos adversários, tanto na palavra quanto nas armas.

TERRA - Para chegar à luta, a revolução de 1923 (resultado de uma campanha de reeleição fraudulenta e mal resolvida) em Uruguaiana, o autor se debruça sobre a paisagem. A Terra é descrita por ele com o apuro do cenógrafo e do artista que sempre foi, o que o destaca como uma das figuras mais admiradas e queridas da cidade. O poeta Constant, criador de notáveis versos nativistas, foi o responsável pelos cenários do filme A Intrusa, de Carlos Hugo Christensen, estudou escultura com Vasco Prado, pintura com Paulo Porcella e xilogravura com Danúbio Gonçalves e Zorávia Bettiol. Essa formação completa se dedica à paisagem como um ourives diante da jóia. É mais do que uma descrição, é uma incorporação, pois a narrativa, que conta com pequeno glossário no final (precisaria ser bem mais extenso), assume o enfoque da região, toma partido também ao descrever a geografia, que assim se torna uma geografia de linguagens.

O leitor fica conhecendo o que é uma estância, o que acontece num domingo de sol no interior, qual a sensação de ver um guerreiro a trote emoldurado no entardecer por uma serra distante. Sabe agora o que é um tigre cevado, o que viciou em carne humana, e o que esse perigo significa na vida dura da campanha. Desce ao detalhe das raças de criação, dos cavalos e suas origens e portes, dos bois, das sangas, das árvores. A terra se mistura ao sangue humano quando nele se deposita o corpo dos guerreiros que até dias antes viviam em paz e sossego, apenas rememorando batalhas antigas e desconfiando de que algo iria acontecer. A terra, que era ameaçada apenas por animais selvagens, torna-se bruta pelo embate dos homens. A geografia, então, se retorce como numa história absurda de pesadelos.

HOMEM - O homem, a mulher, a criança, o idoso, todos se confraternizam, primeiro, num entrelaçamento de linguagens diferentes. Há a linguagem culta, dos estancieiros, como Cilano Bento (protagonista fundamental na obra) e seu pai; dos visitantes ilustres vindos da Europa, como o inesquecível Honoré, o francês que pertence à linhagem de Saint Hilaire e comenta a obra do antecessor; dos peões (ou peães, como quer Constant) da fazenda, como Liberato, o apaixonado e exímio cavaleiro, todos com as palavras à vontade, muitas vezes truncadas. Há ainda o mutismo dos excepcionais, como Sabugo ou o anão que assombra o final do romance em rápida aparição. Existe também a fala dos facínoras, todos cinematográficos, como a dupla que chega para fazer baderna num bordel de campanha, ou os degoladores que envergonham os guerreiros idealistas. As senhoras, recatadas e graves, as moças, apaixonadas e vibrantes, os rapazes, debochados e cavalheiros, as crianças, cheias de talentos dos adultos, como cavalgar, por exemplo: tudo isso inunda o romance, junto com os tilburis, os cães, as carreiras. Sem mencionar a culinária, presença marcante no livro, com detalhes de pratos saborosos em várias páginas.

A descrição da confeitaria Campana, célebre lugar de encontro dos habitantes de Uruguaiana (e que mais tarde pertenceu ao meu tio Nico) é descrita com requinte de conaisseur. A belle época da fronteira, desconhecida do resto do Brasil, ali é revisitada com tudo o que temos de direito, desde as vastas prateleiras com todos os tipos de bebidas importadas e nacionais, até a confeitaria que fazia a alegria da meninada.

LUTA - A luta tem seus antecedentes na campanha política, com o foguetório, os discursos em praça pública, as aglomerações, os boatos, os conflitos, as dissidências, os arreglos e os desaforos. Tudo descamba para a guerra na cidade e no campo. A descrição de uma das batalhas, que ocupou a esquina da casa onde me criei, em frente ao Colégio Santana, é impressionante.

As cargas épicas de cavalaria, o destemor diante das balas e lanças, avançam no final do romance como uma tempestade. Apesar de reconhecer as razões, o brio, o valor e a honradez dos maragatos (revolucionários, de lenço vermelho) o livro toma partido por Flores da Cunha, o legalista heróico (chimango, de lenço branco). Faz parte da concepção do romance, que é um mergulho na autenticidade, forjada exatamente nesse tipo de luta. Constant, assim como o resenhista que agora o aborda, foram criados com os mesmos valores, no mesmo lugar. Com o tempo, nos tornamos irmãos de letras. Posso dizer-lhe com franqueza: nossos Honório de Lemos (o dele, histórico, o meu, descrito no romance Universo Baldio, e lançado no mesmo ano de 2004, puro mito) acabam no mesmo lugar: frente a frente com Flores da Cunha, sob as vistas de Oswaldo Aranha. Na minha visão, Honório teve tantas vitórias quanto derrotas e não quase que só derrotas, como neste romance de Constant. Mas isso não importa. O que vale é que os fatos assomam com nitidez e grandeza nesta obra, que não se limita apenas ao século vinte.

Existe uma boa parte do livro dedicada aos séculos anteriores, com detalhes sobre a guerra Cisplatina, a independência do Uruguai e da Argentina, a guerra farroupilha e a fundação de Uruguaiana. É um romance que coloca aquela fronteira no mapa da literatura universal, não pela primeira vez, mas de forma definitiva. Cumpre essa missão com a marca da terra, a autenticidade, o que inclui uma carpintaria pessoal sem as preocupações do texto sem defeitos. Como as linguagens pesquisadas em livros de memórias, jornais da época, pronunciamentos políticos, ordens de serviço, são incorporados à narrativa, a precariedade costuma emergir. Isso poderia ser considerado um defeito, principalmente depois de tantas experiências literárias nos últimos cem anos, mas é a forma de Constant demonstrar seu apreço ao que aprendeu.

Ele nos traz esse universo quase intacto e o faz conviver com a invenção das suas histórias, onde entram as corridas em cancha reta e os encontros nos bolichos, as lutas de faca em campo aberto, as cenas das fazendas, o anão que acompanha o casal de velhos escondidos no ermo, além dos sonhos onde as amadas aparecem em cenários prateados e as assombrações em que donzelas se transformam em monstros. Qualquer crítica que se queira fazer a essa ou outra repetição de soluções de linguagem, de excesso de detalhes considerados às vezes sem importância, o que deve ser visto é que esta é uma obra completa, que contém a saga de uma região fundamental para a História e a literatura do país. Seu material foi colhido na fonte e brota das páginas como cascata, cruzada de vez em quando por poemas, pois um poeta é síntese por vocação mas quando é necessário esbalda-se no excesso.

Pampa em 23 é um romance para ser saboreado, como a refeição que começa no chimarrão e acaba na sobremesa. Ou como a batalha, que começa na coragem e termina na paz verdadeira.

RETORNO - Todas as imagens de hoje são de Felipe Constant, filho do autor. Felipe também fez ilustrações especiais, primorosas, para o livro, editado pela Renascença, de Porto Alegre (51 - 3334 4399). "Pampa em 23" pode ser encomendado diretamente com o autor pelo e-mail: anderson@portaluruguaiana.com.br (por especial obséquio de Anderson Petroceli).

21 de julho de 2006

PRODUÇÃO DE PENSAMENTO





O pesadelo da linguagem tem uma cena recorrente: um rosto que se expressa como se estivesse catequizando o gentio. De onde veio isso? Da reforma da educação do Jarbas Passarinho, dos anos 60, que destruiu a educação no Brasil. Baixou o nível intelectual do país e o lugar de destaque foi ocupado pela mediocridade imperante. Em qualquer segmento, há sempre uma cabeça sacudindo um sim, mudamente, para uma platéia cativa, ou seja, gente que estaria em outro lugar, mas por acaso ou forçada está ali, escutando a idiotia que finge estar produzindo pensamento. A situação é grave e tem sua vitrine principal na mídia. Vamos a alguns sinais que denunciam esse fundo de poço. E, depois, detectar como é tratada no Brasil a verdadeira produção de pensamento.

POUCA GENTE SABE - É simples mostrar capacidade de saber tudo e achar que os outros são umas bestas. Basta falar qualquer bobagem (já que é proibido dizer algo que preste, pois isso derrubaria o ibope) e, na frente, profeerir a expressão "pouca gente sabe". Ontem mesmo eu vi e ouvi a apresentadora fazer isso. Disse ela: pouca gente sabe, mas no sertão, apesar do clima seco, faz frio. O abombado que escreveu o texto e a jornalista que repetiu nunca souberam nada sobre o deserto, que é frio à noite e insuportável de tanto calor de dia. Mas, ahrrá! O sertão é frio porque perto do Recife existe uma serra e lá, como é alto, faz frio, entende?! Quantas vezes vimos essa matéria? É a fase lareira e vinho do noticiário, que sobe a serra gaúcha, vai a São Joaquim e a Campos do Jordão perguntar para as pessoas se está fazendo frio. Pouca gente sabe, mas a vontade é chutar o traseiro dos produtores de pensamento que exibem tanto conhecimento.

NO AGUARDO - É uma casamata, onde ficam os expectantes. O aguardo se situa em alguma fronteira, entre a boçalidade e a redenção dos panacas. Lá eles se plantam no aguardo, ao invés de seguir em frente, se retirar e deixar os outros em paz. Quem fica no aguardo usa uniforme, sapato de verniz e calça com friso. Carrega a tiracolo um mosquetão da primeira guerra mundial. Sempre que o talento se aproxima, ele mira o incauto e taca fogo. É por isso que ele fica no aguardo.

O JORNAL FICA POR AQUI - Os apresentadores, os repórteres, os correspondentes, as notícias, os aguardos, todos ficam por aqui. Você é convidado a se mandar. Eles estarão lá, ficantes, enquanto você procura uma saída. Abre uma porta e lá vem a campanha da dor de cotovelo. Seu melhor amigo comprou um carro novo? Que ódio! Assim é que são os publicitários e os executivos que decidem o custo dos anúncios na televisão. Promovem a inveja, porque, claro, ninguém presta e fatalmente as pessoas vão se identificar com o olho-gordo que aparece a cada cinco minutos na telinha.

CHAUÍ - Amigo meu esteve na UFSC na reunião anual da SBPC e verificou que lá existiam as cenas tradicionais de eventos universitários: os caras anos 60 tocando conga e soprando flautinha; a série de camisetas do Che, uma ao ladinho da outra; uma criançada em volta de tudo, como acontece nas bienais do Livro onde só falta engolidor de fogo, já que palhaço sobra. Mas a reunião teve coisas ótimas, como a palestra de Marilena Chauí sobre utopia, segundo outra pessoa que esteve por lá, e que fez um depoimento isento e capacitado. Estão desancando a professora Chauí por sua ligação com o PT. É uma covardia destruir sua verdadeira produção de pensamento (uma obra importante na filosofia) usando os erros do governo e descarregando em cima dela. Mestra Chauí tem o que dizer e merece respeito. E onde estão os covardes que a atacam? Pelo que leio e vejo, na mídia. Os falsos produtores de pensamento, os colunistas, articulistas, os privilegiados e monstros sem redação, os que se acham importantes e são um poço de inveja, pois jamais chegarão aos pés do brilhantismo de Chauí, a desancam de todas as formas. Ataquem o governo, peitem os poderes, mas não tentem acabar com uma militante do PT. Tudo é permitido no país sem lei?

RETORNO - Imagem de hoje: fotaça de Marcelo Min, que comentou o seguinte sobre ela: "Ventania e banho de areia em campo de futebol causados pelo helicóptero em que se encontravam a prefeita Marta Suplicy e o prefeito de Buenos Aires, Aníbal Ibarra." As fotos comentadas de Min no fotogarrafa estão imperdíveis.

19 de julho de 2006

O PETRÓLEO SEGUNDO A CIA





Não há judeus em Syriana, o filme de Stephen Gagham, o mesmo diretor de Traffic. Só árabes, persas, palestinos e muitos americanos. Onde foram os judeus? Mistério. Ao mesmo tempo, sobram justificativas. Por exemplo: a CIA viu escapar seu poder para os políticos, que trabalham para a corrupção e os negócios, e isso detonou a situação no Oriente Médio. Outro: um consultor (Matt Damon) catequiza um emir para que crie infra-estrutura no seu país e não fique gastando 50 mil dólares por noite em hotéis. Será que tem lugar para os bons propósitos no jogo bruto? O filme mostra que não. Mas coloca o jovem americaninho loiro falando coisas politicamente corretas, numa cena inverossímel. O roteiro é baseado num livro de denúncia de um ex-agente da CIA, Robert Baer, interpretado por George Clooney. No making off, mais explicações: somos a favor da América, dizem os entrevistados (diretor e atores), mas precisamos saber o papel que desempenhamos nessa indústria que garante nossa paixão pelos automóveis. É o círculo de giz da América: eles são prisioneiros do Império, mesmo quando tentam revelar seus mecanismos por meio da arte.

BASTIDORES - É como se o 11 de setembro tivesse arrochado o cinema americano num novo macartismo. Todos fazem filmes comerciais e sofrem com isso, pois são pessoas bem informadas (pelo menos uma parcela esclarecida). Basta haver um roteiro que tente escapar do cerco para que todos chovam nele. Foi o caso de Syriana, que atraiu várias estrelas, como Clooney, Damon, Christopher Plummer (até o William Hurt faz uma ponta). É um filme complicado, muitas vezes confuso, mas sério, apesar de seus erros. Mostra os bastidores das negociatas e do poder que decide sobre povos e nações. Explica como se procura dominar o mercado por meio de fusões, espionagem, corrupção, assassinatos, torturas, mentiras. Não há inocentes e a ação se desdobra numa seqüência de faixas paralelas, onde, dizem os integrantes do trabalho, o roteiro é o grande protagonista. Também mostra como se cultiva o terrorismo no Oriente Médio. Apresenta os meninos convocados pelo fundamentalismo para virarem homens bomba. Fiquei em dúvida. Vi, sobre a formação dos homens bomba, filme mais eficiente, como é o caso de Paradise Now, dirigido por Hany Abu-Assad. Aliás, acho todo o episódio, em Syriana, dos amigos que acabam praticando um ato terrorista muito parecido com esse filme de Abu-Assad.

UMBIGO - O objetivo do filme é demonstrar que o petróleo está acabando e que ainda nada foi feito para resolver esse impasse (ou isso só foi um álibi da equipe, que fez um filme denúncia e ficou disseminando evasivas para que não houvesse interferência?). Aparentemente, a preocupação é com o futuro da América (como vou abastecer meu carro? Os pobres irão me alcançar!). Procura fugir da visão de direita, mas cai no lugar comum de se formatar para a percepção viciada dos cidadãos dos países ricos. Não existem outros países, disse uma vez um personagem de Angeli numa tira de quadrinhos. É verdade. Para os americanos, só há aquele mundinho que domina o planeta. Eles não conseguem conceber como poder haver culturas diferentes. Tudo precisa ser reportado ao próprio umbigo. No fundo, o império americano é fruto da necessidade atávica de acabarem com esse pesadelo, a diversidade, o mundo dos outros.

OSCAR - Acho que eles não tocam nos judeus porque senão o filme não se viabilizaria. A indústria de massa do cinema foi criada pelos judeus, que encontraram na Califórnia o lugar ideal para isso. Steven Spielberg só foi aceito na Academia, ganhou seu primeiro Oscar, quando fez a Lista de Schindler. Polanski não pode entrar nos Estados Unidos (fez sexo com uma menor, que hoje é maior) e seu Pianista talvez tenha sido uma tentativa de conseguir um passaporte. Israel é produto não apenas do velho sonho judeu de ter uma pátria, mas do dinheiro dos judeus americanos ricos. Nunca vi filme americano criticando judeu. Agora, sobre a Igreja Católica sobra. O catolicismo é vilão no cinema americano. Não podemos comentar nada disso senão nos acusam de não sei o quê.

CONTRADIÇÃO - Não quero ser acusado de nada. Meus escritores favoritos são, em sua maioria, judeus, de Marx a Kafka. Mas uma coisa nada tem a ver com a outra. Acho Syriana um filme forte, importante, mas me enchi de perguntas quando comecei a escrever sobre ele. As perguntas se sobrepõem à minha impressão inicial, em que gostei de ter assistido. Mas fica essa contradição: Syriana convence como cinema, mas não esconde os problemas que carrega consigo quando aborda o tema explosivo que hoje gera milhares de refugiados do Líbano. Tudo gira em torno do petróleo, diz Syriana. E só mesmo os americanos para contar esse história direito. Eles são os principais envolvidos.

RETORNO - Imagem de hoje: George Clooney, cada vez mais importante no cinema contemporâneo, em cena de Syriana. O grande assunto na internet não é sua performance, magnífica, contida e explosiva ao mesmo tempo, mas o fato de ele ter engordado para fazer o papel. Puxa, ganhou 13 quilos, que coisa. Muita gente realmente não consegue ficar atenta ao que realmente importa.

18 de julho de 2006

MONCLOA, ADEUS





Não há possibilidade de um pacto no Brasil, como entre os espanhóis, o de Moncloa, para enfrentar a situação limite em que nos encontramos. Simplesmente porque a ditadura, o sistema econômico de arrocho e exclusão inaugurado em 1964 e legalizado em 1985 e 1988, permite a mobilidade social entre os donos da bufunfa. Como a elite não está engessada, mas permeável, isso torna o regime palatável e aparentemente indestrutível. É a imagem que sempre uso, de autoria de Euclides da Cunha em Os Sertões, da cidade-mundéu: você a ataca frontalmente, mas ela resiste porque se adapta, acaba te engolindo com sua aparente fragilidade. É diferente do que ocorreu com a Espanha, quando o espírito público foi assumido, depois de muita pressão, por todas as facções em luta, tanto nas elites quanto nos combatentes dos partidos.

No Brasil, a falta de um ideal - a nação soberana - coloca tudo a perder. Não se pensa no país que será herdado pelos descendentes. O importante é arrancar o máximo (dinheiro, poder) aqui e agora. A mentalidade dominante (estabelecida ou emergente) está sempre sendo seduzida pela possibilidade de meter a mão na cumbuca. Então, para que ceder? Na Espanha, descobriram que nada iria sobrar para ninguém, se continuasse o estado de guerra e corrupção, de divisão interna. Aqui os meliantes "estão convencidos" (para usar uma expressão cara ao discurso oficial)que o falso paraíso à custa do sangue da nação durará para sempre.


Não tem como escapar: os ataques acabam anexando novos contingentes aos exploradores do butim (o dinheiro público arrecadado, e que sobra do pagamento extorsivo dos juros da dívida externa). Essas parcelas mínimas que participam da gangorra do acesso à grana convivem com os mandantes velhos de guerra, os donos do poder de há séculos. Foi uma solução eficiente: deixa a indiada entrar que ela acaba se corrompendo. Aconteceu o mesmo no passado: quando Dom João chegou aqui em 1908, a elite já estava misturada, ou seja, tinha formação a partir de vários vetores sociais, o que causou perplexidade à corte portuguesa.

CANUDOS - O que fez o Exército para erradicar em Canudos um enclave fundamentalista que se opunha à República e à exploração do povo? Criou um fluxo permanente de abastecimento de tropas, víveres, armas e munição. Retirar os feridos e substituí-los por soldados inteiros decidiu a parada. Essa lógica que arrasou Canudos e sua população insurrecta foi fruto de uma determinação dos poderes. A mesma vontade deveria se encarregar de nova missão, longe da perversidade em Canudos: a de juntar recursos, contingentes civis e militares, para impedir que a situação de guerra civil se torne irreversível. Oficialmente, ainda temos paz, mesmo que não haja mais paz social. Mas as margens diminuíram bastante. Vejo uma das seqüelas aqui na ilha de Santa Catarina: pessoas de todo o Brasil despencam para cá, enquanto o equilíbrio aos poucos começa a se romper, haja vista a série de barbaridades que se cometem por aqui. Não que a violência seja fruto da migração, os criminosos são de todas as origens, inclusive locais. Mas a paz que definia o perfil da cidade aos poucos se esgarça. Enquanto isso, São Paulo mergulha no medo permanente, sem socorro dos políticos, que insistem nas mesmas práticas.

GUERRA - Eles se garantem. Podem tudo. A situação é idêntica à que é descrita em Pampa em 23, o romance fundador de Ubirajara Raffo Constant: uma reeleição que se aproxima intensifica o conflito e tudo pode acabar em guerra generalizada. Só mais tarde, com o governo de Getúlio Vargas, os que se digladiavam se uniram no Rio Grande do Sul, para enfrentar um perigo maior, o poder central da República. Mas em 1893, em 1923 e em 1924 a luta foi tremenda. O Brasil sempre esteve em guerra. Soa trágica a declaração de José Sarney, o fundador da ditadura civil, de que a América Latina é um continente pacífico, pois não tem, diz ele, guerra há mais de cem anos. Só rindo. Estamos em plena guerra, para começar. E tivemos inúmeras, todas elas desprezadas pela maioria dos historiadores, que ficam se reportando a paradigmas europeus para analisarem nossas pendengas (antigamente, os sábios europeus diziam que nosso continente era inferior pois não conseguia produzir um elefante, no máximo uma anta). A literatura e as memórias tomaram para si a tarefa de explicar essa História direito. E também alguns, raros, historiadores.

POMBO - Soa também ridícula a declaração que a violência em São Paulo não encontra precedentes. Ouvi isso do Aloysio Mercadante, o peito de pomba. Sim, teve, em 1924, quando a cidade foi sitiada pelas forças federais e bombardeada por ordem do ministro da Guerra, o uruguaianense Setembrino de Carvalho. A população fugiu em sua maioria e o resto ficou entocado por duas semanas dentro de casa, enterrando seus mortos nos quintais. É que a expressão não há precedentes soa pomposa e determinante. É apenas uma frase vazia.

RETORNO - 1. A imagem é um trabalho do artista Felipe Constant, filho de Ubirajara Raffo Constant.2.O livro "Pampa em 23" pode ser adquirido na editora Renascença: 51-3334 4399.

17 de julho de 2006

NOVA GRAMÁTICA




O pesadelo da linguagem continua firme. Normalmente é disseminado pelo som da voz de taquara rachada, em ambientes fechados e irreversíveis, como elevador ou ônibus. Ou em situações constrangedoras, como reencontros forçados. Ou em spams. Não é possível escapar, por isso merece vingança. Aqui, alguns exemplos.

O meu melhor - Novo verbo, que deve ser conjugado assim: o meu melhor, o teu melhor, o melhor dele /dela; o nosso melhor, o vosso melhor , o melhor deles/delas.

Não parou mais - A obrigatoriedade inercial das vidas profissionais. Vidas assim são um ameaça ao trânsito. Muito usado para grandes personalidades que já bateram as botas.

Não é bem por aí - O conceito de por aí é rígido: é onde mora a argumentação alheia, ou seja, o lugar inexistente onde os outros depositam suas convicções.

Diferenciado - É a atual opção para quem quiser manter-se sempre o mesmo. Todos são diferenciados, portanto, não saia da fila.

Com certeza - A certeza, paradoxalmente, não pode prescindir de sua muleta, o com. Sozinha, certeza não significa nada. E sem certeza não existe.

Não acredito - Nesta época de fundamentalismos, o que impera é a falta de fé, principalmente quando dois cérebros prejudicados se encontram.

Melhor agora - Denota, pelo avesso, indiferença com a aproximação alheia. Significa: agora que você chegou, não há perigo de melhorar.

Brigadão - Agradecimento usado pelo espírito burocrático dos folgados. Tem o aspecto intenso, mas é oco, pois sucumbe com seu antídoto, a expressão brigado eu.

Mix - Conjunto de produtos com embalagem cool. Você não tem uma série de itens, você tem um mix. Serve para emprestar charme ao vendedor.

Você está ótimo - Sinal que você envelheceu miseravelmente a olhos vistos, e ainda vai pagar muito mico toda vez que encontrar um chato.

Onde você está? - Quem faz essa pergunta está empregado, então ele tira um toco de você, que não está. Responda sempre: no mesmo lugar.

Está muito bom - Expressão usada pelos que perguntam o valor do teu salário. Quer trocar? é a saída clássica, mas já ficou fora de moda.

Amei - Tem gente que ainda diz amei. E não adianta virar-se para o emissor e fazer cara de cachorrão. Quem diz amei não se impressiona com nada.

16 de julho de 2006

O RESGATE DOS TROPEIROS





De repente, a saga dos tropeiros é resgatada por três caminhos. Primeiro, pelo melhor programa da televisão brasileira, o Globo Rural (ah, se todos fossem iguais a você). O que encanta nas manhãs de domingo quando vemos este decano trabalho de competentes jornalistas, não é apenas o assunto e sua diversidade, mas a lição que expõe para os seus pares, que infelizmente não seguem os princípios e fundamentos ali apresentados. Não há, por exemplo, jornalismo de breque - aquelas materinhas pseudo-humanas em que o repórter tenta fazer suspense antes de terminar as frases (dá uma paradinha e olha firme como se você fosse um idiota).

Ao contrário: Globo Rural é didático sem ser piegas ou arrogante. E sem ser forçado, jamais deixa de ser simpático, ou melhor, anfitrião, à moda dos moradores do interior que te recebem com alegria. Informa sem querer montar um circo, e diverte sem se fazer de engraçadinho, como acontece com tantos noticiários. E coloca tudo o que é importante do setor sem propor sustos ou advertências. Pois bem: a série de reportagens da equipe (a primeira foi com o magnífico José Hamilton Ribeiro) pega desde as raízes da aventura dos tropeiros, na Argentina, e seguirá, com uma expedição especialmente formada, até Sorocaba.

As outras fontes do resgate estão bem explícitas em dois livros. Um deles foi lançado dia 13 em Curitiba. Trata-se Aventura no Caminho dos Tropeiros - narrativa de cavalgadas realizadas no antigo Caminho do Viamão, rota utilizada pelos tropeiros para levar mulas e gado do Rio Grande do Sul até Sorocaba-SP, desde 1733 até 1900. O livro, apresentado pelo romancista e jornalista Eliziário Goulart Rocha (meu companheiro de jornada na editora Globo e na W11), foi escrito por Jakzam Kaiser e fotografado por Werner Zots (consagrado autor de literatura infantil, entre outros gêneros), ambos moradores da ilha de Santa Catarina. Há uma boa introdução sobre os antecedentes das tropeadas e depois um relato minucioso de como se refaz esse caminho hoje, como turismo, terapia, lazer ou aventura.

E temos ainda um romance fundador, o clássico Pampa em 23, de Ubirajara Raffo Constant, lançado em 2004. Estou mergulhado no livro do poeta, artista plástico, romancista e cenógrafo Bira Tuxo, como é carinhosamente tratado em Uruguaiana, e vou dedicar uma edição do Diário da Fonte só para ele. Mas destaco, para efeitos desta edição, um trecho em que seu magnífico livro, obrigatório em todos os sentidos, aborda as tropeadas como elemento de um ambiente maior, o da construção do Rio Grande do Sul. As tropeadas são apenas um detalhe dos antecedentes da grande luta em 1923. Para chegar ao início do século vinte, Ubirajara foi fundo e resgatou uma História riquíssima em humanidade e bravura. Só o capítulo II, em que Honório Lemes, o grande guerreiro, aparece na estância e é recebido com bandeiras, já vale o livro, que tem quase 500 páginas e ainda passa desapercebido por esta Indiferente, a crítica literária brasileira. "Pampa em 23" está entre as obras fundamentais da nossa cultura e precisa ser lido e analisado para que, pelo menos na literatura, haja justiça.

A diferença de Bira Tuxo em relação ao programa e ao livro de Jackzam e Werner, é que "Pampa em 23" foca na guerra o quadro de formação da nacionalidade no sul do País. O que fica mais ou menos intocado no Globo Rural e no Aventura (nem poderia ser diferente, pois os propósitos são diversos) é a complexidade da luta que definiu a História. Nem gostaria de adiantar muito, por enquanto, o que encerra o romance de Bira Tuxo, pois tenho me dedicado a ele a maior parte do tempo e o resultado sairá ainda nos próximos dias. Mas nele podemos aprender, entre muitas coisas, a independência e ao mesmo tempo a submissão das ações do pampa em relação aos países coloniais. O romance coloca o dedo na ferida e expõe fatos surpreendentes sobre uma série de acontecimentos, especialmente sobre a luta guaranítica, que foi abordada superficialmente neste domingo no Globo Rural no depoimento de um índio guarani diante do monumento ao herói Sepé. Na TV, a tropeada começa na Argentina e seu link com as minas de Prata de Potosi. No romance, a tropeada tem um foco mais de América Portuguesa, mas em ambos está destacado o papel da Colônia do Sacramento, aquela porção de terra que poderia ser brasileira hoje.

E assim, ao correr do teclado, misturo (guardando as respectivas diferenças) leituras e sessões matinais de TV, quando a coragem dos tropeiros, sua vida dura e cheia de lições, assomam na percepção como um fundamento nesta época de tantas incertezas. Tudo é incerto, inclusive as versões sobre nosso passado. Mas o que não deve encerrar dúvidas é a nossa vocação para a nacionalidade, a importância de termos um país e vermos nele o que há de grandeza e permanência.

14 de julho de 2006

OS FALSOS HERÓIS MATAM SEM PARAR





Transformar bandido em herói foi a tarefa da classe média dita esclarecida a partir do início da desconstrução da Era Vargas. O Estado foi analisado e visto como coisa horrorosa fora de moda. O moderno era sermos livres e pagãos, de arma em punho. Depois perguntam porque as meninas adoram subir o morro atrás de bandido. O mito da luta armada como fator de libertação foi assimilado pela bandidagem para fazer valer sua força, que hoje, como sempre, está fora de controle. Agora a classe média prova do remédio que pregou, ficando confinada como a população das favelas. Há um link óbvio entre os que propagaram a idéia de que as massas deveriam revoltar-se, empunhar armas, contra o Estado soberano, e a atual situação limite em que vivemos. Como o Estado migrou para a ditadura, nada mais justo que se pregasse a insurreição, pensavavam os próceres da libertação. Mas o tiro saiu pela culatra, pois os mesmos conseguiram apropriar-se do Estado que desprezavam, e precisam agora decidir sobre o impasse pela violência generalizada. Mas esta está a serviço da politicagem da campanha eleitoral.

ANALFABETISMO - Depois que, a partir de 1985, a ditadura não precisou mais dos militares, deixou todo mundo brincar de democracia enquanto continuava seu processo crescente de expropriação de soberania (e para isso contou com a intelectualidade enojada de Vargas), empobrecimento da população e tunga dos tesouros e territórios da nação. Não é vantagem para o Império existir um país tão imenso como o Brasil na parte do globo que eles acham ser seu quintal. Era preciso destruir a auto-estima dos brasileiros, seduzindo-os com badulaques. É triste ver gerações e gerações sendo engolidas pelas empresas de fast-food. O emprego deixou de ser uma carreira com futuro para transformar-se nessa frustração coletiva em que todo mundo virou servente. O país hoje é composto de serviçais. Estamos a serviço da morte em vida. Para que ter um estudo decente se vamos servir carne podre nos balcões coloridos e iluminados? O que chamam de analfabetismo funcional é analfabetismo ponto. Não existe analfabetismo funcional.Ou o cara sabe ler, ou seja, entende o que está lendo, ou ele é analfabeto. Não adianta acuierá as letras, como diria aquele político do interior.

MICROFONES - A solução é óbvia: a sociedade brasileira precisa apostar na paz, no convívio entre as diferenças, desde que as diferenças não sejam o escândalo atual. Promover a distribuição de renda por meio do combate efetivo da corrupção (e não pelo clientelismo eleitoral, como ocorre hoje), e também pela criação de um ambiente saudável pró-negócios (para que todos tenham a oportunidade de conduzir o próprio destino) aparelhar o judiciário com os instrumentos da tecnologia para agilizar os processos, implantar um sistema educacional sério, como tínhamos antes de 1964, reverter os efeitos nocivos das reformas educacionais promovidos pela ditadura e invadir os nichos de violência onde o Estado não impera. Mas para isso é preciso que se entendam. Ninguém se entende e o que temos é um monte de idiotas falantes se justificando. Como é que um presidente da República precisa pedir licença para intervir num estado conflagrado como São Paulo? Você intervém e pronto, está na cara que a situação ficou insustentável. Toda essa baboseira está deixando a população furiosa. Por enquanto ela recua, escaldada que é, sobrevivente que é. Mas daqui a pouco não terá para onde fugir. O que farão os faladores ao microfone? Mais palavras vazias?

DECADÊNCIA - Recebo o jornal Vaia, de Porto Alegre, numa primorosa edição sobre os cem anos de Mario Quintana. Há preciosidades lá. Uma carta de Paulo Mendes Campos, um texto de Juarez Fonseca, o magnífico Manuel Bandeira (inventor da palavra quintanares), todos ao redor do nosso poeta, que tanta falta nos faz. Meu poema sobre Mario, publicado no meu livro estréia, Outubro, também foi reproduzido no jornal. Numa entrevista, Quintana diz que recebia diretamente da França os folhetos sobre os lançamentos das editoras de lá, encomendava e recebia tudo de Paris. Lia e falava fluentemente francês desde criancinha. Diz até que a revolução de 1923 teve grande parte da conspiração acertada em francês. O Rio Grande do Sul, como outras partes do Brasil, foi uma grande civilização no início do século vinte. No programa do Jô, vi Kleiton e Kledir dando entrevista e vi como o apresentador procurava abordar o aspecto folclórico do tal gauchismo. E reproduziu uma conversa com uma sem-teto em Porto Alegre. O depoimento da mulher, em andrajos, foi alvo de deboche total. Essa indiferença em relação aos outros é que nos mata.

RETORNO - Imagem de hoje: Escada, de Helcio Toth. Tudo a ver com a sensação de labirinto onde nos metemos.

13 de julho de 2006

PASSO MIÚDO





Nei Duclós

Aos poucos, Febrônio descobriu que não existiam mais velhos no país. Os que deviam ser anciãos estavam fantasiados de papagaio e dançavam a rumba em eventos de Terceira Idade. Ninguém mais usava, como ele, chapéu de feltro, ou manta para este inverno que não se instala de forma definitiva, deixando claros de veranicos a assanhar a passarinhada da praça. Havia um surto coletivo no ar. Ele sentia a vibração mesmo antes de sair, quando olhava os sapatos pretos lustrados, a calça de lã com bainha italiana, o casaco xadrez e a camisa de flanela abotoada até o pescoço. Sentia desconforto. Não dispunha de amigos para repartir as horas. E não tinha vontade de participar da arenga sobre os benefícios da qualidade de vida. Nem ficava de olho nos privilégios das pessoas que, como ele, tinham cruzado o cabo da Boa Esperança.

O mais chato era que não podia conversar sobre a morte. Talvez o fato de estar cercado pela guerra civil fosse um empecilho. Refletia sobre esse paradoxo ao não compartilhar com o entusiasmo das rodas que se formavam para comentar as últimas atrocidades. Também não engrossava o tumulto dos que acorriam para a frente do quartel da polícia, atraídos pelo som das sirenes e aos gritos de "pegaram o tarado", ou o louco, ou o bandido. Não era esse tipo de impacto que precisava desfrutar num convívio de pessoas com idade próxima do primeiro século de vida. Ele sentia falta do segredo que existia anos antes, e que costumava cercar as mortes com algum mistério. Não considerava essa falta que sentia como um desvio de conduta. Achava normal fazer a morte sentar-se ao seu lado para uma conversa. Ela sabia contar histórias.

O fato é que o excesso da morte tinha inviabilizado o suspense. Os corpos se amontoavam sem que houvesse tempo para o debate, o sussurro, o conluio entre teses, posições. Não se podia contrapor, raciocinar, investigar, procurar informações. Tudo se atropelava num clima de Juízo Final sem julgamento. Não havia tempo, nem disposição, para entender direito o que tinha acontecido. Hoje tudo parecia claro demais. O padrasto que matou mulher e enteados, a avó que enfrentou o neto drogado, todos se envolviam em coisas óbvias. Os assassinos confessavam, se entregavam ou apareciam na televisão para logo depois serem capturados. Não havia uma chave falsa, uma pista, um frasco de perfume, partido, embaixo da cama.

Tudo era decifrado pelo DNA e o que ainda permanecia oculto obedecia aos velhos ditames da política e da corrupção. Os habitantes do país se atiravam à carnificina no trânsito ou nas festas de fim de semana como se quisessem fugir definitivamente, furar a fronteira, aportar em outros territórios, que estivessem livres do astral que tomou conta de apartamentos, botecos, cinemas. Febrônio tinha perdido para sempre a nação que o criara, e passeava pelas ruas tendo de aturar os berros dos camelôs. Os bancos da praça continuavam lá, mas era temerário se aboletar em qualquer um deles. A mendicância e a loucura faziam ponto nos últimos espaços públicos e, derrotado, ele voltava para casa a pé, já que cansara de aturar desaforo de motoristas revoltados com sua condição de velho não pagador de passagem.

Chegava em casa e abria a veneziana. Morava no mesmo lugar a maior parte da vida. Lá, no pequeno quintal, protegido por alto muro que mandara construir, sentava no seu banco favorito e aguardava os pássaros migratórios que teriam de passar muito acima dos fios. No rádio já não tocavam mais música e o que havia era um discurso interminável, de religiosos, políticos, artistas, anúncios. Harmonia, melodia, letra tinham sido erradicadas, pois eram recursos que não compactuavam com o ambiente de desordem. Gostava de estar com a cabeça desocupada, para pensar nos crimes famosos, nos detetives idôneos, nas mulheres fatais que conseguiam sair ilesas, e nos velhinhos criminosos que acabavam caindo na própria armadilha.

Talvez fosse isso! Os velhos continuavam suspeitos, mas agora se faziam de vítimas para driblar as investigações. E quem disse que ainda existiam investigadores? Esses tinham se desviado de fato de suas condutas, acomodados graças à proliferação dos denunciantes. Não gostava de certas palavras como alcagüete, próstata, tripartite. Quando as ouvia, ou algo parecido, sabia que morava no pesadelo da linguagem. Fora escrivão a vida toda e as palavras eram precisas, sintonizadas com os depoentes, que eram articulados, alfabetizados em sua maioria ou pelo menos tinham o primário bem feito. Agora não entendia nada, a começar pelos nomes. Joilton, Jordinelson, Aricleide? Onde estavam as Aracis, os Gessys, as Brígidas, as Titas e até mesmo os Febrônios?

Tinham sumido pelas mãos de cartórios desonestos. Esses, aceitavam tudo porque neles trabalhavam os retardados que na época de Febrônio eram os últimos da classe. No fundo, os sujeitos reprovados tinham tomado conta da nação. Destruíram as escolas, esconderam os melhores livros, erradicaram os nomes bíblicos para que o país sumisse junto com sua população, agora batizada com nomes híbridos, massacrada e de coração seco. Tinham até acabado com os velhos, que hoje viviam a brincar de roda, fantasiados de periquita ou fazendo propaganda de estimulantes de riscos cardiovasculares.

Febrônio mantinha-se bem vestido dentro de casa e aguardava a chaleira chiar para fazer seu café. Depois, sentava no banco favorito a esperar as aves. O barulhão dos motores na avenida próxima, os gritos dos adolescentes armados, a serra elétrica em alguma construção próxima, tudo o rodeava nesse final de tarde, quando suspirava por uma boa conversa. Sim, ele estava velho. Sim, queria conversar sobre a morte. Não, não queria se iludir com a melhor idade. Febrônio era um caso sem cura, mas seu desencanto era fruto do que o mantinha intacto: uma vida plena, vivida no passo miúdo do país que um dia fora soberano e que agora se esvaía junto com as nuvens coloridas.

No lugar do arco-íris, uma grande lua suspeita mostrava o brilho da sua coroa. A noite se aproximava para que ele voltasse a sonhar.

RETORNO A - A professora Iracema Torquato escreveu o seguinte comentário sobre este conto, publicado ontem no espaço Literário do Comunique-se: "A cada imagem construída pelo narrador, vou (como leitora) também construindo mentalmente as minhas. E é como que eu pudesse sussurar: "Febrônio, você não está só"". Agradeci a sensibilidade de Iracema dizendo que a leitura viabiliza o conto e assim a literatura não fica só. Também no espaço dos comentários do Comunique-se, a jornalista Vera Lucia Felix enriquece o olhar sobre a pequena história: "Nei: O seu conto é belo e melancólico, nos faz enxergar em 'flashs', além da vida do Febrônio; bem como a Iracema o descreveu."

RETORNO B - 1.Imagem de hoje: foto de Regina Agrella. 2. Recebo o livro descrito a seguir pela assessoria de imprensa. Tive o privilégio de conhecer Jakzam e Werner pessoalmente:
"Aventura, viagem, emoções...No dia 13 de julho, ocorrerá o lançamento do livro Aventura no Caminho dos Tropeiros - A cavalo, da Lagoa dos Patos a Sorocaba. A publicação, de autoria de Jakzam Kaiser, com fotos de Werner Zotz, faz parte da Coleção Expedições, da Editora Letras Brasileiras.Um dos diferenciais da coleção é que as aventuras realizadas podem ser repetidas pelos leitores. O livro traz serviços com contatos, roteiros, indicações de hotéis e dicas. Mais do que uma obra de aventura, é uma narrativa literária que transcende o simples relato da viagem.
Para escrever e fotografar, Jakzam e Werner realizaram cinco saídas, cada uma de uma semana a 10 dias de duração, entre junho de 2005 e fevereiro deste ano. Cavalgaram na Lagoa do Peixe (entre a Lagoa dos Patos e o Atlântico) e nos Campos de Cima da Serra (São Francisco de Paula, Jaquirana e Cambará) no Rio Grande do Sul; na região da Coxilha Rica, em Lages, Santa Catarina; em Lapa, São Luís do Purunã e Tibagi, no Paraná, e em Itararé e Capão Bonito, São Paulo. Ao todo, se fosse para fazer uma conta corrida, seriam 15 dias em cima do cavalo, numa distância de mais ou menos 300 km, o que representa 20% do total do Caminho do Viamão. O livro ainda traz as emoções da viagem. As pessoas que eles encontraram pelo caminho deram aulas de cultura, gastronomia, história, costumes e artesanato, o que enriquece ainda mais a obra. As imagens também falam por si. Em alguns locais, aonde se chega somente a cavalo, as fotos inéditas são um complemento perfeito para a narração.A Coleção Expedições não pára por aqui. Nesse modelo, já foram publicados dois livros: "Aventura no Fim do Mundo" e "Aventura no Rio Amazonas". Após o lançamento da "Aventura nos Caminhos dos Tropeiros", mais viagens já estão agendadas. Descer o litoral brasileiro desde Fernando de Noronha até Florianópolis será a próxima aventura. Tudo, é claro, com a preocupação de que os leitores possam repeti-las depois.A editora Letras Brasileiras também inaugurou o novo site.
Serviço
Lançamento do Livro Aventura no Caminho dos Tropeiros - A cavalo, da Lagoa dos Patos a Sorocaba
Dia: 13 de julho de 2006
Horário: 19h às 21h
Local: Livrarias Curitiba Megastore do Shopping Estação, em Curitiba
Mais informações: (41) 3330-5118
Hellen Quevedo Homepage 07.11.06 - 2:03 pm #"

12 de julho de 2006

BALANÇO DA FOSSA



O título é um trocadilho com o célebre livro "Balanço da Bossa", de Augusto de Campos. A idéia é pedir a cabeça dos responsáveis pelo papelão do Brasil na Copa, e já adianto: o papelão não foi da seleção brasileira, mas do monopólio que a domina, incluindo aí a publicidade. Ei, para onde foram aqueles comerciais do banco poderoso, que tratou nossos craques como micos de circo? Pagaram uma baba para os caras fazerem piruetas com a bola (vejam os macaquitos!). Como se trata de um banco estrangeiro, que comprou um banco público, e dos maiores, aqui do Brasil, e ganha os tubos com a atual política econômica que enriquece banqueiros e empobrece a população iludida, deveria entrar também no ralador deste balanço da fossa.

O monopólio não é apenas a rede Globo, que é sua mais vistosa vitrine.Onde já se viu todas, mas todas mesmo, as revistas darem capa com o Ronaldinho Gaúcho antes do desastre? Até foto sexy conseguiram (ou acharam que conseguiram) fazer com o sujeito. Não que os jogadores que se prestaram a esse circo de horrores (estavam em todos os espaços da mídia) sejam inocentes. Mas um sistema político e econômico que compõe essa sujeirada deveria ser punido, ou no mínimo analisado e criticado. Não podemos é simplesmente embarcar na canoa furada da sacanagem geral e achar que a seleção pentacampeã é um saco de pancadas para tanto herege que surgiu por todo o lado.

CANASTRA - Entre um filme e outro, dou uma zapeada para ver o que há na TV aberta. Numa dessas escapadas, fiquei seis segundos na nova novela, Páginas da Vida. O José Meyer estava na cama! Isso sim é uma profissão. O imbatível canastrão (aquele que arregaçava as mangas na hora de fazer sua coluna, quando desempenhou papel de jornalista) é o retrato falado desse monopólio sem contestação, que ampliou seu poder quando a ditadura civil se consolidou a partir de 1985. Nada muda na telinha porque assim é que está bom para eles, que fazem gato e sapato do país. Dominam a vida nacional sem que ninguém levante a voz e quando levanta é ignorado: eis a arma fatal de quem detém o poder na mídia, poder que nos deu a troupe do Galvão Bueno, o asqueroso que enterrou a seleção depois que perdemos por um a zero para a França, esse timinho de merda que saiu estropiado da primeira fase e alcançou a glória quando fez um gol em Dida, o goleirão que fechou o gol a maior parte do tempo (nenhum elogio a Dida? Ou os elogios são só para dizer que não jogamos nada, por isso ele teve de jogar tanto; vejam o que aconteceu com os outros goleiros, inferiores a Dida: tinham compatriotas a seu favor e saíram cobertos de louros e loas ).

MELIANTE - A troupe global, capitaneada por Galvão, que fez a mais longa babação de ovo da história do mundo, em Zidane, o meliante que se despediu do futebol dando uma cabeçada no adversário, é formada por: comentaristas ridículos metidos a superiores (o songa monga do Casagrande e o incompreensível fast-food Falcão, que adora fazer gestos de elegante, pois meteram na cabeça dele que é um elegante); os juízes guindados a jornalistas comentadores, que passam o tempo todo justificando os árbitros ( tudo o que os corporativos comentaristas da arbitragem dizem pode ser resumido no seguinte: "o macaco está certo!"); os repórteres espetaculares, que confirmam a cobertura pífia, sem contestação, ao perguntarem sempre a mesma coisa e a fazerem materinhas de jornalismo de breque, aquele suspense falso no meio das frases, o que torna tudo sincopado, monótono e muito cretino. A troupe, que deveria ser imediatamente apeada do poder, é complementada por Pedro Bial, do Fantástico, que declarou seu amor a Zidane chamando-o de sedutor, e vingou-se de Ronaldo, achincalhando o grande craque que nesta Copa foi um dos goleadores e bateu o record histórico de 15 gols nas Copas que disputou. Vingou-se sim, ou alguém esqueceu 1998? O título de 2002, com dois gols de Ronaldo na final, estava atravessado na garganta de Bial.

ARMADILHA - Toda novela tem um nicho de, digamos, povo. É sempre uma casarona, ou um boteco, ou uma rua, ou tudo isso junto, onde o tal povo faz sua performance. É o contraponto aos elegantes, os sofisticados, os ricos corruptos da trama. O chamado povo é espalhafatoso, sacana, mas tem lá seu charme. Uma coisa é certa: o núcleo popular é sempre totalmente desprezível, pois é para desprezar o povo que a novela faz esse tipo de coisa. O álibi é o seguinte: precisamos colocar povo, pois é disso que o povo gosta (a jararaca, a putaça, o aproveitador, o engraçadinho, a empregadinha, personagens que ao longo da novela vão sendo revelados, alternadamente, pela mídia de suporte, como a grande sensação da história toda). Pois esse tal de povo não é para retratar o povo real, mas para fazer com que o povo real se sinta superior a esse povinho da novela. É um apelo ao sentimento aristocrático do povo real, que ao viver num país de tanta desigualdade, precisa se iludir que é alguma coisa na vida, é superior pelo menos a essas criaturas pobres que a novela reproduz. Haja nós.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: concentração de renda na Avenida Ipiranga, de Marcelo Min.2. 1. Miguel Duclós informa sobre as atualizações do site Consciencia: "A arte como poesia essencial em que um povo diz o Ser, por Maria Isabel Rosete, doutoranda em estética na Universidade de Lisboa, Portugal; O espelho da guerra - a virtu na visão renascentista de Maquiavel, por Mariano de Azevedo Júnior, graduando em História na UERN e bolsista do PET - Programa Especial de Treinamento. "

11 de julho de 2006

A MODA ANTI-CLERICAL



A Igreja Católica é o saco de pancada do mundo. Inquisição! é o sólido argumento contra qualquer gesto da instituição. Se você insistir, invocam Pio XII e suas bênçãos às tropas de Mussolini (Chamberlain também abençoou Hitler antes que o ditador invadisse a Polônia, mas ninguém fala mal dos ingleses). Mais um pouco e se ressuscita o ódio eterno do catolicismo aos judeus, o que já está fora de cogitação, mas não para muita gente. E mais recentemente, a pedofilia. A escolha do cardeal Ratzinger piorou as coisas. Há um consenso granítico de que a Igreja não é de confiança e sob essa sombra medram outras religiões, como os evangélicos, que tomam conta de tudo, os budistas e seu carisma de correção e contrição e, de quebra, os muçulmanos, que aos poucos cobrem a cabeça das mulheres nas ruas do Brasil.

CURA - Fica o ressentimento contra o catolicismo, alimentado pelo cinema, principalmente. Você vê Brava Gente, de Lucia Murat, e lá está o Sergio Mamberti como cura da aldeia todo pelado sendo castigado por gargalhantes guaicurus. Você vê Munique, de Spielberg e lá está a família católica disseminando o Mal. Você vê Mar adentro, do espanhol Alejandro Amenábar e pronto, o cara que quer morrer discute com um padre que pretende tirar essa idéia da sua cabeça. O suicida então ataca o catolicismo com o argumento definitivo, Inquisição, Inquisição! Quem é a Igreja para cobrar respeito à vida? A Igreja, via Paulo II, já pediu perdão pelas fogueiras. Seria o mesmo do que acusar Alejandro, um espanhol, de ter destruído os índios da América do Sul, e não vi nenhuma vez o cineasta pedir perdão por esse crime. Desculpa aí, indiada, foi mal.

POSIÇÕES - Nestas férias, as visitas ao Diário da Fonte escassearam. Há uma fuga vagarosa, mas firme e imagino que sejam as posições que defendo, a começar por Pedro Simon, que teria afugentado meus leitores do Rio de Janeiro, que definitivamente não gostam do Garotinho. Defender Parreira e a seleção também deve ter colaborado com isso. Ficar a favor da Igreja Católica não vai melhorar as coisas. Também tenho me afastado da poesia, o que incomoda, pois vejo que muitas pessoas lêem este espaço em busca do poético e não das minhas posições. As histórias curtas, todas sobre violência, não colaboram em nada. No Comunique-se, o retorno é praticamente zero quando publico conto. Mas continuo insistindo. O conto, as posições, a teimosia em temas e idéias, continuam por aqui, com ou sem aceitação. Fiéis leitores têm colaborado com belos comentários. Às vezes o retorno me surpreende, como foi o caso de Flavio Lago, que se identificou com o estranho personagem Írio, que fez um gesto de coragem e foi punido por isso. Escreveu Flavio: " Alô Nei. Fazem dias que leio os seus comentários e preferi ficar no silêncio. Finalmente este conto me tocou o coração. Me transportou para outros lugares onde andei e presenciei injustiças. Quando estive no Afeganistan, e Bosnia fui deparado com questões morais, que tive que tomar uma posiçãoo que nao eram populares. Lendo este conto fico contente por ter feito o que era certo.Obrigado. Flavio Lago | 07.06.06 - 6:19 pm "

FILMES - Continuo vendo um filme atrás do outro. A morte no cinema espanhol mexe com todo mundo. O Sétimo dia, de Carlos Saura, é um petardo. Filme impressionante, sobre o rancor no interior do país, numa aldeia em que dois velhos se tornam serial killers. Toda a seqüência do massacre já nasceu um clássico do cinema de extermínio, a que me referi aqui. E a cor, a paisagem, os personagens, a narrativa, tudo é fortíssimo neste filme de Saura, com presenças violentas como a de Victoria Abril, atriz de primeira grandeza, que compõe um perfil de ira e demência como poucas vezes vi no cinema. Mar adentro, também espanhol e também sobre a morte, emociona e incomoda. Brava gente, de Lucia Murat, apesar da pobreza de recursos, que pesa na produção e no resultado final, é interessante, mas nem chega aos pés do seu Quase dois irmãos, que já comentei aqui.

RETORNO - Imagem de hoje: o ator Juan Diego no filme O Sétimo Dia, de Carlos Saura.

9 de julho de 2006

A VIUVEZ DO MONOPÓLIO




E eis que no apagar das luzes da Copa, o queridinho do monopólio global, o Zizou, mostrou a que veio: deu uma cabeçada, sem bola, no peito de um jogador italiano e por isso foi expulso e saiu vaiado do estádio e do futebol. Mas que categoria, como diria Galvão Bueno. Que craque, que maravilha, isso sim que é jogador e não as porcarias que temos no Brasil. O brutamontes morreu para o futebol e deixou viúvos o Galvão Bueno e todos os que adoraram a desclassificação do Brasil, que confirmou enfim que somos todos vira latas e que os europeus sim é que são as cocadinhas pretas do papai.

O monopólio ficou viúvo e aquele considerado tão sedutor, aquele que só era referido por nome, sobrenome e apelido - Zenidine Zizane, o Zizou - (como sempre aconteceu na crônica social a la Ibrahim Sued), chamado de maestro e sei lá mais o quê, comportou-se como um meliante, como um gângster. Achou que estava já bicampeão, pois tinha convencido o Brasil que somos horrendos e era só colocar a mão na taça. Pois não foi assim. Os italianos levaram a melhor nessa Copa, um evento que terminou empatado e só houve decisão nos pênaltys, a mostrar que qualquer país pode perder de um a zero, empatar de um a um e para isso não precisa ser achincalhado como foi a seleção brasileira.

No finalzinho de tudo, furioso pela viuvez prematura, sem seu Zizou do coração, Galvão Bueno teve mais um dos seus célebres surtos e começou a dizer que a seleção brasileira não jogou (apoiado pelo songa-monga do Casagrande). A França empatou dois jogos na primeira fase, só venceu o Togo e assim mesmo não foi destruído pela mídia francesa. Nossa mídia fez exatamente o contrário. Fomos os primeiros do grupo, demos duas goleadas, perdemos apenas de um a zero e pronto, são todos pernas de pau, vendidos, nojentos, não jogaram. Como não jogaram? O adversário foi superior naquele jogo e a seleção estava dividida e travada, açulada pela mídia comprada. Dida fechou o gol, Zé Roberto jogou o fino, Ronaldo fez três ao longo da Copa, Cafu, apesar de tudo, com dois anos a mais que o Zizou, deu combate o tempo todo nos jogos em que participou. Faltou Alex, faltou mais coesão, mais garra, mas isso não significa que não jogaram.

Quem não bateu na bola, não fez gol nem nada foi o Galvão Bueno e seus epígonos, que ganham os tubos para trair a seleção. Raça de víboras. Eles envenenam a opinião pública, impõem apenas uma visão de jogo. Só vale a percepção deles. E todos embarcam, vestindo camisas de outros países. Vi gente envergar a camisa de Portugal. Foram derrotados duplamente.

Pois eu digo, professor Parreira: essas pessoas que devem a vida a você, porque você foi o campeão que nos trouxe de volta a taça depois de 24 anos de espera e de derrotas, esses caras que agora te perseguem, não valem o que comem. Você nos colocou no alto do pódio, classificou a seleção pentacampeã numa campanha em que fomos os primeiros, montaste um time de craques, mas não foste feliz, não conseguiste romper a barreira dos interesses, da má fé, da divisão interna. Tiveste que enfrentar tanta coisa, a começar pelo próprio presidente que se me meteu para ajudar a desmoralizar nosso craque, e muitos outros, todos cheios de razão, envergando a camisa amarelinha para no primeiro minuto após o jogo da França jogarem fora, como se tivesse empesteada. Tiveste que sair pela porta dos fundos do aeroporto, para não enfrentar a sanha dos que foram envenenados pela mídia, os que viram um jogo narrado pelo ódio e a traição.

Pois como notou um rapaz que veio no ônibus, e se aquela bola do Ronaldinho Gaúcho entrasse? A história seria diferente. Mas ninguém lembra. O mesmo rapaz disse para a mãe dele: deixa a bandeirona do Brasil aí, ela vai ficar até cair, não mexe não. Os patrioteiros como Galvão Bueno, os gigolôs e proprietários da nação, foram desmoralizados, gostam mesmo é do bandido que derruba covardemente o adversário num lance sem bola. O patriotismo é outra coisa. Mora no coração e na mente, porque sabemos: sem pátria, não sobreviveremos. É tão simples assim.

RETORNO - Parabéns, Mestre Mino Carta. Você merece comemorar mais essa esplêndida vitória da seleção da terra em que nasceste. Lembro daquelas duas capas da Senhor, em 1982 e 1986, em que colocaste uma bola murcha e o título: e agora vamos falar sério? Querias aqui um país de verdade, Mino, e sempre te revoltaste contra essa festa asquerosa que aliena a população, e que se mostra tão traiçoeira na primeira derrota. Parabéns pela tua seleção, tetracampeã por merecimento.

SHALAKO: SEM TRADIÇÃO NÃO HÁ RUPTURA





Vi Shalako, o filme de 1968 do canadense Edward Dmytryk, baseado em livro de aventuras de Louis L´Amour, com Sean Connery e Brigitte Basrdot, além de Jack Hawkins e Stephen Boyd. É o que chamávamos de filmaço. Um take: os invasores da reserva têm até o amanhecer para deixar o forte, mas eles não obedecem; pois pinta o primeiro raio de sol que incide diretamente no punhal do indígena que inaugura o ataque. Uma seqüência: a apresentação do personagem, que começa com o protagonista misturado à pedra; e a sua despedida, em que ele está confundido com o deserto. Os filmes que consideramos tradicionais são fruto de poderosa síntese, de algo anterior a eles. Para romper com essa tradição, é preciso levar em consideração o modelo. Você não rompe nada por si só, você quebra em relação a alguma coisa. Os cineastas americanos foram cultuados pelos teóricos e vanguardistas franceses, mas essa lição jamais é aprendida. Achei Shalako demais. A poderosa narrativa é uma lição de cinema e merece ser analisada.

FERAS - A primeira cena mostra um bando de feras, os seguranças de um safári de artistocratas, encurralando um puma com gritos e barulho de pedra na panela (lembra Sam Peckimpah em Wild Bunch, em que meninos colocam um escorpião no formigueiro). Uma vez Orlando Villas Boas me contou uma história, repetida por ele em várias outras entrevistas, de que os mateiros imobilizavam a onça que rondava o acampamento fazendo barulho de pedra na panela. O filme mostra o conflito em várias situações. Essa, a dos cowboys que acompanham a jornada e que estão de olho nas riquezas e nas mulheres dos nobres que passeiam pela reserva indígena; a dos índios contra os intrusos; a de Shalako, o herói que tenta evitar o confronto e acaba se opondo aos líderes dos ricaços; os casais que não se entendem; as nações, representados pelas várias línguas (inglês americano, inglês da Inglaterra, língua nativa, espanhol); os que estão a cavalo e os que se movem a pé; a perseguição e o cerco,; o esconderijo no alto do platô e o ataque vindo de baixo; entre muitos outros. Há conflito o tempo todo conduzindo a história para a morte, o sufoco, a frustração, a dor e o impasse (o acordo que não vinga entre duas civilizações que não se reconhecem). É muita coisa para o que deveria ser um simples faroeste.

PRIMOR - A escolha e direção dos atores é primorosa. O vilão, Stephen Boyd (excelente), com o olhar de águia e sorriso maroto; o mocinho, Sean Connery, o cavaleiro solitário que atrai com seu charme a condessa vazia e enojada; Brigitte Bardot, maquiada até o osso, exatamente para se contrapor à paisagem rude (ela começa vestida e acaba sem roupa, numa cena de nu famosa e sem nenhuma apelação, o que deveria ser uma lição para os cineasnos que dominam o cinema hoje); Jack Hawkins, perfeito como sempre como o nobre desesperado por não ser amado pela mulher que adora; Alexander Knox, o senador bêbado e ridículo que tenta demonstrar a força que não tem; e Peter van Eyck, o Barão prepotente que aprende uma lição no lugar que despreza. O uso recorrente do contra-plongée (aquela tomada de baixo para cima que contrapõe o personagem e, neste caso, o céu azul) serve para expor a soma de conflitos em cada um dos principais envolvidos na trama. É muito para um filme comercial, que dá de dez em muito filme dito de arte.

BÁSICO - É na narrativa que os filmes de arte, em sua maioria, falham e expulsam as pessoas do cinema. Vejo Shalako como um filme de vanguarda, de ruptura com esquemas tradicioanais. Pois os índios têm voz e razão, apesar de os conflitos básicos entre raças continuarem intactos (não mantê-los seria mentir). Feito em 1968, o ano chave da nossa cultura (ano que acabou, por certo), é mais uma demonstração de força dos anos 60, esse mito do tempo que não deixou descendentes. Mas Shalako tem vários elementos do cinema clássico: o foco no personagem principal (tudo agora em redor dele, sem que a obra fique prejudicada), que fisga a identificação com o espectador, pois estamos sós nesta vida, do nascimento à morte; os conflitos que prendem a atenção (se não há conflito bem amarrado, perdemos o interesse); o humano visto em sua diversidade (o barão nem sempre perde; ganha quando decide subir a montanha e levar o grupo consigo); a crueldade (a cena dos índios fazendo rodízio com a mulher é impressionante) costurando as cenas; e muitas outras coisas. É possível gerar ruptura a partir do que a tradição nos ensina. Shalako, imperdível, é uma vitrina de possibilidades. Deveria ser visto com cuidado por cineastas brasileiros, que costumam afrouxar a narrativa em favor de intenções que ficam ocultas. Bons sentimentos não garantem um filme. É preciso saber fazer.

RETORNO - A imagem é de Sean Connery e Brigitte Bardot no intervalo das filmagens de Shalako. No filme, ela mata um puma. Cinco anos mais tarde, em 1973, Brigitte começa sua campanha a favor dos animais.