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10 de fevereiro de 2006
LOST SUBVERTE O TRAÇO
A Globo ficou surpresa com o Ibope da série Lost, exibida já no território do Programador do Traço, aquele sujeito que espera todo mundo dormir para só então colocar no ar alguma coisa que preste. Desta vez o pessoal ficou de olho grudado na tela. Meu dentista diz que dorme agora só quatro horas, mas não perde um capítulo. Já vi três e achei bom. Pode piorar, mas talvez não. O tema é uma situação literária clássica, o de pessoas civilizadas repentinamente cortadas dos seus laços materiais e sociais. Tudo sob a ótica do Círculo de Giz da América, o território virtual que funciona como uma jaula mental e do qual nenhum americano consegue escapar, seja ele quem for.
LÍDER - O desastre que foca um protagonista cada vez é também algo já explorado no cinema, mas como vivemos a época de refilmagens e reprises, agradecemos o fato de uma série aproveitar pelo menos algumas boas idéias. Achei mais significativo o capítulo sobre o líder. É a velha obsessão de winners e loosers. O filho de um perdedor se recusa a assumir seu papel de líder, reivindicado pelos outros náufragos. Mas existe um guru oculto no grupo, o cara da faca, o falso coronel que precisou provar que não era uma ilusão sua vontade de viver num ambiente hostil e sair-se bem dela. Por ter sido feliz no seu rito de passagem (conseguiu matar o porco selvagem que assustava a todos e era necessário para a alimentação) ele se torna uma espécie de conselheiro que jamais reivindica o crédito. É ele quem estimula o médico a assumir a liderança e assim passar por cima das caraminholas colocadas na cabeça do filho pelo pai alcoólatra. O desfecho do episódio tem aquela filosofia barata que encanta a narrativa recorrente dos gringos: precisamos nos unir, acabou o individualismo, estamos numa situação terminal, vamos resgatar os princípios sagrados da América. Caras significativas. Olhares para o infinito. O truque sempre funciona.
CONFLITOS - A porção étnica da América é representada pelo casal coreano e os dois negros, pai e filho que viviam separados. Não é de espantar que o avião tenha caído: cada um levava uma carga pesada nos ombros. O médico carregava o caixão do pai, a coreana queria fugir do marido mas não conseguiu e por isso embarcou, o pai não conhecia o filho e viajava a primeira vez com ele, o coronel era zombado pelos colegas jovens do trabalho e assim por diante. Há um drogado, um obeso, uma grávida, um aproveitador, intensificando assim a carga de conflitos que movimentam a trama. Os temas pontuais emergem com força: a submissão da mulher (você tem certeza que quer fugir dele? pergunta a amiga) , a dependência (é melhor me devolver agora o que você tem no bolso, diz o coronel para o jovem guitarrista), o assédio (suas pernas são muito finas, diz o espertinho para a loira), a exclusão (ninguém me olha nos olhos, diz a grávida). Há decisões do roteiro providenciais: o líder encontra uma cascata de água potável, a ilha tem recursos de alimentação, há uma barreira magnética impedindo a comunicação e todos mantêm sua aparência civilizada. Essa é uma ajuda da produção, famosa nos filmes americanos, desde a época em que as estrelas cruzavam o deserto sem perder o prumo do penteado. É uma obrigação: o cidadão americano jamais pode deixar de aparentar o que é. Ele vive numa civilização de aparências, de representações.
LIMBO - "Para mim, acho todos já morreram" , diz meu dentista. "Eles estão no limbo, decidindo se vão para o céu ou inferno. Mas isso não saberemos, pois a série já está no segundo ano e nem sinal de ajuda". O que atrapalha são as coisas assombrosas sugeridas por algumas caras de espanto. É o velho medo da América diante da natureza. Por temerem as matas é que destruíram tudo o que tinham. Eles acham que monstros se escondem nas plantas. Mas a série, pelo menos, dá para ver. Já é alguma coisa, para quem gosta de TV e acaba sempre desligando quando as opções são Hebe, Galisteu, Gilberto Barros, novela e outras coisas terríveis.
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