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22 de julho de 2006

PAMPA EM 23: UM ROMANCE FUNDADOR


Romance fundador pode ser comparado a um marco de pedra na fronteira seca. É linha divisória e parâmetro num ambiente que foi riscado pela guerra. Quem passa por ele aprende a se situar, reconhecendo assim a identidade de algo que está oculto num lugar onde tudo parece ser idêntico em qualquer quadrante ao seu redor. O marco faz parte da região, no caso, a literatura, mas dela se destaca porque define algo profundo. Esse contorno não se esvai na chuva, não é colhido pelo tempo. Fica de pé, a exemplo de um acordo entre povos que se respeitam por gerações. E serve de guia para os viajantes, os leitores, que sabem, a partir dele, o lugar onde estão pisando. Assim é o romance Pampa em 23, de Ubirajara Raffo Constant, lançado em 2004 e até hoje cercado pelo silêncio e a solidão, apesar da sua presença definitiva como obra de referência na cultura brasileira. Trata-se de um romance fundador, que extrapola sua condição de obra literária e se transforma, ao fim da leitura, num lugar onde podemos morar.

Com quase 500 páginas, a obra encerra os fundamentos de uma nação soberana, o Brasil que lutou por gerações por vasta porção de território que agora nos pertence. Como camadas de alicerces que se somam para que haja permanência do que revela, podemos destacar três abordagens, que se misturam na narrativa, composta de vários vetores da linguagem. Vamos utilizar a divisão escolhida por Euclides da Cunha (terra, homem, luta) sem ter a intenção em descobrir na nova obra alguma semelhança com o clássico sobre Canudos (com o agravante de que qualquer obra sobre a luta fraticida, comparada com Os Sertões, desempenharia um papel coadjuvante). Trata-se apenas de homenagear o cânone, usando, nesta resenha sobre um romance que desponta agora, apenas uma de suas vestes.

O objetivo é revelar os mecanismos do ofício engendrados no romance, sem despojar a criatura dos seus encantos. E descobrir nele a sua originalidade, que é o resultado do talento misturado com suor, já que a ampla pesquisa abusa tanto do plano geral (a História) quanto do detalhe (o cotidiano resgatado em suas minúcias). A contribuição de Ubirajara Raffo Constant vem mesclada numa tormenta de discursos, numa saraivada de palavras típicas da região (o sudoeste gaúcho), numa alternância de estilos e gêneros e em algumas cargas pesadas de cavalaria, tanto no início, quando se despejam miles (para usar uma palavra recorrente na obra) de personagens, quanto no final, quando as batalhas inundam o pampa de sangue. Antes que os apressados desistam de saber do que se trata, por desconfiarem que todo romance com essas roupagens tem o mesmo rosto, é preciso adiantar que em qualquer país civilizado é permitido ousar em assuntos aparentemente já conhecidos. Há lugar para inúmeros criadores na mesma estrada por onde trafega a mesma terra em conflito e a mesma humanidade em luta por seu destino.

Constant não se apega às versões consagradas quando levanta cada palmo de chão onde pisam seus personagens, reais ou inventados. Ele vai fundo para descobrir a origem de cada palavra, de cada episódio da história próxima ou distante e instaura um debate permanente sobre a geografia e os desdobramentos históricos. Sobram exemplos sobre sua inquietude, que é a marca registrada dos habitantes da cidade onde nasceu e se criou, Uruguaiana, na fronteira oeste gaúcha. Os uruguaianenses são, antes de tudo, polêmicos. O conflito faz parte de cada momento da conversa e quando ele está ausente, acaba sendo provocado, só pelo hábito. Constant faz jus a esse perfil, e toma partido sempre, tendo o cuidado de esmiuçar as posições em contrário, pois também faz parte do ethos local o senso de justiça, o reconhecimento do valor dos adversários, tanto na palavra quanto nas armas.

TERRA - Para chegar à luta, a revolução de 1923 (resultado de uma campanha de reeleição fraudulenta e mal resolvida) em Uruguaiana, o autor se debruça sobre a paisagem. A Terra é descrita por ele com o apuro do cenógrafo e do artista que sempre foi, o que o destaca como uma das figuras mais admiradas e queridas da cidade. O poeta Constant, criador de notáveis versos nativistas, foi o responsável pelos cenários do filme A Intrusa, de Carlos Hugo Christensen, estudou escultura com Vasco Prado, pintura com Paulo Porcella e xilogravura com Danúbio Gonçalves e Zorávia Bettiol. Essa formação completa se dedica à paisagem como um ourives diante da jóia. É mais do que uma descrição, é uma incorporação, pois a narrativa, que conta com pequeno glossário no final (precisaria ser bem mais extenso), assume o enfoque da região, toma partido também ao descrever a geografia, que assim se torna uma geografia de linguagens.

O leitor fica conhecendo o que é uma estância, o que acontece num domingo de sol no interior, qual a sensação de ver um guerreiro a trote emoldurado no entardecer por uma serra distante. Sabe agora o que é um tigre cevado, o que viciou em carne humana, e o que esse perigo significa na vida dura da campanha. Desce ao detalhe das raças de criação, dos cavalos e suas origens e portes, dos bois, das sangas, das árvores. A terra se mistura ao sangue humano quando nele se deposita o corpo dos guerreiros que até dias antes viviam em paz e sossego, apenas rememorando batalhas antigas e desconfiando de que algo iria acontecer. A terra, que era ameaçada apenas por animais selvagens, torna-se bruta pelo embate dos homens. A geografia, então, se retorce como numa história absurda de pesadelos.

HOMEM - O homem, a mulher, a criança, o idoso, todos se confraternizam, primeiro, num entrelaçamento de linguagens diferentes. Há a linguagem culta, dos estancieiros, como Cilano Bento (protagonista fundamental na obra) e seu pai; dos visitantes ilustres vindos da Europa, como o inesquecível Honoré, o francês que pertence à linhagem de Saint Hilaire e comenta a obra do antecessor; dos peões (ou peães, como quer Constant) da fazenda, como Liberato, o apaixonado e exímio cavaleiro, todos com as palavras à vontade, muitas vezes truncadas. Há ainda o mutismo dos excepcionais, como Sabugo ou o anão que assombra o final do romance em rápida aparição. Existe também a fala dos facínoras, todos cinematográficos, como a dupla que chega para fazer baderna num bordel de campanha, ou os degoladores que envergonham os guerreiros idealistas. As senhoras, recatadas e graves, as moças, apaixonadas e vibrantes, os rapazes, debochados e cavalheiros, as crianças, cheias de talentos dos adultos, como cavalgar, por exemplo: tudo isso inunda o romance, junto com os tilburis, os cães, as carreiras. Sem mencionar a culinária, presença marcante no livro, com detalhes de pratos saborosos em várias páginas.

A descrição da confeitaria Campana, célebre lugar de encontro dos habitantes de Uruguaiana (e que mais tarde pertenceu ao meu tio Nico) é descrita com requinte de conaisseur. A belle época da fronteira, desconhecida do resto do Brasil, ali é revisitada com tudo o que temos de direito, desde as vastas prateleiras com todos os tipos de bebidas importadas e nacionais, até a confeitaria que fazia a alegria da meninada.

LUTA - A luta tem seus antecedentes na campanha política, com o foguetório, os discursos em praça pública, as aglomerações, os boatos, os conflitos, as dissidências, os arreglos e os desaforos. Tudo descamba para a guerra na cidade e no campo. A descrição de uma das batalhas, que ocupou a esquina da casa onde me criei, em frente ao Colégio Santana, é impressionante.

As cargas épicas de cavalaria, o destemor diante das balas e lanças, avançam no final do romance como uma tempestade. Apesar de reconhecer as razões, o brio, o valor e a honradez dos maragatos (revolucionários, de lenço vermelho) o livro toma partido por Flores da Cunha, o legalista heróico (chimango, de lenço branco). Faz parte da concepção do romance, que é um mergulho na autenticidade, forjada exatamente nesse tipo de luta. Constant, assim como o resenhista que agora o aborda, foram criados com os mesmos valores, no mesmo lugar. Com o tempo, nos tornamos irmãos de letras. Posso dizer-lhe com franqueza: nossos Honório de Lemos (o dele, histórico, o meu, descrito no romance Universo Baldio, e lançado no mesmo ano de 2004, puro mito) acabam no mesmo lugar: frente a frente com Flores da Cunha, sob as vistas de Oswaldo Aranha. Na minha visão, Honório teve tantas vitórias quanto derrotas e não quase que só derrotas, como neste romance de Constant. Mas isso não importa. O que vale é que os fatos assomam com nitidez e grandeza nesta obra, que não se limita apenas ao século vinte.

Existe uma boa parte do livro dedicada aos séculos anteriores, com detalhes sobre a guerra Cisplatina, a independência do Uruguai e da Argentina, a guerra farroupilha e a fundação de Uruguaiana. É um romance que coloca aquela fronteira no mapa da literatura universal, não pela primeira vez, mas de forma definitiva. Cumpre essa missão com a marca da terra, a autenticidade, o que inclui uma carpintaria pessoal sem as preocupações do texto sem defeitos. Como as linguagens pesquisadas em livros de memórias, jornais da época, pronunciamentos políticos, ordens de serviço, são incorporados à narrativa, a precariedade costuma emergir. Isso poderia ser considerado um defeito, principalmente depois de tantas experiências literárias nos últimos cem anos, mas é a forma de Constant demonstrar seu apreço ao que aprendeu.

Ele nos traz esse universo quase intacto e o faz conviver com a invenção das suas histórias, onde entram as corridas em cancha reta e os encontros nos bolichos, as lutas de faca em campo aberto, as cenas das fazendas, o anão que acompanha o casal de velhos escondidos no ermo, além dos sonhos onde as amadas aparecem em cenários prateados e as assombrações em que donzelas se transformam em monstros. Qualquer crítica que se queira fazer a essa ou outra repetição de soluções de linguagem, de excesso de detalhes considerados às vezes sem importância, o que deve ser visto é que esta é uma obra completa, que contém a saga de uma região fundamental para a História e a literatura do país. Seu material foi colhido na fonte e brota das páginas como cascata, cruzada de vez em quando por poemas, pois um poeta é síntese por vocação mas quando é necessário esbalda-se no excesso.

Pampa em 23 é um romance para ser saboreado, como a refeição que começa no chimarrão e acaba na sobremesa. Ou como a batalha, que começa na coragem e termina na paz verdadeira.

RETORNO - Todas as imagens de hoje são de Felipe Constant, filho do autor. Felipe também fez ilustrações especiais, primorosas, para o livro, editado pela Renascença, de Porto Alegre (51 - 3334 4399). "Pampa em 23" pode ser encomendado diretamente com o autor pelo e-mail: anderson@portaluruguaiana.com.br (por especial obséquio de Anderson Petroceli).

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