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4 de junho de 2006
DICKENS E NASSAR NO CINEMA: TRANSGRESSÃO E PERMANÊNCIA
"Todos cansaram da transgressão", diz Roman Polanski no making off de seu Oliver Twist. "É hora de voltar aos clássicos". Mas os clássicos assim são chamados não porque estejam imóveis e inatacáveis no tempo, mas porque conseguem obter a permanência ao encarar de frente a transgressão. O órfão de Charles Dickens filmado por Polanski é não apenas o resgate da infância sofrida do cineasta (que teve o país e a família destruída pelo nazismo), ou um tributo ao escritor inesquecível do século 19, mas uma evidência da atualidade da trama. Como Dickens conseguiu esse milagre? Encarando a infância de frente e apostando no humano em cada personagem, como por exemplo, a possibilidade do Mal na inocência, e vice-versa. Com esses recursos, além de destacar coisas como o perdão concedido pela vítima ao seu algoz, Dickens conseguiu equilibrar tradição (a narrativa clássica) e ruptura (as crianças envolvidas no sistema doentio dos adultos e tendo que entrar forçosamente na luta pela sobrevivência).
Do mesmo modo, a parábola do filho pródigo, revista por Raduan Nassar em Lavoura Arcaica, deixa-se confrontar pela desconstrução familiar, o choque de gerações, a explosão da sexualidade minando o comportamento reprimido. Luiz Fernando Carvalho acompanha essa dialética que gera permanência: a narrativa literária parte do indivíduo para definir a comunidade, e a composição visual faz o close claro-escuro duelar com a paisagem iluminada e perfeita. As cenas externas são a sintonia mais explícita entre esses dois filmes que não se tocam: a viagem de Oliver em direção a Londres em Polanski, e a fazenda dos irmãos atormentados em Carvalho, nos revelam o retorno ao clássico sobrecarregado de transgressão, o que pode garantir a permanência das duas obras nesta época de culturas descartáveis.
MARX - Mas como é inútil deixar Marx de lado em qualquer análise que se faça, deve-se jogar um spot sobre as causas das duas situações. Os órfãos que são treinados para o roubo fazem parte da exclusão social do capitalismo nascente e Dickens fala essencialmente de luta de classes: o judiciário e a polícia a serviço do muro imposto entre pobres e ricos; a pena máxima para o crime contra a propriedade; o uso da exclusão social para os interesses do Império (como na cena em que Oliver destrincha corda para fazer estopa que será usada pela marinha mercante). Em Lavoura Arcaica, toda prisão que provoca desespero e desejo de vingança e fuga vem das amarras econômicas. É preciso trabalhar antes do sol nascer até ele se pôr para que haja comida na mesa; todos os braços da família são fundamentais para que haja sobrevivência. Sair, como faz o filho pródigo, significa não apenas cravar um punhal de ingratidão à família que o gerou e o formou, mas um baque nos rendimentos familiares, que ficam assim desprovidos de braços para o sustento.
LIMITE - A literatura, e seu aliado, o cinema, é o caminho mais contundente para denunciar, descrever, criar vida a partir dessas situações limite. Roman Polanski, aos 72 anos e com filhos para criar ( um com sete e outro com 13), deixa de lado a transgressão pura e simples (como em "Repulsa ao sexo") e volta-se para o lado dark de Dickens, colocando cruamente crueldade e assassinato na tela. E Luiz Fernando Carvalho mantém-se fiel ao seu estilo rigoroso e denso, que adotou na televisão e não abre mão nos seus filmes. Não são cineastas que vieram ao mundo a passeio. Trabalham contra a corrupção cinematográfica que tomou conta da indústria. Deveriam ser escancarados na televisão aberta, em horário nobre. Seria um impacto cultural tremendo, com frutos valiosos em pouco tempo, pois suas sementes poderiam germinar rapidamente em terreno fértil, pois a população está seca por cultura e arte, apesar do achincalhe e do deboche dos impostores que dominam a telinha (e fazem toda força para destruir qualquer réstia de inteligência no cinema).
RETORNO - Imagem maior: Ben Kingsley (Fagin) e Barney Clark (Oliver Twist); a menor: Juliana Carneiro da Cunha em Lavoura Arcaica.
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