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23 de agosto de 2004

O PASSO A MAIS DA PÁSSARA


Nenhuma palavra te serve de consolo, Daiane, já que não conseguiste a medalha que justificaria todo o teu esforço. Mas eu não poderia deixar de dar meu testemunho. Vi como esse falso jornalismo de comportamento (que desvirtua uma invenção antiga, a materinha humana) te extraiu até o último choro e como os urubus voltearam tua dança farejando ouro. Só que não tinhas uma vitória olímpica para oferecer, Daiane, pois o quinto lugar não sobe ao pódio. Tinhas muito mais, mas disso não cuidaram, porque as atenções estão focadas no que não interessa, no que é sabido até o osso. Jamais atentam para o que vale realmente, o que nunca foi feito, o que é invenção pura, marca registrada da civilização a qual pertences, a qual todos deveríamos pertencer, a civilização do Brasil soberano.

IMPULSO - Homenageaste Waldir Azevedo e seu clássico Brasileirinho, Daiane, para provar o quanto estás mergulhada nas raízes que te formaram, no teu povo sem máscara, na tua vocação para o vôo. Porque todas as outras saltam, Daiane, fazem piruetas, cumprem o regulamento, são perfeitas nas cambalhotas, na queda, nos gestos, no timing. Só tu, pequena pássara, voa de verdade. E porque voas tentaste o desenho mais ousado. E porque voas deslumbras especialistas que não entendem como o peso do teu corpo some quando te despedes do solo. É que eles não entendem a vontade que temos de voar. Homem voa? perguntavam para Santos Dumont menino. Voa, respondia e por isso era alvo das vaias dos outros. Ele descobriu que deveríamos imitar os pássaros não pelo que vemos neles, mas pelo que nos ensinam. Pois aquele brasileiro descobriu que o segredo estava não nas asas móveis, pois nisso todos erravam: até Ícaro bateu asas e estatelou-se no chão. O segredo estava no impulso que as asas, com seu arco, sua leveza, sua forma de triângulo, recebiam. E de onde vinha esse impulso? Do próprio movimento que as asas faziam para impulsionar o vôo. Foi então que Dumont teve a idéia de colocar um motor de automóvel para jogar a nave para a frente, mantendo as asas com suas formas fixas, já que eram duas coisas completamente diferentes que se completavam (e jamais deveriam ser confundidas numa coisa só), o impulso e o arco, o motor e o salto. Hoje parece simples, mas foi preciso um cidadão da civilização brasileira para entender isso. Tu também, Daiane, foste hoje para o tablado não para obedecer aos árbitros, mas para voar. Já tinhas feito a cabeça do teu anjo da guarda, que pulou junto contigo.

POESIA - O impulso foi tão grande, tão ansioso por se mostrar, que no final deste um passo para frente para reequipar teu equilíbrio. Para quem tem vocação para o vôo, para que servem linhas retas delimitando espaços, a não ser para eliminar a surpresa? Foi essa gana, essa vontade de mostrar tua invenção, que te jogou um metro a mais do que deverias, pelo regulamento, ficar. Depois, foi a consciência desse passo, doce pássara, que te deixou prostrada, a dar explicações para as câmaras famintas que te perseguiam para extrair o último suspiro da tua invenção, o vôo perfeito que precisa de um passo a mais para definir o reequilíbrio. Nesse instante, Daiane, só a poesia pode te acolher de verdade. Não a poesia vaidosa dos reiventores da roda, a poesia que recolhe dinheiro com o chapéu da notoriedade, a poesia da exclusão que nos ronda como um cão raivoso. Mas a poesia de verdade, aquele colo onde repousa nossa humanidade e tudo de repente faz sentido. Essa poesia te abraça e nela arrulhas teu desencanto enquanto nós, os poetas, ficamos impressionados com o que nos revelaste sem nada dizer, apenas colocando em forma teu corpo cheio de grandeza e voando para a maioridade da tua vida. Não é a derrota que nos humaniza, Daiane, e nem mesmo a maior das vitórias. O que realmente nos salva é a certeza de que colocamos a vida no que inventamos, que colocamos toda a nossa coragem num único e definitivo vôo. Esse pulo sobre o abismo da criação infinita é que nos enche de graça. E é com essa graça que cruzamos o tempo que nos deram para viver sobre a terra. Voei contigo, hoje, Daiane. Porque me ensinaste a voar e nenhum ouro pagará jamais essa lição majestosa que uma menina pode ensinar a um veterano, que procura ter os olhos livres para encontrar a poesia, onde ela estiver.

RETORNO - Mensagens emocionadas acompanham o texto acima, que a partir de hoje faz parte do selecionado internacional do La Insignia, graças ao editor Jesus Gomez e à torcida do amigo Urariano Mota. O poeta agradece e mantém a homenagem a Daiane na abertura do Diário da Fonte mais um pouco, enquanto estamos atentos ao que rola na mídia sobre Getúlio Vargas, subitamente tornado moda, depois que descobriram o quanto o povo amava o trabalhismo, nos funerais de Brizola. Ontem, no Jornal da Globo, a bomba: Lacerda, por engano, teria assassinado o major Vaz pelas costas e ao dar-se conta da besteira, teria dado um tiro no pé, segundo protagonista da tragédia. A família de Lacerda, claro, nega. Hoje tem continuação no JG.

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