Nei Duclós
O frio sempre chega e nós, deste pedaço de terra, sabemos que nada pode contra ele. O Inverno voltou, e ainda é só o começo. (Reproduzo aqui crônica publicada neste domingo no caderno Donna, do Diário Catarinense).
O Inverno voltou e me trouxe o início de um resgate: o hábito de conviver com o frio que chega com vento, o gelo que acumula casacos nas paradas de ônibus, as mãos que se esfregam, os rostos vermelhos, as frestas escondidas, as manhãs e noites geladas. Ainda é só o começo, mas agradeço que desta vez ele tenha chegado na hora datada, pois no ano passado o frio deu as caras em maio e só saiu lá por dezembro.
INFÂNCIA - A presença em casa da minha neta Maria Clara intensifica o resgate. Ela está plena de si com seu casaquinho tricotado pela bisavó, a touca de lã cobrindo toda a cabeça e as mãos segurando agora os pezinhos (excelente exercício, que experimentei imitando-a, e que dá grande alívio à coluna). A voz já articula melodias completas, véspera da linguagem, e os gestos inquietos experimentam o derrubar de coisas, o pegar transitório, tudo acompanhado por um olhar atento. Há seriedade em bebês, um ofício que não é essa festa que imaginam. Os dentinhos que rasgam as gengivas por longas horas do dia, o arroto difícil de sair, a elaboração de mistérios como a chegada da noite (ué, não estava tudo claro até há pouco?).
Lembro da minha infância na cidade do pampa, que cruzava a família como um evento definitivo, que nos embrulhava em grandes pulôveres de lã, tricotados por minha mãe, sempre maiores do que éramos, pois crescíamos como palmeiras e não havia energia para acompanhar o ritmo. Quando a roupa enfim cabia nos braços longos e finos, o pulôver já era. Começava endomingado, para ir ao cinema, acabava na cama para arredar a friaca e terminava num canto qualquer, exausto do uso. As coisas eram feitas para durar.
Lembro de um sapato que usei por dois anos e que não acabava nunca. Acabei jogando futebol com ele e o bicho, firme. Era só dar um lustro e já servia para ir ao colégio. Acabei abandonando o par indestrutível no pátio chuvoso, pois queria ganhar sapato novo.
Maria Clara segue o ritmo dos nenês de hoje: roupa de um ano aos cinco meses, corpo que espicha e embochecha sem parar, o meio sorriso evoluindo para a gargalhada, a festa quando acorda e o silêncio de todos para fazê-la dormir. A infância é quando o tempo é a palavra coração.
CAFÉ - Implico com as idéias prontas sobre o Inverno: vinho caro, lareira, passeio na Serra. O Inverno popular é feito de outra natureza. A continuidade da abnegação diante dos rigores da vida, a necessária concentração para se aprofundar em alguma coisa, o estudo como companheiro e o sol tímido que é sempre uma celebração, salpicando no pátio a claridade maravilhosa pontuada de folhas e algumas flores que resistem. É tempo de mirar nos olhos e no rosto, nas falas e nos pensamentos, nas leituras e nos projetos. O frio sempre chega e nós, deste pedaço de terra, sabemos que nada pode contra ele. Agradecemos o calorzinho que fez em maio e junho, que chegou até a dar praia em alguns dias.
Mas agora é hora de esfregar as pernas, de pensar muito antes de lavar o cabelo, de perseguir chocolate quente e café feito na hora, de abordar caldos enfumaçados e de tirar da vista as defesas grudentas geradas pela noite. Um acolchoado pesado, um cobertor fino de lã pura, umas orelhas que jamais esquentam e lá vamos nós, ano adentro, em comunhão com esses raios que nos chegam em diagonal da estrela-dia. Onde se esconde teu coração neste Inverno que começa e não sabemos quando termina?
FUTURO - Quando as nuvens pesam e o vento Sul se manifesta, pensamos que estamos perdidos. Mas surge a manhã com sua neblina e tudo se resolve com a mesa familiar onde há amor, núcleo resistente deste país aos pedaços, quando nos unimos diante do futuro, esse sonho que não nos deixa, esse estranho que, de tanto insistir, torna-se nosso amigo.
RETORNO - Nesta reprodução, fiz mais algumas correções mínimas (um texto nunca fica pronto). Agradeço o retorno dos leitores do Diário da Fonte e do Donna, especialmente ao Tailor Diniz, que citou duas vezes esta crônica em seu blog (link ao lado).
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