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2 de julho de 2005

CINEMA NOVO, EVOLUÇÃO E RUPTURA




O Cinema Novo veio de dois vetores. Um deles é o oficialmente aceito, o da ruptura, por meio de Nelson Pereira dos Santos influenciado pelo neo-realismo italiano, e de Glauber Rocha, que bebeu em todo o cinema europeu do pós-guerra, de Visconti a Fellini e Ingmar Bergman (Glauber, é bom lembrar, originou-se do impacto promovido por uma troupe de vanguarda, com Lina Bo incluída, que instaurou em Salvador uma Roma Negra). O outro é mais polêmico, o da evolução, por meio de Anselmo Duarte e seu Pagador de Promessas, filme que é fruto do longo aprendizado do Brasil na sétima arte, incentivado pelas políticas públicas da era Vargas. Entre os dois vetores há um link poderoso: a amizade entre Glauber e Anselmo, antes que rompessem, e que os uniu pelo menos num projeto comum: o de filmar uma peça de teatro de Jorge Andrade. De Glauber saiu dessa peça Deus e o Diabo, e de Anselmo, Vereda da Salvação. Além disso, Anselmo garante que Glauber aprendeu a filmar vendo-o trabalhar no Pagador de promessas. Tudo isso ficou claro para mim ao ler e analisar, como membro da banca a convite do autor, o TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) do jornalista Wendel Martins, do Jornalismo da UFSC, o extraordinário Não dá para acreditar neste cara - Histórias e lendas de Anselmo Duarte.

VERSÕES - Estão de parabéns, além do autor, o orientador do trabalho, o prof. Ms. Ricardo Barreto, que conheço de longa data e o prof. Dr. Francisco Karam, ambos participantes dessa equipe maravilhosa do corpo docente da universidade que forma excelentes quadros para o jornalismo pátrio (disso sou testemunha e beneficiário, pois tenho tido o privilégio de trabalhar com vários ex-alunos que saem dali prontos). Na análise do TCC, sobressai-se também a profa. dra. Daisi Vogel, que fez minuciosa análise do texto, apontando qualidades e imperfeições com o um esmero e um cuidado que deveria ser imitado por todos aqueles que se dedicam ao ensino universitário. Minha participação foi encarar esse livro quase pronto como um exemplo de trabalho acadêmico, pois se baseia no que há de mais importante no aprendizado: o de que, na busca do conhecimento, trabalhamos sempre com representações. Começa pelo título: Não dá para acreditar nesse cara é um achado que revela o núcleo da exposição, pois chama a atenção para a evidência de que o texto vai abordar versões. Essa consciência é o caminho mais seguro para esclarecer fatos. Não se deixar iludir de que as coisas são como são, mas que elas são como são vistas e estudadas, eis o fundamento de todo mergulho num tema proposto. O título é também uma ironia e pega carona na falta de credibilidade que Anselmo adquiriu ao longo de seus relatos, quando costuma difundir diferentes roteiros para os mesmos episódios. Argumentei a favor do protagonista, que personifica, como ator, as situações que estão dispersas pelo tempo e reescreve, como todo diretor que se preze, os inúmeros roteiros que deságuam em momentos culturais decisivos, como foi o caso da vitória em Cannes, única do cinema brasileiro até agora.

SOLIDÃO - Mas é também um alerta de que esse Brasil resgatado por Wendel Martins é absolutamente inacreditável. Um Brasil que chega ao esplendor da sétima arte que é desconstruída a partir de 1964, pune o vitorioso e o arrosta para a solidão. A pornochanchada, que foi a seqüência horrenda do Cinema Novo, é o sintoma mais evidente dessa doença política. Wendel consegue trazer à luz, baseado em mais de 30 livros sobre o assunto e árdua pesquisa nos jornais da época, como aconteceu o fenômeno e como Anselmo foi levado contra a parede. Ele destaca a origem do Pagador, no teatro social de intensa dramaticidade surgido a partir da montagem de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues em 1955 e que na época das filmagens do Pagador (início dos anos 60) estava em plena maré alta. No primeiro capítulo, o autor costura essa história utilizando o esquema criativo do esqueleto imantado (conceito que criei para definir a estrutura de um texto), ou seja, segura toda a narrativa a partir de um episódio, a presença de Anselmo na estréia da peça de Dias Gomes, dirigida por Flavio Rangel e que tinha como ator principal, Leonardo Villar, que mais tarde emagreceu doze quilos para fazer na tela o papel do pagador. Depois do teatro, é a vez da industria cinematográfica brasileira, com todas as suas iniciativas e desastres, da Cinédia à Vera Cruz, da Atlântida à produção independente. As origens da trama também incluem as viagens de Anselmo à Europa, onde ele encarna o mito que todo diretor de cinema gostaria de personificar: o cara que esteve nas principais rodas e levou o maior prêmio.

ENTREVISTAS - O mais impressionante é que as versões de Anselmo fazem parte desse mosaico de versões históricas, não havendo descontinuidade entre a fala do personagem (e seus vários papéis) e o resgate dos marcos da produção cinematográfica no Brasil. Isso impede que o trabalho se dedique às revelações mais intimas do encontro entre o repórter e protagonista, com exceção de uma: a de que Anselmo, aos 85 anos, sofre de mal de Alzheimer, fato que a família não gosta que abordem, com toda a razão. A doença prejudicou a memória de Anselmo em duas das quatro entrevistas exclusivas feitas por Wendel, mas há uma diferença: enquanto nas primeiras Anselmo fala sem interrupção, nas duas outras ele é entrevistado com perguntas pontuais, para evitar que se perca. Esses detalhes dão o perfil desse TCC que contribui enormemente para a compreensão não apenas do personagem, mas da história do cinema brasileiro. Na bibliografia, Wendel destaca o livro Esse Mundo é um pandeiro, de Sergio Augusto, fundamental para colocar a importância da época da chanchada.

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