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3 de dezembro de 2005

A CELEBRAÇÃO DE CADA VITÓRIA



Vida é lavoura e a celebração a sua transcendência. Sabemos para onde vamos, ao pó, por isso cada momento em que conseguimos atingir algo que nos custou suor e sangue deve ser digno de nota. Isso impede que nossa viagem pela terra seja uma sucessão de eventos em direção ao nada. Enxergar o avanço em meio à tormenta deve ser motivo, se não de festa, pelo menos de um brinde, de um soco no ar, de uma confraternização. Tive a oportunidade e o privilégio de assistir a uma dessas comemorações, quando passei pela minha cidade semana passada. A reunião da família Ramos foi um jantar festivo para homenagear o primogênito Willy, que completou 70 anos. A brilhante peça de oratória, de texto enxuto e emocionante sobre a memória familiar, escrito e dito em voz alta e pausada pelo irmão José Vicente, resgata uma trajetória comum e ao mesmo tempo especial, em que se sobressai a vivência de pessoas unidas pelos gens e pelo compartilhar dos anos, e que é depositada na presença do homenageado como um coroa de louros (a representação da majestade legitimada pela natureza). A festa serviu para reunir parentes próximos e distantes e mais um punhado de amigos, todos se revezando em poemas, cantos, discursos e até choro, por parte das netas, que não conseguiram segurar a emoção ao falar do avô. O que tem de excepcional essa noite singela, que poderia ser identificada como um encontro comum de pessoas lutadoras? Exatamente a celebração de um feito, a vida longeva, o que não é pouco no atual massacre em que estamos mergulhados.

BOSSA - Devo a Arthur Ramos, o irmão de Willy, José Vicente e Miguel, a minha formação musical. Quando a Igreja Católica inaugurou em 1962 a rádio São Miguel, o objetivo era se contrapor às rádios comerciais que enchiam os espaços de propaganda e som de péssima qualidade. Não havia comerciais gravados (o modelo era a rádio Guaíba, de Porto Alegre) e de manhã à noite existiam inúmeros programas inesquecíveis. Eu ligava direto na São Miguel para escutar todo o João Gilberto, Nara Leão, Chico Buarque, Tamba Trio. Arthur, um intelectual dedicado à comunicação de massa, que já se foi para o Outro Lado, era radical. Colocava jazz, música européia, música orquestrada, as jóias da música de todos os países, e quebrava no ar os discos que considerava uma grande porcaria. Vejam que nível alcançamos há cinquenta anos, quando ainda estávamos em pleno Brasil soberano. É por isso que eu passava em frente à vitrine da Casa Jacques (que acabou e deixou um espaço nobre que deveria ser muito bem aproveitado, já está situado no miolo da cidade) e via as capas dos discos de bossa nova da Elenco, selo antológico criado por Aloysio de Oliveira, e não estranhava. Já estava fisgado pela sofisticação da música popular, que se serviu do samba e de toda a tradição da música brasileira para deslumbrar o mundo. Graças a Arthur Ramos, o maior programador musical da rádio brasileira de todos os tempos.

AMIZADE - Na festa, vimos como nasce no coração de uma família um talento como o de Miguel Ramos, que um dia desses, ao chegar num festival de cinema, foi homenageado por Paulo Betti. O excelente ator e agora cineasta interrompeu uma entrevista coletiva para dizer alto e bom som o que já foi dito anteriormente aqui no Diário da Fonte. Disse Paulo: "Agora me dêem um tempo pois quero cumprimentar o maior ator do Brasil". É uma realidade, fruto desse entorno familiar, que serve de ambiente, estímulo e até mesmo de contraponto, pois Miguel não é uma pessoa cordata, antes é um vulcão de pessoa, que não foge a nenhum conflito. Mas quem o conhece, sabe: ali está uma pessoa verdadeira, a quem agradecemos pela amizade. Miguel foi o anfitrião da festa, fazendo o meio de campo para várias atrações, entre elas a voz afinadíssima da esposa Clênia, diretora de teatro e filha de escritor, que nos brindou com clássicos da música popular. E também a excelente performance de Silvio Genro, compositor, intérprete e instrumentista de primeira, com sua banda.

RIR - Defina algumas metas. Se alcançou apenas uma, celebre. Lembre alguns momentos. Se eles te emocionam, festeje. Cumpra alguns compromissos. Se te custaram esforço, saia para comemorar. Reúna-se com seus amigos, surpreenda-os. Recorde o que os torna humanos. E ria do fim próximo, pois a paz de espírito vem da certeza que temos na vida eterna.

RETORNO - Uma celebração que me deixou impressionado foi a da vitória do Grêmio. Com o resultado milagroso (que arrancou gritos e pulos da torcida durante o jogo)a cidade toda saiu para a rua, num horário em que o grande calorão do pampa dava uma folga. Foi uma festa tanto para os campeões quanto para seus maiores adversários: os colorados apareceram para curtir a alegria dos outros e também para serem "corneteados". Os carros apinhados fizeram o desfile ao redor da Praça Barão do Rio Branco, enquanto na calçada as famílias, com os pequerruchos vestindo suas camisetas do time vencedor, caminhavam tranqüilamente. Não houve baixaria nem violência, e isso que tinha muita gente para lá da terceira dose. Sinal de alta civilização, essa de comemorar sem deixar um rastro de ruínas pelo caminho, como costuma acontecer nos grandes centros.

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